Brasília, 18/12/03 (Agência Brasil - ABr) - Um dos grandes obstáculos à alimentação adequada de crianças e adolescentes começa no lanche escolar. Seja por vergonha ou dificuldade de identificação diante do grupo com o qual convive, o jovem consumidor de sanduíche, batata frita e refrigerante (fast food) acaba crendo que seus hábitos alimentares são saudáveis e, portanto, melhores do que muitos de seus colegas de escola. Os resultados deste engano vêm se manifestando nas novas gerações, onde cada vez mais as crianças apresentam problemas de saúde como obesidade, diabetes e hipertensão.
Em virtude do novo quadro de saúde escolar no país e com a motivação de interromper esse crescimento do número de crianças doentes, estudantes e nutricionistas da Universidade de Brasília (UnB) junto ao Ministério da Saúde desenvolveram um projeto para ensinar às crianças e os adolescentes a importância de uma alimentação saudável. O projeto, batizado de "Escola Saudável", se iniciou em 2000 em uma escola da rede pública, com a aplicação de algumas estratégicas pedagógicas e resultou na elaboração de um kit educativo, entregue a cada escola.
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A professora Maria de Lourdes da UNB |
Segundo Maria de Lourdes Rodrigues, nutricionista e coordenadora do projeto, tanto as escolas da rede pública como da rede privada do Distrito Federal (DF) receberam um kit contendo jogos infantis que foram desenvolvidos pelas e para as crianças, sendo eles um quebra-cabeça, tabuleiro e o jogo da memória. Além de um CD-rom para os professores, o kit contêm planos de aula e sugestões de como trabalhar em um ambiente escolar as questões alimentares para os alunos.
"No jogo do tabuleiro abordamos a importância da comida saudável. Um dos instrumentos utilizados na promoção dessa alimentação é a pirâmide dos alimentos, que já é considerada um ícone dentro da alimentação. Por meio desse jogo, levamos a criança a entender quais são os produtos que podem ser mais consumidos e os que não. Trabalhamos com a criança fazendo uma analogia com o sinal de trânsito, o semáforo. A cor verde, que é a base da pirâmide (frutas, verduras, hortaliças, pães, cereais), aponta a passagem livre, ou seja, podem ser consumidos de maneira mais livre durante o dia. A cor amarela, que é o meio da pirâmide (carnes, proteínas, derivados do leite), indica alerta. E o vermelho, que é o topo da pirâmide (doces, salgadinhos, refrigerantes, balas, gorduras), indica pare, ou seja, tem que ter um controle maior", explica Maria de Lourdes.
O projeto trabalha com a escola tipo A e a tipo B, que são diferenciadas pelos meios de ações realizadas. A primeira conta com a equipe do projeto que se insere dentro do contexto escolar. A equipe é formada por nutricionistas, alunos do curso de nutrição e uma pedagoga. "Trabalhamos com toda a comunidade escolar, ou seja, a criança, o educador, os pais e os proprietários de lanchonete. Além de ter o apoio do kit, temos outras estratégias como a caixa de fantoche que narra uma historinha elaborada pela equipe do projeto. A idéia não é trabalhar com a questão do alimento proibido e sim com a quantidade e qualidade, entendimento e responsabilidade na escolha do alimento", acrescenta a coordenadora.
Em junho último, os responsáveis pelo projeto promoveram na UnB o primeiro encontro de capacitação para os proprietários de lanchonete escolar. Eles conheceram a lei que tramita no DF para a regularização dos alimentos vendidos em cantinas escolares. Foram três dias de reuniões com a abordagem da alimentação saudável, onde os donos das lanchonetes são parceiros e co-responsáveis pelo cuidado da saúde das crianças. "Em um primeiro momento, os comerciantes e os pais se mostraram resistentes com a proposta, pois o modelo atual é mais fácil. Os pais teriam que se readequadar não pela força de lei e sim pela consciência, sua importância nesse processo. É lógico que os pais se sensibilizaram, mas de imediato não conseguimos muito adeptos", conta Maria de Lourdes.
Alex de Lima Farias, dono da cantina Geração Saúde no Centro de Criatividade Infanto-Juvenil (CCI), da cidade satélite de Samambaia, foi um dos que apresentaram a maior resistência a nova proposta. "A princípio a minha reação foi negativa, achei que a minha lanchonete viraria um sacolão e que as frutas e os sucos in natura, não teriam saída. Ao contrário do que imaginava os alimentos têm boa aceitação, as vendas não foram afetadas, mas isso ocorreu devido ao apoio e a educação dos pais e professores", confessa.
"Resolvi aderir ao projeto por meio do meu filho, pois percebi que a alimentação da escola não era saudável. Sempre foi mais fácil dar a ele dinheiro para comer na cantina do que fazer a lancheira. Para colocar novos alimentos na minha cantina, comecei aos poucos tirando os salgadinhos, refrigerantes, balas e doces, e fui substituindo por frutas coloridas, que chamam a atenção, e os sucos e salgados assados", diz Farias.
Para o dono da cantina os pais procuram os alimentos mais fáceis e se descuidam da qualidade da alimentação do filho. Na escola o aluno terá uma boa educação alimentar, além de ter um lanche saudável. Farias pretende criar personagens, fazer teatros e campanha de redações para aumentar o consumo desses alimentos em seu estabelecimento.
