C&T - O que é laqueadura?
Antônio Cunha - A laqueadura tubária é uma interrupção do conduto tubário que levaria o gameta até o útero.
C&T - Qual é a probabilidade em termos matemáticos da reversão natural do processo?
Antônio Cunha - É baixíssima, menos de 1% . Já a reversão cirúrgica depende muito da técnica que foi utilizada. Às vezes em alguns serviços eles retiram um fragmento muito acentuado da tuba e ela fica muito curta, não permitindo a reversão. Fatores como infecção e técnica cirúrgica utilizada vão incentivar no sucesso ou não da reversão. Se tiver tudo bem, hevará uma chance de 40 a 50% de reverter esse processo.
C&T - Na sua opinião qual o melhor método contraceptivo?
Antônio Cunha - Não existe um método contraceptivo ideal, existe um bom método para a mulher em determinado momento.
C&T - Dados do Censo 2000 indicam que houve uma diminuição do número de filhos por mulher, que na década de 60 era em torno de 6.6 filhos por mulher e que hoje é de 2.5 filhos por mulher. Na sua opinião essa queda no índice de fecundidade tem a ver um pouco com a cultura estética cultivada hoje pela sociedade?
Antônio Cunha - Tem tudo a ver. No ano passado participei de um seminário na Itália onde escutei um comentário de uma socióloga sobre um trabalho da Universidade de Campinas (Unicamp) mostrando a questão da cultura da laqueadura tubária que existe no Brasil e questionando o porquê dessa diminuição de fecundidade da mulher brasileira. A tese procurava respostas para o fato de grande parte da população feminina em idade fértil no país usar algum método contraceptivo, já que não há por parte do governo nenhum incentivo. Segundo a socióloga, quem mais influencia na tomada de decisão são basicamente as novelas da Rede Globo, que mostram geralmente pessoas com uma boa estética e um pequeno número de filhos. Então, a novela acaba impregnando na sociedade aquele modelo de família, de pessoas preocupadas com a estética, a beleza e com poucos filhos.
C&T - Não corremos o risco de ver o envelhecimento da população já que houve uma queda acentuada das taxas de natalidade desde a década de 60?
Antônio Cunha - O professor Darcy Ribeiro já previa, num congresso em 1991, que se essa queda continuasse, em 2023 começaria a haver essa inversão de uma população predominantemente jovem para uma população predominantemente adulta. E com a agravante de que se não houver nenhum planejamento nos tornaríamos um país ainda em desenvolvimento pobre e velho, ao contrário do que acontece na Europa, que tem países com predominância de velhos porém ricos.
C&T - Quais são as conseqüências a médio e a longo prazo da laqueadura para a saúde da mulher?
Antônio Cunha - A laqueadura em idade jovem tem conseqüências físicas e psicológicas. Do ponto de vista físico já existem teses mostrando que as mulheres que fazem laqueadura têm uma tendência maior para desenvolver insuficiência ovariana, o que pode levar a uma menopausa precoce, além de distúrbios menstruais. Do ponto de vista psicológico, o que a gente observa é que no Brasil, por ser um país predominantemente católico, é muito forte a questão da sacralidade da vida, onde você não deve interferir nos processos naturais que levam à vida, como por exemplo, os processos reprodutivos. Isso ao longo do tempo ficou impregnado nas famílias e hoje, mesmo com a questão da liberdade, da sexualidade a partir da década de 60, a mulher ainda tem impregnada, mesmo que em seu subconsciente, a questão da sexualidade ligada à reprodução. A partir do momento em que se faz uma laqueadura tubária e a mulher se torna estéril, ela percebe, mesmo inconscientemente e até mesmo depois de um trabalho psicanalítico, uma diminuição da libido, da motivação para a sexualidade, da auto-estima, como se ela não fosse mais a mesma, como se não fosse mais mulher, não tivesse mais o potencial de gerar uma vida. Essa é uma seqüela que nós temos observado principalmente entre as mulheres que fazem laqueadura e se arrependem.
C&T - O que é mais forte psicologicamente, o arrependimento pela laqueadura, que interrompe a fertilidade ou a mastectomia?
