Ministro diz que trabalho escravo vai ser erradicado até 2006 no Brasil

21/02/2004 - 9h16

Vannildo Mendes e Luciana Vasconcelos
Repórteres da Agência Brasil

Brasília, 20/2/2004 (Agência Brasil - ABr) - O secretário especial de Direitos Humanos, ministro Nilmário Miranda, acredita que, até 2006, o trabalho escravo estará erradicado no Brasil. Em entrevista à Agência Brasil, ele também defendeu a realização da reforma agrária, para reduzir os conflitos no campo, e criticou a violência praticada por agentes do estado contra a população. Segundo Nilmário, há uma grande impunidade no Brasil, que precisa ser solucionada com a reforma das polícias e do Poder Judiciário.

Na entrevista, o ministro explicou como vai funcionar o Disque Direitos Humanos, número 100, que receberá denúncias de racismo, tortura, execuções, grupos de extermínio, violência contra a mulher e abuso sexual de crianças e adolescentes. Ele informou que o novo serviço deverá estar à disposição dos brasileiros a partir de junho. Com isso, será possível montar um grande banco de dados de direitos humanos, afirmou Miranda.

Agência Brasil - Quando começa a funcionar o Disque Direitos Humanos?

Nilmário Miranda - O número 100 já foi concedido pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Demorou um pouco, mas saiu. O contrato já está praticamente pronto. Vamos assinar um contrato com o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados). Será montado um call center, e já teve início o recrutamento dos advogados para fazer o encaminhamento das denúncias. Todo orelhão terá o selo "Disk 100" para a pessoa ligar de qualquer lugar do país. O projeto piloto inicial prevê o atendimento de 11 mil ligações por mês, funcionando de segunda a sexta, de 8 às 18 h. Depois do teste, vamos passar para 40 mil ligações por mês e funcionar 24 horas por dias, em todo o país.

Agência Brasil - Que tipo de denúncias poderão ser feitas pelo número 100?

Nilmário Miranda - Não é sobre direito do consumidor ou do INSS, que têm seus próprios serviços. O número 100 é sobre direitos humanos, denúncias de violência contra crianças, de abuso sexual, violência contra mulheres, contra pessoas portadoras de deficiências, tortura, grupos de extermínio, trabalho escravo, redes criminosas que prostituem crianças e adolescentes, racismo, perseguições a homossexuais e todo tipo de violação aos direitos humanos.

Agência Brasil - Vai reunir todo os tipos de disque-denúncia que já existem?

Nilmário Miranda - Sim. O da tortura vai ser incorporado imediatamente e o dos homossexuais, também. O que não vai ser imediatamente incorporado é o do abuso e da violência sexual, que continuará paralelo, porque, como o nosso ainda não foi testado, é preciso ver como funciona, consolidar primeiro. Depois, vamos desmontar os outros "disques" para que todos se incorporem a ele. O projeto piloto começará até o final de março, em Brasília, mas será estendido para o Brasil inteiro. Nossa intenção é, em junho, fazer o lançamento definitivo e a ampliação dele por todo o país, com uma grande divulgação.

Agência Brasil - A identidade da pessoa que denunciar será mantida em sigilo?

Nilmário Miranda - A ligação é gratuita e confidencial. Haverá um banco de dados - talvez pela primeira vez no Brasil, nós vamos ter um quadro das relações de direitos humanos próprio da sociedade, através das próprias pessoas que têm seus direitos violados.

Agência Brasil - Que prioridade o governo está dando ao combate ao trabalho escravo?

Nilmário Miranda - O trabalho escravo vem sendo combatido pelo estado brasileiro nos últimos 10 anos, sobretudo a partir da criação do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho. Quando o governo Lula entrou, fui encarregado de apresentar um plano para erradicar o trabalho escravo, não para combater, mas para erradicar. No dia 11 de março de 2003, foi lançado esse plano. São 75 ações, dizendo o que cabe a cada poder, aos estados, ao legislativo etc. São ações de curto, médio e longo prazo. Foi criada uma comissão que monitora o cumprimento desse plano, e está dando tudo certo. Aumentou o número de grupos de fiscalização, que agora dispõem do uso de satélite. Têm ainda celulares, rádios, equipamentos e carros. Todos só funcionam com acompanhamento da Polícia Federal. Em muitos lugares, tem acompanhamento do Ministério Público do Trabalho e Federal para abrir processos. Nesta semana, eu pedi ao Amir Lando, minisltro da Previdência, que os fiscais do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) acompanhassem o grupo para fazer duas autuações e ir apertando o cerco contra os escravocratas. É um crime grave.

Agência Brasil - O que ocorrerá com as empresas que praticam trabalho escravo?

Nilmário Miranda - No ano passado, divulgamos a lista suja de 54 empresas que - já está comprovadíssimo - fizeram trabalho escravo e não vão mais receber crédito oficial. Porque uma empresa, quando pede um crédito, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) não sabe se ela vai fazer trabalho escravo, assim como o Banco do Brasil, a Sudam, a Sudepe. Recentemente, houve outro grande avanço: entrou em fase final de tramitação a emenda constitucional para confiscar as terras de quem pratica trabalho escravo.

Agência Brasil - Ministro, foi descoberto um grande número de fazendas que praticam trabalho escravo. Significa que está aumentando o trabalho escravo no Brasil ou que se fiscaliza mais?

