"Sobreviventes" da favela abrem Semana da Consciência Negra

18/11/2003 - 18h08

Rafael Gasparotto

Era madrugada de 29 de agosto de 1993. A favela carioca de Vigário Geral já se preparava para iniciar mais uma jornada quando foi invadida por um grupo de quase cinqüenta homens encapuzados. Fortemente armados, eles arrombaram casas. Assassinaram 21 moradores e feriram 4, entre jovens, adultos e crianças. A chacina teria ocorrido em represália à execução de quatro policiais militares, executada por traficantes da região no dia anterior. Mais uma, na história das chacinas em favelas brasileiras.

Como parte das comemorações pela Semana da Consciência Negra, o Teatro Dulcina, em Brasília, recebeu, na noite desta segunda, 17, a apresentação do Grupo Cultural Afro Reggae. Mais do que artistas, um grupo de sobreviventes dessa tragédia famosa e de tantas outras desgraças cotidianas que assolam os negros das favelas brasileiras. E uma referência pública para uma população outrora conhecida por uma chacina.

Negros, sim. Estamos falando de um país onde homens e mulheres de cor negra e parda ganham apenas metade do salário médio da população branca. Segundo a pesquisa, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mesmo os negros que conseguem chegar à universidade não garantem um rendimento semelhante aos dos brancos de igual nível de escolaridade.

Na população de 20 a 24 anos, o percentual de brancos na universidade atinge 53,6%, enquanto apenas 15,8% são negros e pardos. Nessa faixa etária, 44% dos negros e pardos ainda nem terminaram o ensino médio, e 34,2% ainda estão no ensino fundamental. Os dados do IBGE apontam também que, entre o 1% mais rico da população, quase 88% são de cor branca. Entre os 10% mais pobres, cerca de 68% se declararam negros ou pardos.

Em 1993, o Núcleo Comunitário de Cultura do Vigário Geral criou oficinas de dança, percussão, reciclagem de lixo, futebol e capoeira. Assim, poderiam fornecer uma formação cultural e artística para que os freqüentadores pudessem criar uma noção de cidadania e transformar-se em multiplicadores para outros jovens.

O intuito era atrair crianças e jovens para que não começassem a lidar com o tráfico. "Nossa abordagem era diferente. Não tínhamos regras como exigir que estivesse estudando, que não usasse drogas ou que não mexesse com tráfico. Se fizéssemos isso estaríamos espantando justamente quem queríamos atrair: o pior, o traficante", explica Altair Martins.

A única regra que impunham era que não entrassem armados nas dependências do projeto. O método deu certo. O resultado obtido nestes dez anos é que Vigário Geral teve uma queda acentuada em níveis de criminalidade e expandiu o projeto para três outras comunidades.

Segundo o coordenador do Afro Reggae, o percussionista Altair Martins, o projeto foi importante porque tirou o glamour que havia sobre a figura do traficante. "O traficante era nosso modelo. Não conhecíamos pessoas como Zumbi. Era o traficante que fazia o papel de governo. Ele dava lazer para comunidade, tinha as melhores roupas, o dinheiro e poder para decidir quem vivia ou morria". O percussionista afirma que o Afro Reggae surgiu como uma alternativa para outra vida. "Até 1995, Vigário Geral só era vista nas páginas policiais. Depois disso, nós passamos a ser vistos nos cadernos culturais", afirma, entusiasmado.

Martins lamenta que muitos ainda não conheçam a biografia de grandes líderes negros, como Zumbi dos Palmares e Nelson Mandela, mas afirma que a facilidade de acesso a trabalhos como o desenvolvido por seu grupo tem criado uma geração mais consciente. "Foi no Afro Reggae que começamos a conhecer os líderes negros. Com o tempo, as pessoas vão respeitar o 20 de novembro como fazem com o 7 de Setembro. O Brasil é o país fora da África com a maior população negra no mundo. Chegou a hora de valorizar isso", defende.

O percussionista afirma que trabalhos comunitários desenvolvidos nos morros são uma forma de dar oportunidades a crianças e adolescentes. De outra maneira, eles veriam apenas o tráfico de drogas como meio de ascensão social. O projeto do qual ele participa é um bom exemplo da eficácia dessa iniciativa.

Embora as desigualdades sociais persistam, o diretor da Fundação Cultural Palmares, Zulu Araújo, afirma que os afrodescendentes já obtiveram muitas conquistas. "Tivemos a penalização do racismo como crime inafiançável na Constituição. Tivemos a implantação de cotas para contratação de funcionários em vários ministérios. Temos cinco universidades federais que já utilizam cotas para seleção de seus alunos. O mais importante é que temos uma mobilização do movimento negro capaz de fazer frente e indicar caminhos para que possamos superar a discriminação racial no Brasil", afirmou Araújo.