Spensy Pimentel
Editor de especiais
Brasília - A tragédia irmana as professoras Edna de Souza, 53, e Valdelice Verón, 24. As investigações em torno da morte de Marcos Verón podem, entretanto, impedir que sua família veja repetido um triste desfecho. O pai de Valdelice foi morto há um ano. O de Edna, há 20. Há alguns dias ela diz ter recebido uma carta da Justiça. O crime prescreveu, sem que se encontrassem e punissem os culpados.
Marçal de Souza, pai de Edna, viveu um tempo em que os guarani ainda não se haviam cansado de falar e denunciar as desgraças que vinham sofrendo. Órfão aos 8 anos, foi educado em uma missão presbiteriana e reconverteu-se a sua própria cultura ao servir de intérprete e guia entre seus patrícios para antropólogos famosos como Egon Schaden e Darcy Ribeiro.
Em 1980, foi escolhido para representar os índios brasileiros diante do papa João Paulo II, em sua visita ao Brasil. "Leve o mesmo clamor, a nossa voz por outros territórios que não são nossos, mas que o povo, uma população mais humana, lute por nós porque o nosso povo, a nossa nação indígena está desaparecendo do Brasil", discursou na ocasião, em Manaus, dirigindo-se ao pontífice.
Três anos depois, denunciava a tentativa de expulsão de uma comunidade kaiowá na área de Pirakuá, em Bela Vista. Segundo a família, o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima procurava insistentemente o enfermeiro Marçal para propor-lhe que convencesse os índios a se mudarem dali para uma das reservas já demarcadas pelo governo. Às negativas de Marçal seguiu-se sua execução, com cinco tiros, em pleno pasto, no dia 25 de novembro de 1983.
O crime provocou comoção internacional. A Igreja Católica realizou missas em intenção a Marçal por todo o país. Dom Tomás Balduíno celebrou uma cerimônia em Dourados, que também presenciou atos políticos envolvendo índios, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e parlamentares.
Mas, diante da Justiça, nada adiantou. Líbero foi julgado e absolvido por falta de provas por duas vezes, a última delas em 1998. Edna conta que os Souza não devem lutar contra a prescrição. "Agora, o Líbero já está muito velho, quase morto. A família decidiu não se desgastar mais com isso", conta ela.
"Hoje os índios estão mais cansados e têm a sensação de que a Justiça é muito lenta, morosa."
Entre seu pai e Marcos Verón, líder kaiowá assassinado no ano passado, Edna enxerga um sintoma do processo histórico que os guarani de MS enfrentaram nesses vinte anos. "Meu pai ainda procurava o diálogo, a denúncia. Procurava as autoridades... Hoje os índios estão mais cansados e têm a sensação de que a Justiça é muito lenta, morosa. Com a ansiedade por retomar a terra, o Marcos partiu para a luta direta, o enfrentamento corpo a corpo".
Segundo Edna, apesar das recomendações feitas pela família, a Justiça não chegou a ouvir como testemunhas os índios do Campestre, área onde ocorreu o crime. Além disso, ela conta que, para o funeral, os kaiowás que haviam recolhido o corpo para levá-lo até Dourados, também enviaram à família um balde com a terra embebida no sangue derramado de Marçal - considerado parte do cadáver, na concepção guarani.
Quando foram espalhar o conteúdo do balde na sepultura, as filhas de Marçal encontraram dois projéteis ali e os entregaram à polícia. Edna diz que essas balas desapareceram, não chegaram a ser examinadas pela perícia.