As transnacionais e os transgênicos

14/03/2004 - 12h27

Vladimir Garcia Magalhães (*)

Há alguns anos estamos assistindo, no mundo e no Brasil, à polêmica ao redor dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), também conhecidos como transgênicos; particularmente em relação aos riscos que acarretariam à saúde dos consumidores e ao meio ambiente. Esta polêmica recentemente acirrou-se, com a edição, pelo governo brasileiro, em 25 de setembro de 2003, da MP 131, que liberou a utilização de sementes de soja transgênicas para a safra de 2004 e sem o prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima).

Ocorre que a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225, §1º, inc. IV, determina que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e que, para assegurar esse direito, incumbe ao Poder Público exigir, na forma de lei, para instalação de obra ou atividade com potencial de degradar o meio ambiente, um estudo prévio de impacto ambiental.

Este dispositivo está regulamentado desde a promulgação da Constituição em 1988, quando a Lei 6.938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente dispôs sobre a matéria que foi plenamente recepcionada pela Magna Carta, tendo inclusive sofrido diversas alterações por leis posteriores.

Por ter liberado o uso e comercialização da soja transgênica, a MP 131 se tornou objeto de diversas ADIs de entidades visando declarar inconstitucionais seus dispositivos que dispensam a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental (EIA-Rima), que são a ADI 3011, promovida pelo Partido Verde, a ADI 3041-1 promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e a ADI 3017-5, promovida pelo procurador Geral da República. Todas aguardando julgamento.

A Lei de Biossegurança, aprovada pela Câmara dos Deputados, dificilmente passará pelo Senado sem emendas e ainda não está definido qual órgão terá o controle das homologações para plantio.

O que é trangênico ?

O organismo transgênico designa um ser vivo cujo genoma (conjunto de genes) sofreu a adição de um gene (transgenia), ou ainda, mutagênese ou substituição de um gene; não importando a proveniência deste, de tal forma que o novo caractere conferido pelo gene adicionado ou modificado, se transmite fielmente aos descendentes.

Os genes, por sua vez, são estruturas microscópicas, constituídas por moléculas de DNA, abreviação em inglês para o ácido desoxirribonucleico, e existentes nas células de um organismo, que definem características como a cor de olhos, cabelos, etc.

Os organismos transgênicos começaram a surgir quando descobriu-se que introduzindo um gene de um organismo no DNA de outro, o cientista pode transferir a função associada ou característica para o novo organismo. Essa técnica possibilita ao engenheiro genético cortar, emendar e recombinar genes, transferindo características biológicas de um ser vivo para outro de espécie diferente que, sem essa intervenção humana, na natureza não ocorreria jamais .

Alegam as empresas trans-nacionais, interessadas nos vultuosos lucros que seus produtos transgênicos podem lhes proporcionar que, conforme algumas pesquisas, não existiram riscos para a saúde humana e meio ambiente e que, pelo contrário, a soja transgênica, por exemplo, pode aumentar a produtividade agrícola e combater a fome no mundo.

Já há alimentos para todos.

Segundo a FAC, os alimentos produzidos atualmente em nosso planeta, permitiriam que cada habitante da Terra poderia ter para seu consumo 1,7 Kg de cereais, feijões e nozes (carboidratos e gorduras), 200gr de carne, leite e ovos (proteínas e gorduras) e 0,5 Kg de frutas, verduras e legumes (fibras e vitaminas). Os elementos necessários para uma alimentação saudável e balanceada para qualquer ser humano.

Estes dados por si só, tornam vergonhosa a existência da fome assombrando adultos e crianças em todo o mundo, pois evidenciam que não é a falta de alimentos o problema, mas sim a falta de recursos financeiros das pessoas para comprarem este alimento.

Assim, não pode-se deixar de observar que a fome no mundo resulta muito mais da falta de distribuição de renda entre os segmentos das sociedades dos diversos países e na desigualdade de distribuição de rendas entre os países, do de uma "escassez" de alimentos produzidos no mundo.

Do outro lado, os que combatem a liberação indiscriminada em sem o EIA-Rima destes produtos, como a frente de entidades "Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos", contra- argumentam dizendo que as empresas não apresentam os trabalhos científicos nos quais dizem se basear e os que são apresentados não são conclusivos, que os países se tornariam dependentes destas transnacionais para a produção de alimentos, que a soja transgênica pode contaminar as plantações não transgênicas acarretando a possibilidade de seus proprietários serem processados pelas transnacionais para pagamento de royalties e indenizações pelo "uso" dos seus produtos e muitos outros, todos muitos relevantes.

Experiência internacional sugere precaução.

Ocorre que o legislador constituinte, consagrou no art. 225, §1º, inc. IV, o Principio da Precaução, ao exigir o estudo de estudo prévio de impacto ambiental para toda a atividade que apresente, ainda que potencialmente, este risco.

O Princípio da Precaução, pedra fundamental do Direito Ambiental, nacional e internacional, determina que medidas de proteção ao meio ambiente e à saúde humana devam ser adotadas, ainda que não exista a certeza cientifica de que um dano irreparável ou de gravidade irá de fato ocorrer devido a uma determinada atividade ou uso de algum produto. Medidas como a exigência do EIA-Rima para a liberação da atividade ou produto de risco.

Este princípio, consagrado pelo nosso constituinte, simplesmente exige a prudência quando bens de grande valor como a saúde a vida humana, assim como o meio ambiente, estão em risco. Nada mais sábio.

Ainda mais se lembrarmos fatos não tão remotos, ocorridos há algumas décadas, como as deformidades causadas em fetos cujas mães tomaram o medicamento Talidomida durante a gravidez. Medicamento devidamente testado cientificamente e cuja comercialização foi autorizada pelas órgão estatais responsáveis nos EUA e outros países, com conseqüências funestas para a população e consumidores deste produto, que foi a geração de crianças terrivelmente deformadas fisicamente.

Ameaça é a inexistência de prevenção.

Na realidade, de toda esta situação, a conclusão mais evidente é que não são de fato os produtos transgênicos a maior ameaça, à medida em que esta tecnologia pode ser aperfeiçoada ao longo do tempo para eliminar eventuais riscos à saúde humana e meio ambiente.

A verdadeira e mais perigosa ameaça é a postura destas poucas poderosas e gigantescas empresas transnacionais, criadas em países do primeiro mundo que detém esta tecxnologia e que como sempre, priorizam o lucro em detrimento da segurança e bem estar da população humana e meio ambiente do planeta. Que têm as condições financeiras para formar poderosos lobbies políticos diversos países onde atuam, par viabilizar a comercialização dos seus produtos e lucros resultantes.

Verdadeiros gigantes Golias, contra os quais cada cidadão, indefeso isoladamente, pode se tornar um Davi, desde que se conscientize do problema e atue de modo organizado, mobilizado e coletivo nesta luta onde o que está em jogo são bens sem preço, como a saúde e vida humana que, por sua vez, também dependem de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

(*) Vladimir Garcia Magalhães é Advogado e Biólogo, Mestre e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da USP; Coordenador de Meio Ambiente da Escola Superior de Direito Constitucional.