Nilmário Miranda - Com a repressão nos últimos anos, diminuiu o trabalho escravo, apesar de ser muito grande ainda. Na verdade, não tínhamos estrutura, o Estado não tinha como dar conta de todas as denúncias e, agora, tem três grupos. Olha, o Pará tem um grupo de fiscalização estadual, da Delegacia Regional do Trabalho, já em atividade. Eu acho que está aumentando o atendimento às denúncias. O que está aumentando é a ação do Estado para coibir o trabalho escravo.

Agência Brasil - O senhor disse que, até 2006, o trabalho escravo acaba?

Nilmário Miranda - Acaba. Se a Câmara dos Deputados aprovar a emenda constitucional do confisco das terras, acaba. As pessoas mantêm o trabalho escravo porque hoje eles ganham muito com isso, e não existe punição nenhuma. Só teve uma pessoa condenada. Agora, com o novo trabalho, nós já temos 36 ações penais em curso e 106 inquéritos policiais em andamento contra escravocratas. Quer dizer, o Estado começou a agir como Estado. Quando eles começarem a ser condenados, ir para a cadeia, pagar multas condizentes, quando começarem a ter que pagar indenizações, quando eles não puderem receber crédito oficial, e quando tiverem suas terras confiscadas, aí acaba.

Agência Brasil - Alguma preocupação específica nesse momento? Os olhos estão voltados pra algum lugar especificamente?

Nilmário Miranda - Para a Amazônia Ocidental, que tem 80% dos casos. Nós não queremos identificar estado com trabalho escravo, porque é uma região de ocupação recente, de fronteira agrícola recente, em que o Estado não está organizado ainda. Não há juízes, não há delegados, não há promotores, não há fiscais, não há instituições estatais ainda em número suficiente. E esses aventureiros se aproveitam da ausência do Estado para fazer essa crueldade com os trabalhadores. Então, é preciso fazer coisas móveis, ter uma Vara Itinerante do Trabalho. O que estamos fazendo? Nós temos que levar instituições permanentes para esses lugares. A primeira Vara do Trabalho, a 269, criada recentemente, vai ser em Redenção, no sul do Pará, nos lugares onde há mais ocorrências.

Agência Brasil - A repressão basta?

Nilmário - É importante também um trabalho de política social. Saber de onde os escravos saem. Recebi o governador do Maranhão, José Reinaldo, nesta quinta-feira, e ele trouxe um plano de erradicação do trabalho escravo no Maranhão. É preciso evitar que as pessoas se aventurem no trabalho escravo, dar a eles alternativa de vida no Maranhão, no Piauí, onde são recrutadas no meio da pobreza. Ou seja, se todos tiverem documentos, forem alfabetizados, tiverem acesso à terra, ao crédito, às cooperativas. Eles não vão precisar sair para essa aventura de trabalho escravo. Quem vai são pessoas que não tem nenhuma alternativa: elas são recrutadas para o gado, acham que podem estar sendo enganadas, mas vão arriscar. É gente completamente excluída. Você tem que dar oportunidade a essas pessoas de uma vida digna sem precisar sair a mil quilômetros de sua cidade para serem escravizadas.

Agência Brasil - Que providências o governo planeja para reduzir a violência, que continua muito grande no país?

Nilmário Miranda - A violência tem várias qualificações. Por exemplo: nós temos a violência doméstica, violência contra crianças e adolescentes, abusos e violência sexual e muita violência contra a mulher nas casas. A gente acha que isso deve ser enfrentado por todos, pela sociedade, pelo Estado.Tem a violência chamada social, muita luta pela terra. O Brasil é um país muito injusto, muito desigual, herdou estrutura de terra muita concentrada. Milhões de brasileiros querem ter a terra, mas apenas uns têm em excesso e não usam para nada. Às vezes, só como reserva de valor. Então, é preciso fazer a reforma agrária, é preciso dar direito aos quilombolas - os remanescentes de quilombos - para terem suas terras tituladas. É preciso garantir a terra indígena e que eles tenham uma vida digna. Isso está gerando muitos conflitos e muita violência no campo.

Agência Brasil - E quanto à violência urbana?

Nillmário Miranda - No caso da violência criminal, até hoje, só foi combatido o criminoso pobre. Agora, resolvemos combater o criminoso rico, o que monta empresa-laranja, o que monta escritório de consultoria de fachada, o que faz lavagem de dinheiro, o que corrompe políticos, policiais e gente do Judiciário, o que contrata jagunços. E tem a violência praticada pelo próprio Estado, que também é intolerável, a violência de uma minoria de policiais corruptos que torturam, que matam. Há também uma minoria de pessoas mal capacitadas que tortura nas prisões, oferece tratamentos cruéis e degradantes às pessoas que estão sob sua guarda, sejam adolescentes ou adultos. Tem que haver um projeto pra enfrentar a violência de cada área dessas.

Agência Brasil - O modelo econômico precisa mudar também?

Nilmário Miranda - Com certeza. Em primeiro lugar, tem que voltar a ter desenvolvimento. Nos últimos 20 anos, temos um crescimento assim: dois anos de crescimento, cinco de recessão, de estagnação. Infernizou a vida dos brasileiros. Pioraram muito os indicadores sociais. Precisamos agora ter um desenvolvimento que não seja à base de bolhas de crescimento. Tem que ser 20, 30, 50 anos de taxas de crescimento que permitam que todos cheguem ao mercado de trabalho, e mais quem ficou pra trás, mais o estoque acumulado. E tem que crescer distribuindo. O Brasil nunca fez isso: distribuir renda, reforma agrária. E melhorar a qualidade e o acesso à educação. E incluir todo mundo na Previdência, ter políticas sociais focalizadas para acabar com a miséria e a fome. É isso: distribuir renda, o poder, o saber, para incluir todo mundo no direito à cidadania.