Cancún, OMC e desdobramentos das negociações comerciais

13/09/2003 - 8h41

Guida Piani*

A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 em substituição ao antigo Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras (GATT), tem como objetivo incentivar a discussão e a formulação de regras e acordos multilaterais de comércio, bem como a supervisão de seu cumprimento pelos países-membros, reforçada pela criação de um mecanismo de resolução de disputas mais eficaz.
O papel desempenhado pelo GATT na promoção de uma liberalização do comércio internacional, a partir de 1948, foi extremamente importante. Baseado no princípio da nação mais favorecida, pelo qual as reduções tarifárias concedidas por um país a outro eram estendidas aos demais parceiros, – princípio da não-discriminação –, os participantes do Acordo lograram um rebaixamento considerável das barreiras tarifárias às importações, o que permitiu um crescimento notável do comércio mundial.

Esses esforços multilaterais concentravam-se em "rodadas de negociações", com duração de alguns anos. A última delas a ter como foco principal cortes de tarifas – a Rodada Kennedy – estendeu-se de 1962 a 1967.

Na década seguinte, as negociações promovidas no âmbito da Rodada Tóquio privilegiaram a elaboração de Códigos que regulamentavam barreiras não-tarifárias, como subsídios e medidas compensatórias, práticas de dumping, compras governamentais, licenças de importação e barreiras técnicas ao comércio, entre outras.

Essa nova abordagem era mais consistente com noções de "justiça" (fairness) no comércio internacional, na medida em que os Códigos procuravam estabelecer o que seria um "bom" comportamento em muitas áreas onde barreiras não-tarifárias ameaçavam o objetivo fundamental de liberalização comercial do GATT.

Os países desenvolvidos, sob a liderança norte-americana, anteviram as dificuldades de revisar os artigos do Código – ou mesmo de acrescentar novos –, e optaram por desenvolver Códigos interpretativos, que foram endossados pelos países em desenvolvimento apenas parcialmente. O Brasil, por exemplo, tornou-se signatário apenas dos Códigos Anti-dumping, de Subsídios e direitos compensatórios e de Valoração Aduaneira.

Para os países em desenvolvimento, a Rodada Tóquio, concluída em 1979, deixou um legado de frustações, dentre as quais sobressaíam a questão agrícola – em suma, sua incorporação às normas do GATT – e a reformulação da Cláusula de Salvaguardas.

Esta última (artigo XIX do Acordo Geral) permite aos países-membros retirarem uma concessão feita anteriormente – como uma redução tarifária –, se, devido a fatos imprevistos, um produto estiver sendo importado em quantidades crescentes de modo a causar prejuízos à indústria doméstica. Por algumas razões, em particular, por envolver negociações visando o cálculo de concessões "equivalentes" aos países exportadores atingidos, o uso de salvaguardas foi sistematicamente substituído, ao longo da década de setenta, por mecanismos mais "informais", como os Acordos de Restrição Voluntária. Através destes, os países exportadores concordavam "voluntariamente" – e sem exigir compensações – em reduzir e controlar as quantidades exportadas de determinados produtos. Um exemplo da utilização desse mecanismo foi o ARV negociado pelos Estados Unidos, durante toda a década de oitenta, com seus maiores fornecedores externos de produtos siderúrgicos, inclusive o Brasil.

As aspirações negligenciadas dos países em desenvolvimento a respeito de produtos agrícolas transformaram-se em uma das prioridades na agenda "tradicional" das negociações iniciadas em 1986, na última rodada sob os auspícios do GATT – a Rodada Uruguai.

Além da agricultura, a agenda tradicional contemplava a regulamentação do comércio de têxteis, um maior acesso ao mercado dos países industrializados – especialmente para produtos tropicais e intensivos em recursos naturais –, maior disciplina na aplicação de medidas anti-dumping e anti-subsídios e o fortalecimento de um sistema de resolução de controvérsias e do próprio funcionamento do sistema do GATT.

Por outro lado, os países desenvolvidos apresentaram uma lista de novos temas, que incluíam o comércio de serviços, questões relacionadas a investimentos e proteção aos direitos de propriedade intelectual. De fato, a pressão pela inclusão dessas áreas nas regras do GATT resultou bastante exitosa, dando origem ao Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (General Agreement on Trade in Services – GATS), ao Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio (Trade-Related Investment Measures – TRIMS) e ao Acordo sobre Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS).

Os sucessos das demandas da agenda "tradicional" foram bem mais modestos. Os avanços mais significativos foram as inclusões do comércio agrícola e de produtos têxteis às regras do GATT, ainda que mantendo o grau de liberalização dos mercados dos países industrializados sob rigoroso controle.

O Acordo de Têxteis e Vestuário (ATV) entrou em vigor em 1995, tendo sido negociado na Rodada Uruguai em substituição ao Acordo Multifibras, o qual, desde 1974, permitia aos países desenvolvidos a adoção de quotas de importação, sem compensação aos países em desenvolvimento exportadores. Pelo ATV, os Estados Unidos e a União Européia, dentre outros países-membros da OMC, comprometeram-se a eliminar as quotas em um período de 10 anos, a ser encerrado em 1o. de janeiro de 2005. O processo compreende três fases já completadas (janeiro de 1995, de 1998 e 2002), em cada uma das quais uma parcela das importações deixou de ser submetida ao regime de quotas. No entanto, vários países vêm postergando a liberalização de grande parte dos produtos têxteis e de vestuário para o final do prazo acordado, gerando um clima de grande incerteza quanto à manutenção do compromisso sob o ATV.

