Walden Bello:a cúpula da sociedade civil e a crise do império

17/01/2004 - 10h18

Por Walden Bello (*)

Manila - Washington será o problema mundial número um para os milhares de representantes da sociedade civil global que se reunirão em Mumbai, na Índia, no Fórum Social Mundial (FSM), que acontecerá entre 16 e 21 deste mês. Entretanto, há uma grande diferença entre a situação atual dos Estados Unidos e a de apenas um ano atrás. Os Estados Unidos com o qual os participantes do FSM se confrontam hoje não são a mesma prepotente superpotência de ontem. O atoleiro do Iraque e o colapso da Cúpula Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, em setembro passado, são apenas dois sintomas da enfermidade fatal de que sofrem os impérios: a extensão excessiva.

Outros indicadores decisivos incluem a capacidade para consolidar um regime independente no Afeganistão, o fracasso absoluto quanto a estabilizar a situação da Palestina, o paradoxo estímulo dado aos extremistas islâmicos pelas invasões realizadas pelos Estados Unidos, a progressiva desintegração da aliança atlântica que ganhou a Guerra Fria, a crise no próprio "quintal" de Washington provocada pelos governos antinorte-americanos e contrários ao livre mercado de Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil, e Hugo Chávez, na Venezuela, e o crescimento de um movimento de massas da sociedade civil que ultrapassa fronteiras.

Diante de tais desafios, a superioridade absoluta dos Estados Unidos em matéria de armamento nuclear e convencional pouco conta.

Durante grande parte do período posterior à Segunda Guerra Mundial, a facção bipartidária dominante da elite política norte-americana seguiu o exemplo da antiga Roma, onde uma "visão moral" era central para o manejo imperial. O Memorando de Segurança Nacional 68, documento determinante da Guerra Fria, não era simplesmente uma estratégia de segurança nacional, mas uma visão ideológica que falava de "uma longa luta crepuscular" contra o comunismo por lealdade aos povos de todo o mundo. Em contraste, o documento de Estratégia Nacional de Segurança, do atual governo, diz em sua maior parte que a missão principal do país é defender o "american way of life" de seus inimigos no exterior e arrogar-se o direito de atacar diante de qualquer ameaça potencial aos interesses norte-americanos.

Mesmo quando os reinantes neoconservadores falam em levar a democracia ao Oriente Médio, não podem dissipar a impressão de que eles vêem a democracia à luz da realpolitik, ou seja, como um mecanismo para destruir a unidade árabe, e garantir a existência de Israel além do acesso dos Estados Unidos ao petróleo.

E o futuro?

Militarmente não há dúvida de que Washington manterá sua absoluta superioridade, mas sua capacidade de transformar esse poder em uma intervenção efetiva decairá à medida que a "síndrome Iraque" se consolidar. Por outro lado, a desintegração da aliança atlântica é irreversível. A Europa muito provavelmente se moverá para a criação de uma Força Européia de Defesa independente da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), embora não vá representar um desafio para a superioridade estratégica norte-americana.

Na esfera econômica, os Estados Unidos seguirão sendo a potência dominante durante as próximas duas décadas, mas provavelmente este setor deixará de ser a fonte de sua hegemonia, já que o contexto global para a cooperação capitalista transnacional, para a qual é fundamental a OMC, está desgastado. Os acordos de comércio bilateral ou regional provavelmente vão proliferar. Contudo, os mais dinâmicos talvez não venham a ser os que integram economias fracas com as de uma superpotência como Estados Unidos ou União Européia, mas acordos econômicos regionais entre países em desenvolvimento.

Organizações como o Mercosul, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) e o Grupo dos 20 aproveitarão de maneira crescente as lições que as nações em desenvolvimento aprenderam nos últimos 25 anos de globalização desestabilizadora. Essas lições são que a política comercial deve estar subordinada ao desenvolvimento, que a tecnologia deve ser liberada das severas leis de propriedade intelectual, que os controles sobre o capital são necessários e que o desenvolvimento requer não menos mas mais intervenção estatal. E, sobretudo, que os fracos devem se manter unidos, já que separados perecerão.

Entre os países em desenvolvimento, a China é um dos ganhadores da Era Bush, pois se preparou para ficar ao costado de todos em importantes conflitos econômicos e políticos.

O outro grande ganhador é a sociedade civil, uma força cuja expressão mais dinâmica é o FSM, que agora se reunirá em Mumbai. Esta rede em expansão, que ultrapassa fronteiras e inclui o Norte e o Sul do mundo, é a principal força a favor da paz, da democracia, do comércio justo, da Justiça, dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável. Governos tão diversos quanto os de Pequim e Washington dão de ombros às suas exigências. As grandes corporações as odeiam e os organismos multilaterais se vêem compelidos a adotar sua linguagem sobre os "direitos". No entanto, fundamentalmente, é sua crescente capacidade para deslegitimar o poder das grandes companhias e desnudar suas reais intenções o que constitui um fator das relações internacionais com o qual as corporações terão de conviver.

As multidões em Mumbai continuarão, sem dúvida, vendo os Estados Unidos como uma ameaça mortal para a paz e a Justiça global, mas também se alegrarão pelas crescentes dificuldades de um arrogante império que não se dá conta de que seu declínio é inevitável, e de que o desafio não é resistir ao processo mas manejá-lo com habilidade. (IPS/Envolverde)

(*) Walden Bello é professor de Sociologia e de Administração Pública na Universidade das Filipinas e diretor-executivo do instituto de pesquisa Focus on the Global South, com sede em Bangcoc.