Por Mario Osava
Articulista da IPS/Envolverde
Rio de Janeiro, 13/1/2004 - A diplomacia já não é exclusividade dos governos, conforme demonstra o crescente papel que as organizações da sociedade civil passaram a exercer nas negociações internacionais desde o início da década de 90. Este processo fica mais visível a partir de 1992, quando foi realizada no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, seguida de outras cúpulas mundiais sobre assuntos sociais, que tiveram uma ativa participação das organizações não-governamentais e o triunfo de muitas de suas propostas.
A definição dessa "diplomacia não-governamental", o contexto de seu desenvolvimento, seus objetivos e suas limitações serão tema de um seminário no IV Fórum Social Mundial (FSM), que acontece entre os dias 16 e 21 deste mês em Mumbai (ex-Bombaim), a maior cidade e centro econômico da Índia. "O tempo da pura intergovernabilidade acabou", afirmam em um documento que servirá de base às discussões na Índia Henri Rouillé d’Orfeuil, presidente da Coordenação Sud, e Jorge Eduardo Durão, da Associação Brasileiras de Organizações não-governamentais (Abong), duas entidades que promovem o seminário junto com a Rede de Ação Voluntária da Índia (Vani, sigla em inglês).
A Coordenação Sud reúne organizações francesas de solidariedade internacional. Não é casualidade que também as outras sejam federações nacionais de Ongs. Criar organizações coletivas de associações da sociedade civil em nível nacional, regional ou global, e definir posições, propostas e demandas comuns são necessárias para a eficiência da diplomacia não-governamental, segundo D’Orfeuil e Durão. Isso, argumentam, permite compensar "debilidades" das Ongs, questionadas em sua legitimidade e representatividade para falar em nome da sociedade civil.
G3 e Fórum Social
A "construção de um mundo em solidariedade", com regras internacionais mais justas e sustentáveis, é o objetivo da ação junto à opinião pública e aos negociadores oficiais. Tal atitude não se opõe necessariamente à atuação dos governos. O presidente da Abong, Sérgio Haddad, afirmou que o fato de neste ano o FSM acontecer em Mumbai revela um "certo paralelismo" entre a diplomacia não-governamental e a realizada pelos governos de Brasil, Índia e África do Sul, que em junho constituíram o Grupo dos Três (G3), em uma aliança para se fortalecer as negociações internacionais.
Com vistas à última conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em setembro no balneário mexicano de Cancún, surgiu o Grupo dos 20 (G20) países em desenvolvimento que rejeitam o protecionismo e os subsídios agrícolas do mundo industrializado e que é liderado por essas três nações. As batalhas diplomáticas não-governamentais se desenvolvem em quatro frentes. Nas negociações sociais se busca, por exemplo, fazer com que os países industrializados contribuam com 0,7% de seu produto interno bruto para a ajuda ao desenvolvimento, promessa descumprida há 30 anos, e que se tornem efetivas as chamadas Metas de Desenvolvimento do Milênio.
Essas metas, acertadas por chefes de Estado e de governo de todo o mundo em 2000, contemplam reduzir à metade, até 2015, a mortalidade infantil, a quantidade de meninas e meninos sem escola, os 800 milhões de pessoas vulneráveis à fome e as populações sem acesso à água potável, entre outras carências derivadas da pobreza e da exclusão social. As negociações no campo do cuidado com o meio ambiente, da economia e do comércio, bem como em questões geopolíticas, especialmente do sistema multilateral, constituem outras frentes de batalha, afirmam D’Orfeuil e Durão.
A ordem mundial será uma preocupação constante nas grandes conferências e panéis do FSM. Governabilidade Global, "Militarismo, Guerra e Paz" e "Comércio Internacional" são algumas questões centrais a serem examinadas pelos participantes. "Enfrentamento do unilateralismo e a reforma das Nações Unidas" são tema de um debate a ser promovido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), junto com organizações de vários países. O assessor especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, estará entre os convidados para falar sobre o tema.
"Existe consenso quanto a rejeitar o multilateralismo, mas a Onu é um tema incômodo que divide opiniões", afirmou Cândido Grzybowski, presidente do Ibase e membro do Conselho Internacional do Fórum (CI). "O FSM é um encontro da sociedade civil, enquanto as Nações Unidas constitui uma organização de governos, que exclui inclusive os parlamentos", destacou. Ampliar o Conselho de Segurança da Onu, onde Brasil, Índia e África do Sul querem ter assento permanente, ou extingui-lo como um órgão pouco democrático, onde apenas Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, França e Rússia têm poder de veto, é uma das polêmicas.
Nova forma de fazer política
Para Francisco Whitaker, representante da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da Igreja Católica e membro do CI, a sociedade civil não só pressiona e demanda, mas às vezes age diretamente. Um exemplo disso é a iniciativa para a paz entre Israel e Palestina, apresentada em Genebra há algumas semanas por grupos sem relação com os governos. Porta-vozes desses grupos israelenses e palestinos falarão na sessão de encerramento do FSM, no próximo dia 21. "A grande contribuição do FSM, que se consolidará na Índia, é uma nova forma de fazer política, o método de articular organizações e movimentos sociais com horizontalidade, sem comando nem a pirâmide hierárquica", destacou Whitaker.
"Esse método é chave tanto nas relações internacionais quanto dentro dos países. O FSM representa para a Índia uma experiência histórica de unidade, superando divisões políticas e de castas", acrescentou. Segundo ele, os "intocáveis, ou parais", a casta inferior, com 170 milhões de pessoas, pouco menos que a população do Brasil, estão organizando e participando do Fórum Social Mundial junto com os demais indianos "em conjunto e considerados como iguais".