Nádia Faggiani
Repórter da Agência Brasil
Brasília - O engenheiro brasiliense Paulo Márcio Miranzi, 49 anos, procurou ajuda psicológica, perdeu peso e tornou-se uma pessoa amargurada. Ele diz que viveu os 12 piores meses da vida ao ser aprovado em concurso público para engenheiro eletricista de uma empresa estatal.
Revela que assim que assumiu na empresa, passou a sofrer assédio moral. Deslocado de função, recebia ordens do superior para realizar serviços inferiores à sua qualificação. Quando havia festa na empresa, era deixado de fora. "Faziam tudo para que eu pedisse demissão. Perdi o apetite, tinha insônia, palpitação, pressão alta. Fui salvo por Deus e porque tive a coragem de denunciar à Delegacia Regional do Trabalho (DRT)", relata.
O assédio moral está entre os principais tipos de discriminação no mercado de trabalho, atrás da discriminação por deficiência física. Assim como Paulo, outras 2.419 pessoas de todo o país resolveram denunciar, este ano, a discriminação recebida de patrões ou colegas.
Desse total, 1.797 denúncias foram feitas contra empresas que se negaram a contratar portadores de deficiência, 143 por portadores de deficiência dentro das empresas e 119
relacionadas a assédio moral no ambiente de trabalho. Os números, do Ministério do Trabalho, confirmam que no Brasil a discriminação existe, apesar de ser mascarada.
"A dificuldade de se combater a discriminação é que ela é encoberta. É o que acontece em processos seletivos quando, durante o processo, sem formalizar nada, simplesmente o examinador não contrata mulheres. A discriminação é um problema mundial, mas certas formas são mascaradas. Uma delas é de cor", afirma o procurador regional do Trabalho da 8ª Região (PA), José Cláudio Monteiro Brito Filho.
Na avaliação dele, o que o país precisa é de uma legislação que inverta a obrigação de provar a discriminação. "É o que fazem os americanos, quando há possibilidade de discriminação quem prova que não houve é o tomador de serviço e não o prestador ou o Ministério Público. No nosso caso, via de regra temos que provar que houve caráter discriminatório naquela seleção ou na ascensão dos trabalhadores e isso dificulta o combate", explica Brito Filho.
O engenheiro Paulo Miranzi conta que uma das suas inseguranças era perder o emprego aos 49 anos. "Qual a chance de competir e se recolocar no mercado de trabalho a curto prazo com essa idade sem ser por concurso público?", questiona. Apesar de a discriminação no Brasil não ser explícita, com freqüência, trabalhadores não são aceitos em entrevistas de emprego por serem portadores de deficiência, negros ou assumirem orientação sexual contrária aos padrões da sociedade.
A psicóloga Oneide Leão perdeu várias oportunidades de emprego na cidade de Natal, onde mora, por ser deficiente visual, até encontrar uma oportunidade na ONG Instituto Ponte da Vida, que atende crianças carentes. "Eu tenho deficiência visual e sempre que levava meu currículo nas empresas diziam que era importante a apresentação. Qualquer pessoa precisa de boa
aparência como ser humano, mas não enxergar ou ter algum tipo de deficiência não está relacionado à aparência. O mais importante é a capacidade intelectual", ressalta Oneide.
Segundo ela, os portadores de deficiência enfrentam discriminação salarial. "Percebo que as empresas não querem contratar deficientes de nível superior porque o salário é um pouco mais alto, então eles procuram deficientes de nível médio para pagar salários mais baixos. Só na minha casa, são quatro pessoas com deficiência que possuem formação superior, mas dos quatro eu sou a única empregada com carteira assinada", diz a psicóloga. Ela recebe um
salário mensal de R$ 720.
Oneide pertence ao grupo de um milhão de deficientes brasileiros em idade de trabalhar. São apenas 11% de trabalhadores entre os nove milhões de deficientes que fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA), de acordo com o Ministério do Trabalho. O índice de desempregados portadores de deficiência visual é de 5,7%.