Em relação à agricultura, houve algum progresso em relação a acesso a mercados, subsídios domésticos e às exportações. Quanto ao primeiro, as barreiras tarifárias como quotas, preços mínimos de importação e direitos variáveis foram submetidas a um processo de tarifação, sendo transformadas em equivalentes-tarifários. As tarifas assim obtidas foram reduzidas em 36%, ao longo de sete anos.

Os subsídios à exportação também foram alvo de cortes, tanto em termos orçamentários como em relação às quantidades exportadas.

Por fim, as políticas domésticas de apoio à agricultura foram classificadas em três categorias: a "caixa verde" incluía políticas internas cujos efeitos sobre o comércio internacional foram considerados mínimos. Já a "caixa amarela" englobava as medidas com maior potencial de distorção no comércio agrícola internacional, ficando sujeita a maiores restrições de seu uso. Uma terceira caixa – "azul" – compreendia formas de apoio interno não tão prejudiciais mas que necessitavam de um certo controle.

Em nenhum caso tais medidas produziram um impacto relevante para as exportações dos países em desenvolvimento, fosse porque as tarifas agrícolas resultantes da tarifação transformaram-se em verdadeiros "picos" tarifários, fosse porque as reduções nos níveis de subsídios foram calculadas em relação a um período-base em eles se encontravam extremamente elevados.
Adicionalmente, um acordo entre os Estados Unidos e a União Européia instituiu a "Cláusula da Paz", que impedia que, por um período de 10 anos – a ser encerrado em dezembro de 2004 – as políticas agrícolas adotadas naqueles países pudessem ser contestadas através do Artigo XVI, que trata dos subsídios e de suas medidas compensatórias.

A compreensão da posição negociadora dos países em desenvolvimento nesta atual rodada de negociações da OMC – a Rodada Doha – deve estar fundamentada em uma avaliação retrospectiva da "balança de concessões" que emergiu da Rodada Uruguai.
Por um lado, aqueles países concordaram (com pagamento à vista) em assinar os acordos sobre novos temas: serviços, investimentos e propriedade intelectual. Em contrapartida, sobre as concessões obtidas (pagamento a prazo) pairam as incertezas do futuro – no caso de têxteis – e a constatação de praticamente nenhum avanço na área agrícola.

Existe, portanto, um conjunto de temas relacionados à "implementação" dos resultados da Rodada Uruguai, dentre os quais se destaca a agricultura, que exige ainda um enorme esforço de liberalização para que o setor possa vir a ser incorporado ao sistema multilateral de comércio.
A Rodada Doha, iniciada em novembro de 2001 em Qatar, tem a especificidade de ter colocado no centro das negociações os interesses dos países em desenvolvimento. Não por acaso, ela foi lançada como a "Agenda Doha de Desenvolvimento".

Não obstante, continua sob forte pressão dos paises ricos, que continuam a proteger sua agricultura com subsídios que distorcem o comércio agrícola internacional e com a manutenção de barreiras tarifárias e não-tarifárias que dificultam enormemente as exportações dos países menos desenvolvidos.

Em linhas gerais, o Grupo de Cairns, que reúne os maiores produtores agrícolas mundiais – incluindo o Brasil – defende a proposta mais radical quanto à redução dos picos tarifários, a redução do apoio doméstico aos agricultores de países como os Estados Unidos, Japão e União Européia e a eliminação dos subsídios à exportação.

Os Estados Unidos fizeram propostas nestas linhas, porém admitindo prazos mais longos para sua realização. Já para a União Européia, a reforma da sua Política Agrícola Comum conteria, em si, uma solução para minimizar o apoio doméstico – substituindo o subsídio à produção pelo pagamento direto ao produtor, para um conjunto de produtos. Além disso, a futura adesão dos novos membros levaria a uma diminuição do orçamento atual de cada país. Dificilmente, a União Européia concordaria em reduzir subsídios às exportações.

Há alguns meses, o presidente do Comitê de Agricultura da OMC, Stuart Harbinson, preparou um relatório em que propunha soluções de compromisso. Rejeitado anteriormente na reunião ministerial de Tóquio, o documento de Harbinson voltará ao centro das discussões na reunião de Cancún (10 a 14 de setembro de 2003).

Além dela, há uma proposta conjunta dos Estados Unidos e da União Européia, considerada pelos não-protecionistas como conservadora – por não avançar na liberalização de mercados e redução de subsídios – e pouco objetiva, por não estabelecer metas e prazos para a redução do protecionismo.

Adotando uma postura de forte resistência a norte-americanos e europeus, emergiu recentemente o grupo de países conhecido como G-20, que inclui Brasil, Argentina, China e Índia – além de outros países em desenvolvimento com fortes interesses agrícolas.

É difícil prever se os ministros dos 146 países reunidos em Cancún conseguirão dirimir o impasse atual em que se encontram as negociações sobre a reforma agrícola na OMC, antes de tudo por não existir um acordo sobre as modalidades dessas negociações – como será resolvida a questão de acesso a mercados, como serão atacados os subsídios às exportações. A decisão quanto a métodos e modalidades é um primeiro passo, que não tem como ser contornado em um processo negociador dessas dimensões.

*Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), coordenadora de estudos de Comércio Exterior