Em busca da eficiência na arrecadação, África do Sul quer aprender como funciona o IR via internet

16/09/2003 - 15h22

Brasília, 16/9/2003 (Agência Brasil - ABr) - África do Sul e Brasil guardam semelhanças que vão muito além do fosso social entre ricos e pobres. Os atuais governos de ambos os países subiram ao poder determinados a acabar com esse estigma e hoje se debatem para cumprir a promessa de melhor distribuição de renda. Outra semelhança é o esforço que os presidentes Thabo Mbeki e Luiz Inácio Lula da Silva fazem para unir países em desenvolvimento no combate às desigualdades promovidas pelos países mais ricos. Esses são alguns dos temas abordados pelo ministro das Finanças da África do Sul, Trevor Manuel, em entrevista à Agência Brasil.

Manuel defende a união entre ministros da Fazenda para pôr em prática as decisões multilaterais, como o Consenso de Monterrey, sobre o financiamento do desenvolvimento de países pobres. Também propõe colocar na mesa mundial de negociações assuntos de nosso interesse, como o que houve na reunião da Organização Mundial do Comércio, que se encerrou neste domingo no balneário mexicano de Cancun.

Leia a seguir trechos da entrevista concedida com exclusividade à Agência Brasil durante viagem de uma comitiva interministerial brasileira à África do Sul, em agosto.

Agência Brasil - O presidente Lula tomou a iniciativa de estreitar os laços entre países em desenvolvimento. Nestes oito meses, foram intensas as conversações entre as autoridades sul-africanas e brasileiras. Junto com a Índia, criou-se o G-3. Como o senhor avalia essa relação hoje?

Trevor Manuel - As relações dos dois países vêm se fortalecendo desde 1994, mas agora a busca pela aproximação está muito intensa. O presidente Mbeki foi para a posse de Lula. As perspectivas são excelentes. Há grande necessidade de melhorar as relações entre os paises do Sul. Brasil, África do Sul e Índia há alguns meses estão tentando se entender. Os três paises são marcados pela oportunidade de crescimento econômico, pela necessidade de combate à pobreza e à falta de eqüidade. A realidade dos três paises têm muitas similaridades. É hora de nos unirmos e criar parcerias, não só os governos, mas também nos negócios. Eu e Palocci (Antônio Palocci, da Fazenda), como ministros da economia, estamos voltados para os problemas domésticos, mas a capacidade de resolvê-los hoje depende muito do ambiente global. Em algumas coisas precisamos aprender um com o outro.

Agência Brasil - O que o senhor tem aprendido do Brasil?

Trevor Manuel - Por exemplo, preocupamo-nos com a eficiência da arrecadação. Estamos muito interessados na declaração de renda via Internet que o Brasil desenvolve. Queremos adquirir a habilidade que vocês têm na coleta de informações do contribuinte - cuja qualidade é impressionante -, na arrecadação em nível municipal e na divisão dos impostos entre a União e os estados. O grande desafio no Brasil, e que também diz respeito à África do Sul, é o setor informal. Temos que descobrir juntos como enfrentar isso.

Agência Brasil - O que os dois países podem aprender mutuamente quanto ao combate às desigualdades sociais?

Trevor Manuel - O nosso governo apóia o programa Fome Zero. Temos um programa semelhante, com pensão para mulheres acima de 60 anos e homens com a idade a partir de 65. Damos US$ 120 por mês para os deficientes físicos. Temos também um programa de apoio para crianças de até nove anos, com a destinação de cerca de US$ 20 para cada uma.

Outro programa está relacionado aos sem-terra. A base disso é a reforma agrária. Porém, só a terra não é suficiente. Sei que é uma questão de base no Brasil. Com certeza, há outras questões domésticas que ilustram bem a necessidade de estreitamento de relações para aplicar essas lições.

Agência Brasil - Os presidentes Lula e Mbeki se afirmam ambos como lideranças continentais. Como aproveitar isso para promover a parceria no combate à pobreza e na relação com os países ricos?

Trevor Manuel - Há questões internacionais em que as duas nações podem trabalhar como se fossem um só organismo. Os presidentes da África do Sul e do Brasil são as lideranças dessas regiões. Ambos são fortemente comprometidos com o aprofundamento da democracia. A menos que estejamos juntos, perderemos oportunidades. Estamos juntos no G-20. O ministro Palocci tem responsabilidades no Mercosul. Eu tenho responsabilidades no SADC (Southern Africa Development Community). A questão é: quando nos juntaremos? Quando teremos uma agenda comum no FMI e no Banco Mundial?

Nesse contexto, algumas questões são importantes, como a proposta do presidente Lula de taxar a venda de armas ou de criar taxas especiais de juros para o serviço da dívida dos países pobres. Há ainda o financiamento do combate à pobreza pelo FMI. Eu poderia acrescentar a proposta inglesa de financiar os países endividados.

É importante que adotemos uma posição forte nos fóruns internacionais. O Consenso de Washington focaliza largamente a maneira como os paises em desenvolvimento devem se comportar. Mas, quando os nossos governos buscam fazer algo para combater a pobreza, essas questões ficam de fora. Há ainda um ângulo levemente diferente que é o acordo construído em Monterrey, no México, o chamado Consenso de Monterrey. É preciso implementar os princípios do acordo, é preciso que ele se torne efetivo.

Agência Brasil - Falando em consenso de Washington, nos últimos anos o senhor tem conseguido equilibrar as contas em seu país e controlar, de certa forma, a inflação e a taxa de câmbio. Por outro lado, a taxa de desemprego é de 30%. Não há outro caminho para promover o ajuste fiscal?