Antônio Cunha - São dois parâmetros diferentes porque de qualquer forma são dois momentos tidos como uma perda, uma mutilação. Em relação à mastectomia, hoje já existem muitas formas de reconstrução da mama, o que ameniza um pouco os sintomas da causa que levou à mastectomia, que é algo que assusta e aterroriza as mulheres, o câncer. Nesse caso, há uma questão de ameaça à vida e no caso da laqueadura uma ameaça ao potencial para gerar uma vida.
C&T - O sr. é a favor da reposição hormonal?
Antônio Cunha - Essa é uma questão bastante controversa. Estudos mais recentes têm ratificado uma questão que era colocada pelo próprio Hipócrates, que é o fato de que "em medicina a verdade de hoje pode ser uma falácia amanhã". Houve um momento em que se dizia que todas as mulheres teriam que usar a reposição hormonal, havia até uma divulgação na mídia de mulheres que utilizavam o método após os 35 anos, como uma "fonte da juventude". Só que um estudo mais recente mostrou que mulheres que usam reposição hormonal têm mais chances de desenvolver câncer de mama e ter outros problemas. Isso levou à uma reflexão e hoje acho que as coisas estão se adaptando melhor. Antes de se pensar em reposição hormonal deve-se pensar principalmente na questão do estilo de vida, da prática de exercícios, de se evitar o sedentarismo. A partir de 35 anos todas as pessoas têm que se cuidar mais em certos aspectos, se alimentar melhor, evitar o tabagismo, bebida alcoólica em excesso, enfim, esse conjunto de coisas é que vai garantir uma saúde melhor para a mulher.
C&T - Os médicos pressionam para que as mulheres façam laqueadura?
Antônio Cunha - Não é bem o médico, é mais uma questão da condição. Às vezes, você está num serviço de planejamento familiar com muitas pacientes para atender e sem um suporte adequado, por exemplo, todos os meios contraceptivos para oferecer a esta mulher. Não há apoio, como assistentes sociais, enfermeiras, para também ajudar na orientação. Talvez falte melhorar essa estrutura com uma sala de espera e tendo todos esses métodos reversíveis para que se dê opções à pacientes. Dentro da questão da própria cidadania, toda escolha que se faz é importante, que se faça de forma livre, soberana, e para haver essa liberdade é importante que existam as opções. Se as opções que são dadas não são acessíveis, as mulheres acabam optando pela laqueadura. Assim, ela é pressionada não pelo médico, mas pelas próprias dificuldades econômicas.
C&T - Podemos dizer que no fundo de pano da laqueadura ou do planejamento familiar mal executado temos mais uma questão econômica do que de saúde?
Antônio Cunha - As duas coisas precisam estar bem equilibradas, que é a orientação de uma equipe de profissionais de saúde e a disposição do estado em fornecer os meios, é por aí que a gente conseguiria um planejamento familiar adequado.
C&T - Como o sr. vê a questão da discussão ética nos cursos de medicina de hoje?
Antônio Cunha - Vejo, por exemplo, na UnB, um movimento muito interessante em relação à questão ética com o surgimento de uma disciplina que está influenciando não só a medicina mas vários cursos ligado à vida que é a Bioética. A Bioética, por sua característica interdisciplinar, discute de uma forma plural as questões morais. Então, essa disciplina a meu ver é um grande avanço que está acontecendo em termos morais e éticos. Inclusive um dos princípios da Bioética, que é o princípio da justiça/eqüidade discute, por exemplo, a questão da alocação de recursos. Se não tenho meios de fornecer remédios para as minhas pacientes vou procurar a Secretaria de Saúde ou o Ministério da Saúde para resolver o problema da paciente. Atendo centenas de pacientes por mês e elas não estão tendo acesso a nenhum método contraceptivo. Quero resolver o problema dessas pacientes e cabe às autoridades responsáveis providenciar os meios. Por isso é que digo que é uma ética aplicada à vida, engajada, para que você não fique alienado ou limitado a um certo trabalho. Nesse sentido acho que a gente tem evoluído muito, porque estamos começando a aplicar na nossa profissão essa questão da eqüidade. É você lutar ou fazer o seu trabalho de forma que beneficie o maior número de pessoas possível.
