Mario Soares: o neoliberalismo saiu de moda

17/01/2004 - 10h15

Por Mario Soares (*)

Lisboa - Sustento há algum tempo que o neoliberalismo, tão em moda há poucos anos, é uma doutrina econômica que está dando mostras de esgotamento. É um fato que não foi capaz de resolver os problemas cruciais do mundo atual. Tanto nos Estados Unidos - motor da economia global -, quanto na Europa ou no Japão, e especialmente nos países emergentes, a sacralização do mercado, tal como foi praticada nas décadas finais do século passado, deu no que tinha de dar, afundando o mundo no que o prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, descreve como "a primeira grande crise planetária da globalização".

Na União Européia as conseqüências foram igualmente desastrosas, com o adendo de que os partidos social-democratas no governo - em 11 dos 15 Estados-membros -, ao não conseguirem aplicar, por incapacidade ou falta de coragem política, as políticas sociais que constavam de seus programas, se deixaram influenciar pelas teorias neoliberais de inspiração anglo-americana. Desta maneira, em muitos casos acabaram por entregar o poder à direita. Tratou-se de uma oportunidade perdida cuja crítica deve ser assumida e feita com rigor, se estes partidos - que se proclamam de esquerda - aspiram voltar ao poder em novas eleições.

É certo que durante seu governo o presidente Clinton conseguiu um bom resultado econômico nos Estados Unidos, que incluiu uma drástica redução do déficit fiscal. Ele estava convencido - mas, creio que já não está - de que a abertura dos mercados, simplesmente, necessariamente levaria à eficácia e à prosperidade. Recordo que o ouvi dizer que em dez ou 15 anos a globalização terminaria com a pobreza no mundo. Aconteceu o contrário, sobretudo no terceiro mundo, como hoje todos admitem.

De fato, o livre comércio, ao ignorar o papel regulador que cabe ao Estado, leva a injustiças sociais profundas, fecha os olhos sistematicamente diante das exigências ecológicas que hoje são irrecusáveis e, nesta fase do capitalismo especulativo na qual nos encontramos, deu lugar a graves vícios, dos quais são exemplos pouco edificantes os escândalos da Enron, Vivendi e outros. Por isso Stiglitz considera indispensável estabelecer um "equilíbrio entre o mercado e o Estado, baseado nos valores da Justiça social e na igualdade de oportunidades, e que dê prioridade à criação de empregos".

Trata-se de valorizar a política e o papel do Estado, junto com o direito do cidadão à informação, em relação às exigências da economia. George W. Bush, neoconservador e herdeiro da tradição neoliberal tal como foi interpretada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, viu-se obrigado, em virtude de sua política unilateralista voltada à dominação mundial, a fazer exatamente o oposto do que havia prometido. Deixou crescer o déficit orçamentário até proporções dificilmente controláveis, que só são suportáveis em razão dos enormes investimentos estrangeiros. Estes investimentos ocorrem enquanto a economia norte-americana der garantias de estabilidade.

Entretanto, como os Estados Unidos deixam que o dólar desvalorize, particularmente em relação ao euro, para assim aumentar suas exportações e reduzir as importações, os investimentos externos começam a diminuir, o que representa um perigo claro para a economia norte-americana. Por outro lado, e apesar de apresentar-se como defensor da abertura dos mercados emergentes, Bush se revelou bastante protecionista. Não vacilou em decidir intervenções neo-keynesianas para defender as indústrias nacionais da aeronáutica, da hotelaria e do turismo, depois do 11 de Setembro. Também impediu a importação de aço e cereais por meio de subsídios concedidos para proteger esses setores da competição estrangeira. Inutilmente a União Européia e os chamados países emergentes protestaram na Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, contra essas medidas.

Contudo, a reação mais grave partiu do gigante chinês diante das medidas de Bush para frear a importação (invasão) de produtos têxteis. Um alto dirigente chinês (comunista, imagine!), indignado com esse desplante, denunciou o escândalo protecionista e afirmou que se tratava do "fim do livre comércio". Não é o mundo ao contrário? O pior é que os chineses estão efetivamente em condições de desfechar represálias, já que são grandes credores dos Estados Unidos, com alguns milhares de milhões de dólares investidos em bônus do Tesouro e em fundos norte-americanos. Se vendessem, a economia da superpotência sofreria um colapso e com isso arrastaria na crise o capitalismo mundial.

Bush proclamou, depois da invasão do Iraque, que "o mundo agora está muito mais seguro". Vê-se! Só falta agora que, em seu afã para ganhar a reeleição, deixe entregue à sua própria sorte o Iraque caótico e o mundo em uma crise econômica sem precedentes. Terá razão George Soros - especulador e filantropo - em ter se comprometido a consagrar grande parte de sua fortuna à luta contra a eventual reeleição de Bush. (IPS/Envolverde)

(*) Mario Soares foi presidente de Portugal no período 1986-1996.