''Tempo de Resistência'' mostra aos jovens triste capítulo da história brasileira

01/11/2003 - 8h08

Brasília, 30/10/2003 (Agência Brasil - ABr) - Era 31 de março de 1964. Tropas militares começavam a se movimentar nas ruas de Minas Gerais contra o governo do então presidente João Goulart. Jango, como era popularmente chamado, discursava a favor das reformas tributária e agropecuária, o que fazia a direita brasileira temer o comunismo. A esquerda não se movimentou contra as tropas militares esperando pela ação do presidente, que não aconteceu. Em 1º de abril de 1964, se consolida o golpe militar. Era o começo de uma ditadura que duraria 20 anos, um período de lutas armadas, guerrilhas, prisões, torturas e mortes. Hoje, 40 anos após o golpe e 20 depois da restauração da democracia, o Brasil ganha o primeiro documentário, em longa-metragem, que conta um pouco desse triste capítulo da história nacional.

"Tempo de Resistência", dirigido por André Ristum, teve pré-estréia em Brasília, no Espaço Cultural Zumbi dos Palmares, no Congresso Nacional. São 115 minutos de depoimentos, testemunhos e imagens de arquivo.

O golpe militar brasileiro teve o apoio dos EUA. "A expectativa dos Estados Unidos era de que o Brasil se dividisse em dois", conta Leopoldo Paulino, escritor do livro homônimo que originou o filme. "Grande parte da igreja também apoiou o golpe", diz Dom Angélico Benardino. Segundo o religioso, demorou bastante tempo para que a igreja percebesse o que de fato seria a ditadura. E não era apenas a igreja que não fazia idéia do que seria o governo militar, mas os próprios brasileiros - "as pessoas comemoravam o fim do comunismo", lembra Franklin Martins. Leopoldo Paulino, José Dirceu, Aloysio Nunes, Carlos Russo, Franklin Martins e Vanderley Caixe são alguns dos ex-estudantes revolucionários que dão depoimentos no filme e que participaram da guerrilha e da luta contra os militares.

Alguns meses após o golpe, a lei Suplicy de Lacerda proibe o movimento estudantil. Foi então que os estudantes passaram a enfrentar a polícia e se trasformaram num dos mais fortes combatentes da ditadura. Nesta mesma época, os norte-americanos também ajudaram o governo brasileiro a privatizar o ensino público, o que trouxe conseqüências graves para o sistema educacional do País, sentidas até hoje.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Partido Comunista Brasileiro começaram então a se organizar. "Quando entrei no partido, em 66, já se defendia a guerrilha e a luta armada", recorda Leopoldo. A idéia era criar uma organização para promover uma guerrilha rural e posteriormente chegar às cidades. Foi criada então a Aliança Libertadora Nacional (ALN). O problema foi que ninguém tinha noções de guerra. "Até manual de escoteiro nós usamos para aprender a fazer uma guerrilha rural", conta Vanderley Caixe. A organização passou a desviar armas dos quartéis e quem assumiu o controle da munição foi Darci Rodrigues. "Era uma sensação de pavor. Eu podia matar alguém ou morrer a qualquer hora", diz Darci.

O dia oito de outubro de 1968 é marcado pelo aniversário de um ano da morte do líder revolucionário cubano Ernesto Che Guevara. A esquerda brasileira decide homenageá-lo assassinando o capitão americano Raymond Chandler, um confesso torturador que ensinava suas técnicas aos militares brasileiros. "Os americanos vieram aqui para ensinar tortura, então que morressem também", diz Carlos Russo. Foi neste ano que o povo brasileiro passou a ir para as ruas protestar contra a ditadura. Quando o estudante Edson Luis foi morto, 65 mil pessoas vão ao seu enterro. Em 1º de março, mais de 10 mil trabalhadores se reúnem na Praça da Sé e, em junho, na Guanabara, um policial é morto pela primeira vez.

É em 68 também que ocorre o mais famoso protesto, a Passeata dos 100 mil, em que os militares concordaram em retirar as tropas das ruas para não haver um enorme derramamento de sangue. No mesmo ano, é realizado ainda o mais conhecido roubo, o Assalto ao Trem Pagador, coordenado por Rafael Martinelli. O histórico 30º Congresso da UNE foi realizado em Ibiúna,12 de outubro de 68. Descoberto pelos militares, quase 800 estudantes foram presos, entre eles José Dirceu, Leopoldo Paulino e Franklin Martins. "Quando chegamos no presídio houve um fato inédito, fomos aplaudidos pelos detentos comuns que estavam nas celas", lembra Leopoldo. A libertação dos estudantes foi gradual, "teve gente que ficou até um ano e meio preso", afirma Franklin.

A prisão dos estudantes da UNE não foi a única repressão severa. Após vários protestos, houve um endurecimento do regime não só nas ruas, mas nas também nas instituições de ensino. A Universidade de Brasília (UnB) foi brutalmente invadida, o que culminou na morte de um estudante e vários outros feridos, entre eles Valdemar Silva (que faz o relato do crime no filme "Barra 68, sem perder a ternura", de Vladimir Carvalho).

Como não foi suficiente controlar a educação, o Congresso Nacional foi fechado e decretado o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Chegava ao extremo a censura de jornais, TVs, músicas e teatros. Os jornais passaram a ter militares de plantão nas redações e só eram liberados para a gráfica depois de serem lidos. As atividades culturais também passaram pelo mesmo processo e só podiam ser apresentadas depois de serem aprovadas. "Era preciso calar toda a oposição", diz Franklin.

A Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), responsável por controlar as ações dos cidadãos, já não era suficiente. Então, foi criada a Operação Bandeirante. Mais repressora e menos burocratizada, agia mais rápido e não precisava prestar contas de seus atos ao governo, pois fazia parte dele.

Em 69, a esquerda planeja libertar os estudantes presos e percebe que era mais fácil capturar alguém e trocar pelos estudantes que invadir um prédio fortemente armado. Sem seguranças, com um carro que não era blindado e um motorista português já velho, o embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, era a vítima perfeita. A operação foi coordenada por Jonas Toledo, assassinado meses depois pelos ditadores. Entre os 15 estudantes libertados em troca do embaixador estava o ministro da Casa Civil, José Dirceu, solto no México.

A troca é realizada por ordem do governo norte-americano mas, em resposta ao seqüestro, a repressão aumenta ainda mais. Os atos institucionais (AIs) 13 e 14 são editados e criam o banimento, a prisão perpétua e a pena de morte para casos de ações subversivas.

Em 1969 , Médici assume o poder e institui a época mais violenta e repressora da ditadura militar. Nesta época, verifica-se o maior número de registros de desaparecimentos no Brasil. Em 70, a Aliança Libertadora Nacional finalmente consegue inaugurar o campo de treinamento de guerrilha, que foi descoberto pelos militares e nunca chegou a funcionar. A seleção brasileira ganha a Copa do Mundo e o fato é usado pelo governo para promover a imagem do Brasil, aqui e no exterior, como um país em progresso.

O revolucionário Joaquim Ferreira Câmara, o Toledo, regressa ao Brasil para morrer, após exílio em Paris. Para ele, era fundamental lutar, mesmo sabendo que morreria. Antes de voltar, em uma conversa com outros exilados brasileiros, diz que seu lugar ‘não é na Europa, mas ali’, apontando para uma funerária. Carlos Mariguella é assassinado a tiros e Eduardo Fleury, o Bacuri, torturado até à morte. Os estudantes revolucionários são violentamente combatidos. Para não serem mortos, os estudantes, políticos, músicos e jornalistas perseguidos estavam exilados. "O revolucionário é, em primeiro lugar, um humanista", diz Carlos Russo.

Todos esses episódios fazem parte do filme "Tempo de Resistência". Para Leopoldo Paulino, o que mais lhe gratifica como autor do livro homônimo é poder tornar pública esta parte da história nacional para que a juventude atual tome conhecimento do que houve. "A pena e a condenação dos torturadores e assassinos é divulgar o que eles fizeram. Eu tenho orgulho de contar essa história, eles têm vergonha", diz. O filme ainda está em VHS. O diretor André Ristum, que pesquisou o assunto por mais de dois anos antes de filmar, pretende passar "Tempo de Resistência" para película até o fim do ano e, em 2004, estar contando essa história nos cinemas.

A produção do filme coincide com o trabalho da Comissão de Anistia, criada pelo governo federal para analisar pedidos de indenização de pessoas que tenham sido impedidas de exercer atividades econômicas, de 1946 a 1988, por motivos políticos. Desde agosto de 2001, 26 mil pedidos já foram autuados. As indenizações chegam a R$ 100.000,00 por pessoa. Esta é a primeira vez que se reconhece oficialmente os abusos da ditadura e seus prejuízos morais e financeiros à nação brasileira.
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GA