C&T - O sr. acha que a Aids modificou alguma coisa em termos da maternidade mundial ou mais especificamente na brasileira?
Antônio Cunha - A Aids é um fenômeno que mudou não só a questão da maternidade mas o comportamento das pessoas. Veja que em 1960 surgiu essa questão da liberdade, da sexualidade, múltiplos parceiros e uma maior aceitação da sociedade dos grupos chamados excluídos, uma aceitação da questão do homossexualismo e especificamente dentro da questão da maternidade nós estamos observando que hoje, como rotina de pré-natal, já existe a solicitação da sorologia de HIV e existem alternativas como as técnicas de reprodução assistida para evitar que haja uma contaminação ou transferência do vírus para a criança. São doenças ou, às vezes, epidemias que em determinados momentos mudam o comportamento da sociedade em relação a uma série de coisas.
C&T - O sr. é a favor da inseminação artificial?
Antônio Cunha - Acho que toda a tecnologia que está surgindo é bem-vinda. A ciência, de uma forma geral, tem que ter liberdade para se desenvolver. Agora, é importante que se reflita que nem tudo o que é tecnicamente possível é moralmente aceito. E essa questão do que é moralmente aceito ou não, que é um tema interessante dentro da Bioética, mostra que as novas descobertas têm que ser analisadas de uma forma ampla, interdisciplinar, já que na maioria das vezes não existe ainda uma legislação específica. Desta forma, como é que fica esse vácuo entre a legislação e a prática em si? Quem dará o limite para as coisas? É importante que a sociedade discuta, debata essas questões. A questão da legislação vem depois, a sociedade incorpora e depois vêm as leis que fazem com que as descobertas tenham além de legitimidade a legalidade. Acho que todo o desenvolvimento científico e tecnológico tem que ter uma liberdade de atuação, mas dentro da noção de respeito à sociedade onde está sendo aplicada aquela tecnologia.
C&T - Pela sua resposta pode-se dizer o sr. não é a favor da clonagem então?
Antônio Cunha - A clonagem é uma questão em que se você se colocar contra você está indo contra o princípio da liberdade científica. Mas a clonagem já trouxe muitos benefícios para a saúde. Como aconteceu em 1978 com o primeiro bebê de proveta, técnica que foi muito contestada na época e que hoje se observa que muitas pessoas conseguiram sanar muitos problemas de saúde além dessa questão da infertilidade por conta da técnica. Não é uma questão da técnica em si, mas de como você a aplica. A clonagem é a mesma coisa. Para que vamos utilizar a clonagem? Se vamos utilizá-la para a questão chamada terapêutica, para curar uma doença, isso é perfeitamente válido. Agora, se vamos clonar uma pessoa por vaidade pessoal ou simplesmente pelo fato de ter uma pessoa com o seu mesmo padrão estético isso nós somos contrários, porque a vida é sempre considerada o bem maior. E a clonagem hoje é, no ser humano, uma questão experimental. Para se realizar uma experiência em um ser humano é preciso saber como se desenvolverá essa criança futuramente, e nós ainda não sabemos. O que aconteceu com a clonagem da ovelha Dolly, por exemplo, é que ela envelheceu muito rapidamente. Então, digamos que se clonasse hoje uma pessoa de 60 anos, a criança já nasceria com aquele padrão genético de 60 anos. Com cinco anos ela já teria catarata, reumatismo, uma série de doenças. Será que é justo fazer isso com uma criança para satisfazer o ego de alguém? Então, nesse sentido sou contra, mas sou a favor da clonagem terapêutica, que é quase uma unanimidade dentro da sociedade científica de hoje.
C&T - Para o sr. quando começa a vida?
Antônio Cunha - A vida é algo contínuo, não há como determinar um ponto específico onde ela começa. Uma célula é vida, os gametas são vida e o embrião também passa a ser vida. Quando essa vida se tornará uma pessoa, aí não tenho uma opinião formada. Acho que é uma questão filosófica mesmo. O conceito de pessoa também passa por uma questão legal, jurídica, os direitos da pessoa. E está havendo um movimento sobre essa questão de quando começa a vida que é pelo Estatuto do Embrião, porque se a vida começar na concepção o embrião também terá direitos.