Brasília, 18/12/2003 (Agência Brasil - ABr) - A fome é a mais tenebrosa das carências e, apesar de todo avanço científico e tecnológico acumulado pela humanidade, ainda afeta mais de 800 milhões de pessoas no mundo. Os especialistas chamam está carência de "insegurança alimentar". Isto ocorre apesar de na Cúpula Mundial de Alimentação, em 1996, ter sido produzido um documento afirmando que "todos têm direito ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais e nem o sistema alimentar futuro".
Em busca de soluções para esta carência que alcança uma grande parte da população brasileira, as universidades de Campinas (Unicamp), de Brasília (UnB), de Connectitut, nos Estados Unidos, a Federal da Paraíba (UFPB) e o Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa) desenvolveram um projeto que mede a insegurança alimentar das família no Brasil.
Muriel Bauermann Gubert, nutricionista e pesquisadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da UnB, explica que esse projeto foi executado há alguns anos nos Estados Unidos pela pesquisadora Radimer na Universidade de Cornell. "Ela fez uma pesquisa quantitativa, ouviu pessoas sobre o que elas achavam que era segurança alimentar, como se sentiam em relação a isso, o que era estar inseguro em termos alimentares entre outras. Radimer entrevistou diversas pessoas e formulou uma série de conceitos que dividiu em categorias e por fim acabou transformando esses conceitos em um questionário que traduzia toda essa percepção das pessoas em relação a insegurança", informa.
As formas clássicas de se medir a insegurança são pelos métodos de mensuração como os indicadores antropométricos que são utilizados para medir uma criança emagrecida mostrando se ela está tendo privação de comida; dados da agricultura - a quantidade de alimento disponível no país transformado em energia, dividido pelo número de pessoas e o resultado é a disponibilidade que será o padrão de referência - se for abaixo desse padrão a população está insegura -; renda e gastos no domicílio e consumo alimentar no domicílio. "Se a população tem muita criança desnutrida e muitos adultos emagrecidos, sabemos que é uma população insegura", esclarece Muriel Gubert.
O questionário elaborado pela pesquisadora norte-americana é baseado na percepção das pessoas em relação a sua condição de insegurança e segurança alimentar. Por ter esta base, Radimer entra também no caráter da percepção psicológica. "A pessoa tem que ter certeza de que ela não terá privação de comida para estar segura. Hoje, uma das coisas que mais ocorre é a falta de certeza de privação de comida, as pessoas não passam fome, mas elas tem medo de perder o emprego daqui um mês e não ter o que dar de comer para os filhos", relata Muriel Gubert.
"Para adaptar esse instrumento no Brasil foi feita a tradução do trabalho para o português. Depois, passou-se a uma fase de validação e adaptação desse instrumento nas regiões de Campinas (SP), Manaus, João Pessoa (PB) e Brasília, onde esse questionário foi aplicado. Foram realizadas reuniões com especialistas até se chegar ao final desse processo com um instrumento que é válido para a zona urbana do Brasil. Hoje, já temos o instrumento que podemso utilizar para medir a insegurança no Brasil", analisa a nutricionista.
As 15 perguntas contidas no questionário são muito parecidas entre si e medem os vários níveis de insegurança. Cada uma tem um valor para avaliar se a insegurança é leve (preocupação e alimentação sem qualidade), moderada (adultos com fome) e grave (crianças com fome). No Brasil, depois da validação desse instrumento, existem dois estudos populacionais que dão base, um de Campinas e o de Brasília.
"Na última campanha de vacinação infantil, em Brasília, fizemos uma pesquisa de amostra populacional com 1860 famílias, dividindo por todas as regiões do Distrito Federal (DF). Entrevistamos pessoas de todas as classes socioeconômicas. Foram 16 centros de saúde visitados na Asa Sul, Lago Sul, Guará, Taguatinga, Gama, Ceilândia, Paranoá, São Sebastião, Candangolândia e Recanto das Emas. Dessa amostra retiramos uma sub amostra de 560 crianças que analisamos antropometricamente para observar a questão da desnutrição e obesidade", conta Muriel.
"Muitas vezes encontramos pessoas passando fome, inseguras em termos alimentares mas obesas, com sobrepeso, pois consomem alimentos calóricos e mais baratos. Se fizéssemos só a medição antropométrica, ela me indicaria que a pessoa está com sobrepeso. A princípio observo que essa pessoa não está passando fome, ou seja, não está insegura. Então, esse instrumento me dá esse outro caráter. As pessoas, es vezes, não comem durante o dia todo e a noite consomem alimentos calórico para saciar a fome. Assim, esses aspectos, se não for aplicado o instrumento desenvolvido, não conseguimos observar", explica a nutricionista.
Na pesquisa realizada no DF observou-se que 7,6% da população tinham uma insegurança alimentar severa, ou seja, crianças passando fome. Verificou-se ainda que 14,3% têm insegurança alimentar moderada e 38% insegurança leve. Muriel Gulbert disse que um dado assustador é que 39,9%, só da população do DF, está segura em termos alimentares, não tendo preocupação nenhuma com a falta de comida. Segundo ela, "quanto menor a renda, maior a insegurança. É nítida essa relação de renda com a insegurança. Para as famílias acima de um salário mínimo per capita não achamos casos de insegurança alimentar grave. Se olharmos o percentual da família brasileira que tem essa renda é mais ou menos 50% da população, segundo dados do IBGE. É uma situação urgente".
A grande preocupação dos nutricionistas envolvidos no projeto era ver se o instrumento desenvolvido era realmente válido, se era capaz de captar os aspectos necessários para medir a insegurança alimentar. Foi observado que existem alguns alimentos que são consumidos em menor quantidade como carnes, leites e derivados, frutas e legumes, pois são mais caros. Já outros alimentos não são sensíveis tanto para as famílias seguras como as inseguras como os alimentos da cesta básica.
Com relação ao consumo de refrigerantes, Muriel diz que "existiu uma diferença no consumo entre as famílias segura e inseguras. As primeiras tomam muito mais refrigerante, mas entre as famílias inseguras, cerca de 20 a 30% consomem refrigerante todos os dias. Mesmo nessa população que tem privação de alimento, o consumo da bebida é indiscriminado. A valorização é enorme, até mesmo por conta da mídia. Por isso, é importante educar as pessoas para que saibam distinguir entre alimentos saudáveis e não saudáveis".
O projeto permanece em andamento no DF e os responsáveis tentarão monitora essa situação. Muriel informa existir uma negociação com o IBGE e o Ministério da Saúde para extender o projeto para o restante do país. "A intenção é que ele se torne um instrumento de avaliação política" diz. Ela ressalta que a pesquisa ainda está em fase inicial, mas a proposta é expandir. "Há uma mobilização enorme de todos os países em torno desse tema", acrescenta.