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Jeanine satisfeita com o movimento em sua lanchonete |
Jeanine Schuabb, dona de cantina na escola Rogacionista na cidade satélite do Guará II, também participa do projeto e se sente muito motivada em passá-lo à frente. "Na minha lanchonete tenho 120 crianças assíduas, de outubro para cá houve uma adesão de 40 crianças, a título de experiência. Além do lanche de balcão a exemplo do Farias, trabalho com sistema de bandejinhas onde seguimos um cardápio com mercadorias pesadas e equilibradas em calorias, que são elaboradas com ajuda das nutricionistas responsáveis pelo projeto", expõe.
Na percepção de Jeanine, os pais adoraram a idéia, mas as crianças relutam um pouco. Para conquistá-las, ela pretende colocar a cada quinze dias um brinde dentro das bandejas e oferecer alimentos coloridos para chamar a atenção. "As crianças não entendem que têm de deixar de comer isso e passar a consumir aquilo. O trabalho é longo, temos que seguir de perto, mas é muito compensador. O lucro do refrigerante e do salgadinho não é o mesmo, mas as vendas estão sendo muito maiores", diz.
Maria de Lourdes acrescenta que os donos de cantinas não tiveram prejuízos, assumiram outro tipo de serviço que o próprio pai busca, mas não sabe onde encontrar. "Temos que considerar todas as atividades modernas do cotidiano onde a mãe não tem mais tempo de preparar a lancheira. O alimento mais saudável requer uma atenção maior", comenta.
Na escola tipo B, não se atua dentro do ambiente escolar. Os responsáveis levam os professores para a UnB e realizam oficinas de capacitação, trabalhando com temáticas que eles devem desenvolver nas escolas. O projeto trabalha com todos os benefícios que a alimentação saudável leva para a vida. "A criança é um grande agente multiplicador e até mesmo de cobrança para a família. Quanto mais cedo se levar essa informação principalmente no ambiente escolar, que é o primeiro estágio de aprendizagem da criança, é ali que ela forma o seu hábito alimentar e aonde ela pode memorizar esses hábitos de valor por toda a sua vida", explica Maria de Lourdes.
"A formação dos hábitos alimentares é um processo que se inícia desde o nascimento com as práticas alimentares introduzidas nos primeiros anos de vida. Posteriormente, vai sendo moldado, tendo com base as preferências individuais, as quais são determinadas geneticamente, pelas experiências positivas e negativas vividas com relação à alimentação, pela disponibilidade de alimentos dentro do domicílio, pelo nível socioeconômico, pela influência da mídia e pelas necessidades fisiológicas. Por todas essas considerações deduz-se que quanto mais cedo instalar hábitos alimentares corretos maior a probabilidade de que permaneçam na vida futura. Assim, a educação alimentar exige longo tempo de ação e a escola faz parte desse processo, intervindo na cultura e nas atitudes com bases cognitivas", resume Márcia Regina Vitolo, professora do curso de nutrição da Unisinos, em São Leopoldo (RS).
Grande parte das doenças crônicas degenerativas, dizem os especialistas, se deve à questão da alimentação e a falta de atividade física. A obesidade, o diabetes e a hipertensão aumentam a cada dia em função do sedentarismo e pelo erro alimentar. "O que temos reparado nesses últimos anos" comenta a nutricionista Valéria Paschoal, de São Paulo, "é que as crianças começam a consumir mais gorduras, mais fritura e mais carboidratos (doces e refrigerantes). Esses carboidratos aumentam a produção de insulina que leva a obesidade e a gordura, aumentando o valor calórico. Paralelo a isso o sedentarismo. Cada vez mais as crianças estão dentro de casa em frente ao computador e a televisão. Assim, comem mais e gastam menos energia. Isto está levando as crianças à obesidade", afirma ela
Outro sério problema verificado é o crescente número de casos de diabetes em crianças. Valéria observa que cada vez mais as crianças consomem muito doce. Com isso ocorre a liberação da insulina, a disponibilidade de consumir o açúcar. "Quando a criança tem insulina em excesso ela acaba desativando um dispositivo chamado betagenético. Esse dispositivo alterado passa a elevar o consumo de potássio na região abdominal. A insulina circulante nessa região não consegue fazer com que a glicose atravesse o ambiente da célula. Então, a pessoa com muita insulina e um grande volume de glicose circulante apresenta a chamada diabetes do tipo 2, causada pela resistência periférica a insulina", explica.
A alimentação saudável é aquela que se aproxima da natural. Quanto mais as pessoas se chegam ao consumo de frutas e hortaliças, mais se desviam da alimentação não saudável, dos alimentos calóricos. "Estamos trabalhando nessa linha de pensamento, tentando fortalecer esse hábito e desmistificando para a população que a alimentação saudável não é aquela que não tem paladar, sem gosto, uma alimentação cara. Isso tudo é um mito. Temos levado a população a identificar qual é o alimento regional inserido em nessa alimentação, qual é alimento que está na safra, a ir em busca de promoções, junto a outras estratégias", diz a professora Maria de Lurdes.
Em 2002, todas essas ações nas escolas foram solidificadas e agora o projeto caminha para a avaliação das estratégias. "O Ministério da Saúde está bastante empenhado e preocupado com essa questão", garante Maria de Lourdes. Na opinião de Márcia Vitolo, "temos que valorizar o hábito alimentar do brasileiro". Ela vê a criança como "o alvo principal desse processo, pois elas vão incorporando conceitos adequados de forma gradual, sem pressões, de maneira que possam, a longo prazo, interferir em suas práticas alimentares de forma efetiva". A escola, lembra ela, tem papel importante na estruturação da cultura dos grupos populacionais e, portanto, deveria ser melhor explorada para a formação do hábito alimentar, o qual sem dúvida tem um forte componente cultural.