Trevor Manuel - Nosso sistema fiscal é muito bom. A economia está muito boa. O déficit em 1994 era de 9,4% do PIB. Quando assumi o ministério em 1996, tomei como meta trabalhar duro nos anos seguintes para desenvolver a capacidade de gastos e de arrecadação de impostos. No ano passado, nosso déficit era de apenas 1,1% do PIB, em parte graças à nossas políticas de arrecadação. Hoje estamos reduzindo os juros de forma consistente. Nossos juros em 1994 eram de 48%. Agora estão em 30%. Reduzimos também a taxa de juros da pessoa física. Não há uma só taxa que tenha aumentado, seja ela do comércio, das empresas, ou sobre impostos. Também começamos a cobrar imposto sobre ganhos de capital.

Então, estamos muito mais eficientes: gastamos melhor, ainda que o déficit esteja baixo. Estamos investindo em infra-estrutura e no seguro social no país todo, para diminuir o desemprego. Com seguro social, as pessoas têm uma forma de sobreviver. Durante seis meses após a demissão, o trabalhador recebe 40% do último salário. O desemprego não é um problema apenas na África do Sul, mas é um grave problema que estamos tentando resolver em conjunto com o setor privado e os sindicatos. Em junho, tivemos uma reunião envolvendo os dois setores sob a liderança do presidente Mbeki, para traçar estratégias na promoção do desenvolvimento e do crescimento econômico.

Agência Brasil - E o que o senhor acha da taxação do capital especulativo?

Trevor Manuel - Se você me perguntar sobre o que sinto, eu digo que é uma idéia muito boa. Se me perguntar sobre a praticidade, eu digo que é muito difícil. Não é coisa que um país possa executar facilmente a menos que haja algo que justifique isoladamente sua ação. Não há país no mundo que consiga isso hoje.

Há muitos fluxos de capitais entre os países e não há um sistema de reconhecimento desses capitais. Parte das dificuldades é representada pelo poder de alguns países. Veja os fundos de hedge que criaram problemas de volatilidade de capitais para muitos países, inclusive o Brasil, em 1998 e em 2001. A menos que haja uma colaboração entre os países em desenvolvimento, para termos uma voz mais forte, não será possível fazer nada sobre os fundos de hedge.

Parte das dificuldades é que somos tão interessados em atrair investimentos que ninguém quer colocar esses fundos contra a parede. Em 1999, a Malásia introduziu o controle de câmbio. Mas, a razão por que eles fizeram isso é que Malásia tinha alta taxa de poupança interna, equivalente a quase 40% do PIB, além de reservas muito altas, então eram menos dependentes do capital externo.

Agência Brasil - O presidente Lula deve ir ainda este ano à África para fortalecer sua proposta do eixo Sul-Sul. O que o sr. acha dessa iniciativa?

Trevor Manuel - Estamos tratando de um mundo unipolar. A verdade é que precisamos fortalecer as vozes do mundo que têm uma visão alternativa. Depois de Doha, o mundo ficará muito mais pobre. Isso ficou demonstrado em Montreal em julho, quando Estados Unidos, Europa e Japão demonstraram querer a continuação dos subsídios à agricultura. Temos uma discussão sobre isso há alguns anos. Pratini de Moraes (ex-ministro da Agricultura) defendeu o fim dos subsídios, Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) também. É uma questão que precisamos discutir constantemente. O que acontece em países como África do Sul e Brasil é que temos melhor clima e solo para produzir. A menos que consigamos acesso ao mercado, não estimularemos a agricultura. Você destrói a agricultura no longo prazo. Esse é o desafio daqui para frente.

Agência Brasil - O que o senhor espera das novas negociações na Organização Mundial do Comércio?

Trevor Manuel - A nossa batalha está em quatro áreas. A primeira é no subsídio à agricultura nos países ricos. A segunda batalha é quanto à propriedade intelectual, especialmente no que diz respeito aos medicamentos genéricos, que os países ricos tratam de segurar. A terceira área são o comércio e os serviços, o que inclui desde a educação até os serviços financeiros. A quarta parte diz respeito à produção industrial, especialmente quando os Estados Unidos impõem cotas. O que espero dessas negociações? Não espero muito. Mas acredito que nossos ministros de comércio têm que brigar nessas questões. A menos que tenhamos sucesso, a globalização colocará cada vez mais gente na pobreza.

Agência Brasil - O senhor foi personagem de uma polêmica, no início do ano, por se colocar contra a distribuição de medicamentos anti-retrovirais aos pacientes da AIDS. Que medidas o governo sul-africano está adotando para conter essa epidemia que já atinge 4,5 milhões de pessoas em seu país?

Trevor Manuel - Temos que olhar para essa questão por inteiro, focalizando as várias fases em que trabalhamos. Em primeiro lugar, há o aspecto educativo, a prevenção. A nossa população não se preveniu no passado, e grande parte descobriu que é HIV positivo. Na segunda fase, verificamos que qualquer um de nós pode ser HIV positivo, mas não significa que você esteja doente. As pessoas vivem 10 ou 15 anos sendo HIV positivos se tiverem disciplina na alimentação, não é preciso tratamento com drogas. A terceira fase é aquela em que as pessoas começam a ficar doentes e então existe algo sério, as doenças oportunistas, como a tuberculose. É nessa terceira fase que os antiretrovirais são disponibilizados.

Há duas outras instâncias em que o medicamento é distribuído: quando se trata de testes ou quando há mulheres grávidas, estupradas ou expostas a ferimentos. Em todos os programas no mundo, os medicamentos não são disponibilizados em todas as fases. O Brasil, por exemplo, distribui medicamentos para apenas 16 mil portadores de HIV.