A desigualdade mostra-se evidente também entre mulheres e negros. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), as mulheres negras que têm entre 11 e 14 anos de escolaridade recebem 39% do salário ganho por um homem branco com a mesma formação.
De acordo com o Ministério do Trabalho, também é prática comum a exigência de currículos com foto e pedido de boa aparência, na tentativa de eliminar trabalhadores por meio de seleção. Alguns processos envolvem anúncios de empregos, publicados por jornais. Só este ano foram denunciados ao Ministério do Trabalho 114 casos deste tipo. A própria Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) proíbe a publicação de anúncios de emprego que indiquem preferências de cor, sexo ou orientação sexual, que possam interferir na igualdade de oportunidades.
O Ministério tem atuado junto a empresas jornalísticas, sindicatos e Ministério Público para combater a discriminação e conscientizar trabalhadores e empregados sobre o problema. "As pessoas têm que se conscientizar que estão sendo discriminadas. Fazemos um trabalho de esclarecimento para empresas e trabalhadores", afirma o técnico Manoel Veras Nascimento.
O procurador regional do Trabalho, José Cláudio Monteiro Filho, faz parte da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho, criada em 2002 pelo Ministério Público. Ele afirma que a principal estratégia de atuação é estabelecer contato com as empresas jornalísticas de todo o país para firmar compromisso de não publicarem anúncios de emprego com fundo discriminatório, que exijam "boa aparência" ou idade do trabalhador.
Ele explica que a discriminação não tem uma classificação do ponto de vista das razões porque o preconceito é infinito. "Eu posso ter preconceito de cor e não ter preconceito de identidade sexual. Eu posso ter preconceito contra mulheres e não ter contra um outro tipo. Há casos de
preconceito a partir de uma faixa de idade para entrar no mercado de trabalho", diz Cláudio Monteiro.
Cerca de 75 núcleos vinculados a delegacias regionais e municipais do trabalho estão espalhados pelo país para receber denúncias contra qualquer tipo de discriminação. O trabalho dos núcleos é recente e começou há três anos.
Cada capital possui um núcleo nas DRTs e em algumas cidades há núcleos nas subdelegacias. As empresas que praticarem a discriminação estão sujeitas à ação civil pública e multa administrativa equivalente a dez vezes o maior salário pago. De acordo com Manoel Veras, cerca de 95% dos casos de demissão conseguem ser revertidos em mesa de negociação, evitando ações na justiça contra a empresa que praticou a discriminação.
Segundo o técnico, o número de denúncias este ano foi bem menor na comparação com o ano passado, quando foram registradas 16 mil denúncias devido à mudança de governo e porque houve maior inserção de portadores de deficiência qualificados no mercado de trabalho.
"A divulgação de nosso trabalho contra a discriminação é feita por meio de eventos porque as pessoas não têm consciência de que existe discriminação. E isso custa dinheiro. Quando
começou a divulgação, as pessoas tomaram a iniciativa de procurar as DRTs, mas ainda existe uma cultura de associar as delegacias do trabalho apenas a questões de seguro-desemprego e legislação do trabalho", afirma Manoel Veras.
Segundo ele, o orçamento para 2004 está previsto em R$ 200 mil para realização de atividades relacionados ao combate à discriminação no trabalho. Apesar do baixo índice de denúncias recebidas, na avaliação de Manoel Veras, houve um avanço em relação ao governo passado. "O governo Lula criou este ano duas secretarias com status de ministério: a de Igualdade Racial e a de Defesa dos Direitos da Mulher. Toda a discriminação passa por estes dois eixos. Significa atenção do governo para essas questões", diz Manoel Veras.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, o tipo de discriminação mais visível e mais fácil de autuar devido à existência de uma legislação é contra os portadores de deficiência. Os números têm diminuído em função também da atuação do ministério contra a criação de listas negras levantadas por empresas especializadas contra trabalhadores que reclamaram na Justiça do Trabalho e que começam a não ser contratados pelas outras empresas em razão disso.
