Por Mary Robinson (*)
Nova York - Devido ao caráter repentino e ao alcance das mudanças na era da globalização, vale a pena recordar que o século XXI começou com um compartilhado sentimento de esperança. Nas Nações Unidas, em setembro de 2000, durante a maior reunião da história de líderes mundiais, foi firmada a Declaração do Milênio, um renovado compromisso internacional para criar um futuro baseado no fato de pertencermos à humanidade em toda sua diversidade.
Contudo, exatamente um ano e três dias depois de firmada essa declaração, os terríveis fatos de 11 de setembro de 2001 estremeceram os Estados Unidos e o mundo. Desde esse dia, os compromissos que marcaram o começo do novo milênio foram turvados pelas ameaças do terrorismo, por incertezas sobre o futuro e dúvidas sobre a viabilidade das sociedades abertas ajustadas às normas e aos valores internacionais.
Se queremos uma verdadeira segurança humana, para todas as pessoas e em todas as partes, devemos aplicar esses compromissos. Em lugar de levantar muros de medo e recorrer apenas a estratégias de poder político, deveríamos buscar caminhos para nos concentrar mais em promover a prática dos valores da liberdade, igualdade, solidariedade e tolerância, que podem unir, em lugar de dividir, o Norte e o Sul, ricos e pobres, esquerda e direita, religiosos e laicos.
Também devemos recordar que o 11 de setembro não mudou muito as vidas da maioria das pessoas do planeta. A insegurança humana, tristemente, era uma realidade diária antes dessa data para centenas de milhões de pessoas que vivem na pobreza absoluta ou em zonas de conflito.
A globalização está exacerbando as tendências para um mundo em duas velocidades. A década de 90 marcou um período de crescimento sustentável em muitos países ocidentais, enquanto China e Índia deram largos passos, ao tirarem milhões de pessoas da pobreza. Durante o mesmo período, no entanto, 54 países, muitos deles na África subsaariana, ficaram mais pobres. A mortalidade infantil aumentou em 14 países e a expectativa de vida caiu em 34 nações.
O quanto podemos nos sentir seguros em um mundo como este "em duas velocidades", de ricos e pobres?
À medida que o poder continua mudando do setor público para o privado, dos governos nacionais para as corporações transnacionais e organizações internacionais, como deveriam ser atribuídas as responsabilidades a diferentes atores como as instituições internacionais, os governos, as empresas e a sociedade civil?
Creio que podemos começar a responder estas perguntas através do diálogo sobre os valores e a busca de uma nova e mais duradoura interconexão. Para esse diálogo se requer uma linguagem comum de respeito e solidariedade. Igualmente importante é que essa linguagem deve ser capaz de conter a moral e a força legal da comunidade internacional.
O sistema econômico mundial opera em grande parte isolado dos direitos humanos. Em parte como resultado disso, o comércio internacional e as regras de propriedade intelectual têm, por exemplo, levado, direta ou indiretamente, à exclusão de muitas pessoas do acesso a medicamentos essenciais, acentuadamente no caso de remédios necessários ao mundo em desenvolvimento para inibir a propagação do HIV/aids, da malária e da tuberculose.
Em muitos países, as políticas de privatização dos serviços públicos fazem com que em alguns casos seja mais difícil para as pessoas que seus filhos freqüentem a escola, a obtenção de água potável ou de serviços sanitários.
O primeiro passo para a solução destes aparentes conflitos entre os valores do mercado e os direitos humanos é o de reconhecer que os objetivos dos direitos humanos internacionais e do comércio internacional têm muito em comum. Ambos buscam melhorar os níveis de vida com maior liberdade, um através do reconhecimento do que é necessário para uma vida digna, livre de medo e miséria, e o outro através da prática do livre comércio que leva ao crescimento, graças ao qual se pode financiar programas sociais vitais.
Sob a lei internacional, todos os Estados integrantes da Organização Mundial do Comércio (OMC) são partes não só dos tratados internacionais sobre propriedade intelectual, comércio e serviços, como também de ao menos um, e comumente de mais, dos seis principais tratados de direitos humanos. Isto significa que eles se comprometeram voluntariamente a colocar em vigor as regras comerciais e a respeitá-las, bem como a cumprir os direitos humanos em seus próprios países (incluindo os direitos das mulheres, das crianças e dos grupos vulneráveis). Eles também aceitaram obrigações equivalentes em relação ao trabalho e com os padrões ambientais.
Portanto, o desafio consiste em não deter a expansão dos mercados globais e também desenvolver instituições e políticas que permitam um apropriado exercício do poder e protejam os direitos humanos nacionalmente e em nível internacional. Isto redundará em um fortalecimento do desenvolvimento humano e da segurança humana.
Naturalmente, o exercício eficaz do poder deve começar em nível local. Entretanto, devemos também reconhecer que o exercício do poder no mundo atual é mais do que a tomada de decisões no âmbito nacional. Há, ainda, uma crescente dimensão internacional do exercício do governo e da proteção dos direitos humanos, que é inevitável. (IPS/Envolverde)
(*) Mary Robinson é diretora-executiva da The Ethical Globalisation Initiative, ex-presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.