Brasília - Brasília - A impunidade em relação a policiais que atuam em grupos de extermínio é uma das semelhanças encontradas pela relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, na sua passagem por seis estados brasileiros: Bahia, Pernambuco, Pará, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro. A relatora ainda esteve no Distrito Federal, ponto de partida e de chegada da viagem, feita a convite do governo brasileiro. Os estados visitados foram escolhidos pela própria relatora da ONU.
Durante mais de três semanas, Asma Jahangir, de origem paquistanesa, colheu depoimentos sobre violações dos direitos humanos no Brasil e se reuniu com autoridades estaduais e federais, a fim de reunir subsídos para elaborar um relatório que será apresentado na Comissão de Direitos Humanos da ONU e enviado ao governo brasileiro. A relatora afirmou que, com poucas exceções, a maioria das autoridades e lideranças da sociedade civil ouvidas admitiram a prática das execuções extra-judiciais no país com impunidade. Segundo ela, fontes oficiais e não-oficiais revelaram que grande parte desses crimes são cometidos por policiais, que, além de matar, ameaçam testemunhas e humilham familiares de vítimas. "Os policiais acham que devem estar à frente de uma justiça dura, mas fácil, levando à morte aqueles que eles e seus colegas consideram indesejáveis", condenou.
As motivações, conforme a relatora, nem sempre são claras, mas costumam seguir alguns padrões. No Pará, por exemplo, os alvos as execuções extrajudiciais tem ligação, muitas vezes, com conflitos agrários. Asma disse ainda que a orientação da polícia que atua na ruas para reprimir o crime não deve ser militar, mas sim pública, a serviço do povo. Ela evitou comparar a situação brasileira a de outros países, porque "cada país tem sua própria história". Mas ressaltou que o processo democrático pelo qual passa o Brasil possibilitará a mobilização da sociedade em prol dos direitos humanos. "O Brasil já assumiu a liderança na comunidade internacional no comércio exterior e espera-se que o país assuma também a liderança na área de direitos humanos". Entre os estados visitados, Asma considerou o Espírito Santo como o que tem perspectivas mais otimistas de enfrentamento dos grupos de extermínio, apesar dos "índices de criminalidade".
Uma das denúncias que mais chamaram a atenção da relatora foi o assassinato do agricultor Flávio Manoel da Silva, 33 anos, considerado uma das principais testemunhas da atuação de grupos de extermínio na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. O agricultor foi morto, a tiros, quatro dias depois de ter prestado depoimento à relatora. "Ele disse, categoricamente, que estava sendo ameaçado por policiais ligados aos chamados grupos de extermínio. Eu vi o medo nos olhos desse rapaz", lembrou Asma, ao frisar que o assassinato de Silva, por si só, "bastaria para convencer aqueles que vivem num mundo de negação, dizendo que não há violações graves contra direitos humanos no Brasil".
Asma afirmou que incluirá essa denúncia no relatório que vai produzir. Outro caso que impressionou a paquistanesa ocorreu no Rio de Janeiro, há cerca de duas semanas. Um camelô assistiu, impotente, ao assassinato de seu filho, morto a tiros por um policial. Segundo Asma, o pai ainda tentou buscar socorro médico, mas foi impedido pelo policial. "Ele me disse que não pretendia dar queixa nenhuma contra o criminoso, porque não tinha fé nenhuma no sistema da Justiça", relatou.
A representante da ONU disse ter ficado muito decepcionada e preocupada com a situação dos internos de duas unidades da Febem, em São Paulo. Ela ouviu, em depoimentos reservados, cerca de 200 jovens, que ficaram com medo de sofrerem represálias em decorrência da conversa. Segundo a relatora, 75% deles eram testemunhas de assassinatos cometidos por políciais. "Eles não conseguiam levantar as suas vozes contra essas injustiças. Estavam apavorados, porque achavam que haveria represália depois que eu fosse embora. Segundo eles, a violência era uma rotina diária", contou Asma, que disse ter levado a preocupação quanto à garantia da integridade dos internos às autoridades responsáveis.
Casos de morte de pessoas sob custódia também foram relatados à paquistanesa. Para ela, um dos mais chocantes foi o de um rapaz morto por colegas de cela, apesar de a mãe ter pedido que ele fosse transferido para outro local. "Ele foi morto brutalmente. O seu corpo, mutilado, foi encontrado no dia seguinte", disse Asma, criticando o "comportamento desumano" dos criminosos. No depoimento à relatora, a mãe contou que, dias depois, recebeu um telefonema de um agente penitenciário pedindo para que fosse buscar "o resto" do seu filho. "Quando chegou, deram a ela um olho e o agente disse que o resto estava numa geladeira".
Em entrevista coletiva concedida hoje em Brasília, Asma Jahangir fez um balanço de sua missão no Brasil e afirmou ter esperanças de mudança, apesar do quadro preocupante. Segundo ela, essa impressão se tornou mais forte depois do encontro de quase duas horas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela manhã. Na avaliação da relatora, Lula tem um plano auto-sustentável para a área, a ser implementado em etapas, e que deverá render frutos para gerações futuras. "Há fortes indícios de mudanças no futuro. O governo quer, sim, mudar essa cultura de impunidades, iniciar medidas preventivas para que não haja mais execuções extrajudiciais", concluiu.
A representante da ONU disse ter ficado ainda mais impressionada com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva do que esperava, porque ele não se contentou com um quadro geral da situação. "Ele queria detalhes. E respondeu também com detalhes", disse Asma. De acordo com ela, Lula frisou a importância da proteção de defensores dos direitos humanos pela Polícia Federal, no local onde a pessoa é alvo de ameaças morais.
Asma garantiu que seu relatório terá espaço não apenas para as violaçãos dos direitos humanos, mas também para os esforços no sentido de superar esses problemas. Do material deverão constar várias recomendações ao governo brasileiro, entre elas a necessidade de fortalecimento das instituições já existentes, como as ouvidorias e corregedorias de polícia, e sugestões de mudanças na lei penal, como a que prevê prazo prescricional de 20 anos para homícidios.
Asma Jahangir também defendeu a federalização dos crimes contra direitos humanos, quando houver impunidade nos estados. Outro recomendação é a melhor capacitação e treinamento de policiais.
O ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, também esteve presente na coletiva e posicionou-se a favor de muitas recomendações de Asma. "Há tortura no Brasil e isso não pode ser escondido. A melhor maneira de enfrentar isso é reconhecer que existe", observou Nilmério. Ele lembrou que o governo tem trabalhado de forma intensa para combater as violações contra direitos humanos e disse que, no caso específico da federalização desses crimes, é necessário aprovar uma proposta de emenda constitucional do Congresso Nacional.
Segundo ele, a matéria já foi aprovada na Câmara, no âmbito da Reforma do Judiciário, como destaque. De acordo com o ministro, esse ponto pode seguir para exame no Senado, mesmo depois de o governo ter retirado a proposta de reforma do Congresso. Nilmário informou ainda que o próximo relator da ONU a visitar o país será o responsável pela área de prostituição infantil, Juan Manuel Petit, que chegará ao Brasil no início de novembro.