Ele acredita também que o índice de discriminação tenha caído porque o MP atuou junto às empresas que possuem mais de 100 empregados para que cumprissem a cota legal para portadores de deficiência.
A coordenadora do núcleo do DF, Ivana Freitas, afirma que no Distrito Federal mais de 50% dos casos de discriminação estão relacionados ao assédio moral. Já denúncias relacionadas à discriminação contra portadores de deficiência, na capital federal, são menos freqüentes. "Acho que por causa da lei que protege muito os portadores de deficiência e porque ter essas pessoas como funcionários representa hoje status para as empresas. Por outro lado, parece que o fato de a capital federal estar associada ao poder influencia o assédio moral. É assustadora a quantidade desses casos no DF", afirma Ivana Freitas.
Segundo ela, acontece também, com menos freqüência, casos de pessoas serem discriminadas ao procurar emprego porque têm o nome no Serasa ou porque entraram na Justiça contra a antiga empresa em que trabalhavam por questões trabalhistas. A função dos núcleos é principalmente firmar um entendimento entre empresa e funcionário, evitando que o caso seja levado ao Ministério Público.
O procurador Brito Filho afirma que a discriminação será enfrentada com mais vigor a partir de 2004. segundo ele, ao concluir o levantamento de dados sobre a discriminação no país, será dado início, como prioridade para o próximo ano, a um levantamento sobre portadores de HIV. Se forem confirmados os altos índices de discriminação, será realizada uma campanha de combate à discriminação principalmente de gênero e de raça.
Levantamentos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano passado, mostram que a atuação do negro no mercado de trabalho está muito aquém dos não negros e isso indica comportamento exclusivo. O procurador afirma que o trabalho poderia ser intensificado se houvesse atuação conjunta com as entidades sindicais. "Elas atuam bem pouco nessa área".
Segundo o procurador, outra vertente na qual se pode atuar com mais rigor é contra a discriminação de gênero, porque a participação da mulher no mercado de trabalho, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo, não corresponde ao percentual delas na sociedade brasileira. Ele estima que as mulheres correspondem a 52% da população e não ocupam as vagas nessa proporção, principalmente em cargos de chefia ou postos mais elevados dentro das empresas.
De acordo com o procurador, o Ministério Público pode garantir o emprego aos trabalhadores
discriminados e uma indenização por danos sofridos. "Tem que se entendido que esse tipo de comportamento causa um dano à própria sociedade e aí a empresa pode responder pelo que chamamos de dano moral coletivo, quando agredimos o direito da própria sociedade de ter suas normas cumpridas", diz.
O procurador destaca como ponto importante a criação de vagas, porém, segundo ele, boa parte delas não foi preenchida na totalidade por falta de qualificação profissional. Ele afirma que agora o problema no país não é mais trabalhista, mas de ordem educacional. "Chegamos numa encruzilhada. O Ministério Público e as DRTs conseguiram que as empresas reconhecessem as vagas, mas só 50% foram preenchidas. Então agora é preciso atacar outro problema que é a educação", diz Monteiro.
O procurador afirma que pretende traçar uma estratégia de plano nacional junto com o Ministério da Educação e as entidades do Sistema S, que inclui o Senai e o Senac, para criar cursos de qualificação que incluam os portadores de deficiência, preparando-os para o mercado de trabalho.
O combate à discriminação no Brasil é recente. Foi a partir de 1995, após o Brasil ser denunciado na Organização Internacional do Trabalho (OIT), por práticas discriminatórias, e após se tornar membro efetivo da OIT, que o país passou a proibir qualquer forma de discriminação no trabalho. Naquele ano, durante a 83º Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, o
governo brasileiro assumiu oficialmente a existência da discriminação no mercado de trabalho e adotou as diretrizes da Convenção 111 por meio do Programa Brasil, Gênero e Raça.
A Convenção 111 da OIT considera discriminação toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por finalidade alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão.