Lia Rangel
Repórter da Agência Brasil
Representante da BBC desvenda o funcionamento da rede pública inglesa, cujo orçamento
anual, equivalente a R$ 12,4 bilhões, se baseia em taxa cobrada diretamente dos cidadãos que possuem televisores em casa. Uma estrutura que mantém mais de 2 mil jornalistas por todo o mundo para produzir informação em 43 idiomas
Brasília - Com mais de 70 anos de experiência na produção e transmissão de notícias, a British Broadcasting Communication, mundialmente conhecida como BBC, é diariamente desafiada a manter seus valores. Na era da informação e dos conglomerados da comunicação, como a gigante Time-Warner, a rede pública britânica afirma manter acima de qualquer interesse sua independência editorial e financeira, característica que a diferencia das demais organizações. Recentemente, o caso do suposto suicídio do cientista David Kelly, que revelou à BBC haver irregularidades nos relatórios que levaram Tony Blair a apoiar a guerra no Iraque, trouxe à tona a discussão sobre o papel que a rede britânica deve ocupar.
O incidente levou aos tribunais ingleses gente do alto escalão, como o próprio premier, além de jornalistas e diretores da BBC. O julgamento não só tratou do crime, mas evidenciou que, nas redações da rede, não há espaço para a influência do governo. O vice-diretor do Serviço Internacional da organização, Nigel Chapman, assegura: a BBC não é um braço do governo, e o foco de seu trabalho está em servir o interesse público.
Em visita ao Brasil esta semana, Chapman atendeu ao convite da Secretaria de Comunicação da Câmara dos Deputados, e proferiu, na última segunda-feira (20), palestra em que sustentou a necessidade da preservação de uma empresa pública. Para uma platéia de jornalistas e parlamentares, ele falou sobre o novo contexto mundial, que impõe novos desafios à rede britânica. Na visão de Chapman, o bombardeio diário de informações facilitado pelas novas tecnologias faz com que vivamos em um mundo "tecnologicamente conectado, mas com os interesses mútuos mundiais desconectados". Ele assegura que cabe a uma empresa pública de comunicação trabalhar pela coesão nessa rede de informações.
Para ele, o grande diferencial da BBC é não ter de seguir a lógica imposta pelo mercado - que leva ao atendimento dos interesses de anunciantes e acionistas. "A informação é tratada como bem público e não como produto. Somos independentes, porque somos públicos. E isso não significa que somos governamentais. Buscamos, portanto, a informação exata, imparcial e justa", explica Chapman. Característica que só é possível pela estrutura singular que sustenta a rede britânica.
A BBC é gerenciada por um conselho formado por 12 representantes da sociedade civil e do governo. O conselho tem função consultiva e regulatória, pois trabalha, principalmente, para assegurar a distância da organização da influência do governo. O grupo não influencia nas atividades cotidianas da empresa, diferentemente do que ocorre nas empresas privadas. O orçamento da BBC é o resultado da contribuição anual de 116 libras (pouco mais de R$ 500) por parte de cada proprietário de um televisor em todo o território britânico. A quantia total arrecadada chega a 2,6 bilhões de libras por ano (cerca de R$ 12,4 bilhões).
Além de ser a principal fonte de notícias na Grã-Bretanha, a organização mantém um serviço internacional de informação em 43 idiomas. São mais de 2 mil jornalistas, distribuídos por 250 escritórios em diferentes países. Para esse serviço, o Ministério das Relações Exteriores destina 200 milhões de libras anuais. Possui emissoras de rádio por diversos países, de São Tomé e Príncipe à Albânia. Também trabalha como agência de notícias e envia boletins diários para serem retransmitidos por rádios locais. Além das transmissões para rádio, mantém canais de televisão e sites de notícia. Estima-se que 150 milhões de pessoas tenham acesso diário aos seus serviços.
Em entrevista à Agência Brasil, Chapman falou sobre os desafios do jornalismo público diante da pressão das grandes corporações, além das estratégias da ampla cobertura internacional. Reafirmou também a independência da BBC, característica, que segundo ele, reflete "o caráter do povo britânico".
Agência Brasil - No mundo globalizado, inserido na chamada sociedade da informação, qual o papel do jornalismo público e como ele se diferencia do jornalismo comercial?
Nigel Chapman - Eu acredito que não há muita diferença entre os profissionais que trabalham com o serviço público e com o comercial. Quero dizer, a atividade jornalística, em sua essência, se constrói ao investigar os acontecimentos, ouvindo diferentes pontos de vista, para chegar a um trabalho final que apresente uma versão precisa, justa e honesta de um determinado fato. Esses valores são os mesmos, independente do local onde um jornalista trabalhe. Agora, sinceramente, em muitas organizações comercias, quando o dinheiro é pouco, o jornalismo perde espaço para o entretenimento, e as informações são passadas de forma superficial. Produzir material de qualidade é caro. Mas, eu aconselho que mesmo os pequenos veículos busquem informação de qualidade, pois ela garante audiência. Se você economiza na produção de qualidade, você acaba sem espectadores e sem negócios.
Agência Brasil - Quais as vantagens do jornalismo público em relação ao comercial?
Nigel Chapman - Em se tratando da BBC, nós temos um orçamento garantido. Uma empresa comercial depende dos anúncios, de patrocinadores e outras maneiras de garantir a renda. É muito mais difícil planejar e prever como os negócios poderão avançar. Num serviço público, nós podemos fazer longos planos sobre nossas estratégias jornalísticas, sobre diferentes coberturas, podemos investir no treinamento de pessoal e podemos ter os correspondentes ideais em lugares estratégicos ao redor do mundo. Temos estabilidade. Uma empresa comercial está sempre preocupada sobre de onde virá a próxima libra. É muito mais difícil para uma empresa comercial garantir esses padrões de qualidade.
Agência Brasil - E como essa situação pode influenciar na credibilidade das informações transmitidas pela BBC? Qual o diferencial em relação a outras organizações como a CNN, por exemplo?
Nigel Chapman - Eu acho que o modo como a CNN aborda os assuntos internacionais é bastante interessante, principalmente quando analisamos a cobertura da Guerra no Iraque. A CNN passa uma visão e um sentimento completamente norte-americanos. E, quando você assiste a uma programação como essa, percebemos que é esse ponto de vista que ela está defendendo. Eu chego a pensar naqueles pais cujos filhos estiveram envolvidos no conflito e se vêem refletidos no noticiário.
Não é assim que nós da BBC entendemos nosso trabalho. Não temos de ser patrióticos. A linha que orienta nosso trabalho é a busca por produzir um material com histórias justas, mais exatas, o mais imparciais possível. Temos de fazer uma matéria sem medo ou sem favorecer algum grupo específico. Isso é bom jornalismo. Somos independentes dessas forças e temos a todo custo de manter essa condição.
Agência Brasil - A BBC mantém um serviço internacional que atende cerca de 150 milhões de pessoas espalhadas por todo o planeta. Quais os critérios que determinam a cobertura internacional e quais os principais desafios para manter, mundo afora, as mesmas regras que regulam o trabalho da BBC na Inglaterra?
Nigel Chapman - Nós produzimos informações em cerca de 40 línguas. Cada idioma determina o público que queremos alcançar. Por exemplo, no Brasil se fala o português, mas, no restante da América Latina, o espanhol. E é claro que esses serviços também atendem a públicos específicos em países isolados, quando fazemos uma cobertura voltada para o interesse daquela comunidade. Temos o serviço em inglês, que é ouvido e lido em todas as partes do globo por cerca de 4 bilhões de ouvintes a cada semana. Caímos em um dilema complicado pela nossa abrangência. Que histórias devemos cobrir? Com que profundidade e com qual freqüência os assuntos devem ser abordados?
Agência Brasil - E quais são esses assuntos?
Nigel Chapman - Depois de tanto tempo de trabalho, as pautas começam a ficar mais óbvias. Atualmente, estamos dando ênfase aos vários temas relacionados ao mundo islâmico e sua ligação com o mundo ocidental no pós-guerra do Iraque. O futuro de toda a região que se estende do Marrocos ao Afeganistão e as forças que atuam nessas localidades se apresentam como a história mais importante do mundo nesse momento. Principalmente por causa do 11 de setembro, cresceu o interesse pelo modo de vida das pessoas que vivem lá. Outros motivos que levam a essa avaliação: o tratamento dado ao terrorismo, as preocupações sobre segurança e todo o debate interno que está ocorrendo no mundo árabe.
Temos de percorrer um caminho que está muito além desse para encontrar histórias tão importantes. E é assim que as pautas acabam se tornando evidentes. O que não quer dizer que não cobrimos outras coisas, mas, se deixamos de cobrir esse tema muito bem, estamos falhando como um serviço público de comunicação.
Agência Brasil - Por quê?
Nigel Chapman - Porque essa é uma história complexa que necessita de cuidados e atenção especiais. E o público que nos financia nos deu a oportunidade de desempenharmos bem o nosso papel. A estabilidade nos nossos ganhos garante a oportunidade de podermos fazer um bom trabalho e enviar pessoas para os lugares certos.
Agência Brasil - Um dos fatores que mais salta aos olhos de qualquer organização jornalística é a independência que a BBC afirma gozar. Imagino que haja uma pressão diária para corromper com essa independência, por parte do governo ou de grandes corporações. Como a BBC enfrenta essa pressão?
Nigel Chapman - Vou começar a falar sobre as pressões que não sofremos, como, por exemplo, as dos anunciantes, pois não temos de fazer dinheiro. Temos uma renda anual garantida. Claro que enfrentamos a pressão de indivíduos e de organizações que não aprovam o trabalho que estamos fazendo. Mas, todos eles têm o direito de expressar um ponto de vista próprio e trazer as reclamações em relação a nossa cobertura até nós.
Sabe, temos de deixar que as coisas ocorram com naturalidade. Se eles reclamam, muitas vezes nos dão a certeza de que fizemos um belo trabalho, ou até menos que isso, mas um trabalho que incomoda. Nós temos lutado contra esse tipo de interferência por mais de 70 anos. Não por acaso que uma das coisas que os críticos mais destacam sobre a BBC é seu caráter imparcial, e isso reflete o que os britânicos esperam de nós. Eles pagam por uma organização que seja capaz de transmitir e garantir sua independência e imparcialidade ao redor do mundo.
Agência Brasil - E como garantir essa imparcialidade?
Nigel Chapman- O desejo de imparcialidade diz muito sobre o caráter britânico de tolerância, respeito às diferenças. Acho que a Grã-bretanha tem um respeito pelo mundo muito maior do que em muitos outros países, e os políticos têm sensibilidade suficiente para perceber essa qualidade. Ninguém nunca veio me dizer que não queria independência editorial. Todos dizem que devemos protegê-la. Os políticos avaliam que, no fim das contas, uma empresa como a BBC é mais preciosa do que qualquer ganho particular que se poderia obter influenciando nossas atividades. E a sorte da Grã-Bretanha é que muitas pessoas defendem que a BBC deve ser preservada assim como ela é.