Brasília, 11/9/2003 (Agência Brasil - ABr) - O psicólogo Fernando Braga da Costa nunca pensou em sentir-se tão vazio em sua vida como no dia em que foi ignorado pelos próprios colegas de faculdade, quando caminhava pelos corredores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Não se tratava de um drama pessoal, mas a situação tinha tudo a ver com estudos de iniciação científica que ele iniciou há seis anos como estudante de graduação. Todos passavam por ele e era como se não existisse, como se estivesse invisível. Quando se deu conta de que o motivo era o uniforme de gari que trajava, Costa ficou chocado e decidiu, a partir daí, se aprofundar num estudo psicológico e social do porquê de tal fenômeno.
Ele afirma que a experiência não pode ser atribuída simplesmente ao preconceito que isola, entre outras categorias, as pessoas de classes mais humildes. "Não se deram ao trabalho de ver que havia gente naquele uniforme. Percebi, aliás, que enxergaram só o uniforme. Era como se a roupa me fizesse invisível", conta. A sensação que teve, nesse dia, foi de completo vazio. "Senti-me tal mal, tão atordoado, que não consegui almoçar. Também não trabalhei bem", segue Costa com seu relato.
Classificado como "invisibilidade pública", termo da Psicologia que define o desaparecimento psicossocial de um homem perante seus semelhantes, o fenômeno que Costa sentiu na pele é mais comum do que se imagina. "A invisibilidade determina grande parte de nossas relações", observa o psicólogo, que ainda não abandonou os estudos acadêmicos. Depois de graduar-se, cursou o mestrado na USP e agora está no doutorado. Nos três, o tema escolhido como objeto de estudo foi a invisibilidade pública e os trabalhadores que são algumas de suas principais vítimas, os garis.
Seu interesse em estudar a profissão começou casualmente quando um professor sugeriu aos alunos que atuassem em uma profissão de caráter subalterno e com pouca qualificação técnica, como trabalho de avaliação. A ocasião descrita pelo professor como traumática ocorreu justamente depois de alguns dias como gari. Costa passara havia pouco pelo "rito de iniciação", como os que ocorrem em determinadas sociedades e que marcam a passagem da infância para a adolescência. "Quando a avaliação nos foi passada, escolhi a primeira profissão que me veio à cabeça, vesti o uniforme e fui trabalhar, achando que seria mais um gari contratado", explica.
Ele comprovou que estava enganado já no primeiro dia, o uniforme por si só não o faria um gari como os outros. Seus colegas o trataram de forma diferenciada e queriam lhe dar privilégios, tais como ir ao trabalho de campo dentro da cabine do caminhão, reservar para ele a vassoura mais nova e não permitir que manuseasse a enxada. Um dos objetivos da avaliação pedagógica estava cumprido. Costa concluiu que o motivo de tal comportamento era sua maneira de se portar socialmente. Ou seja, a maneira como gesticulava ou se expressava denunciava a classe social a que pertencia. "Todo o nosso gestual, incluindo aí nossa forma de vestir, andar, falar, pentear-se, enfim, mostrar-se publicamente, representa um conjunto de signos e expressa a classe social a que pertencemos", ensina.
Os colegas garis de Costa, que desconheciam a verdade sobre o trabalho de faculdade, tratavam-no com distanciamento e só se dirigiam a ele para passar instruções. Num determinado dia, no intervalo para o café, o grupo parou perto de uma plataforma de concreto do campus da universidade. Um deles retirou três latinhas de refrigerantes cortadas ao meio, que faziam as vezes de copo, de dentro da lata de lixo, ainda vazia. Eram dez garis, e os "copos" iriam circular entre todos, já que não eram suficientes. "Notei que havia um clima de ansiedade entre eles. Todos estavam curiosos para saber se eu ia tomar o café. Percebi que estava passando por uma espécie de ritual de ingresso no grupo e topei. Depois que bebi o café, senti que a tensão se dissipou e, a partir daí, passaram a me tratar como um igual", relata.
A partir daí, Costa passou, ele próprio, a se considerar um deles e aprendeu muito sobre seus códigos. "Determinados relatos deles eu não entendia por causa dos termos próprios que eles usam", revela. No dia em que passou pelos corredores do Instituto de Psicologia sem ser percebido, Costa estava acompanhado de um dos garis de seu grupo, que o havia convidado para almoçar no restaurante comunitário da universidade. Já se sentindo um deles e considerando o convite absolutamente normal, ele se chocou com a reação de seus outros colegas. "Foi como se não me vissem, eu estava invisível, e o curioso é que eu era popular, praticava esportes, era conhecido mesmo", observa. Ele também sentiu indignação, afinal concluiu que, naquele instituto, as pessoas deveriam ser mais sensíveis à presença humana.
Conseqüência do capitalismo
Mais do que um trauma pessoal, a experiência serviu para dar ao psicólogo subsídios para aprofundar seus estudos. Em 1994, ele decidiu fazer de seu trabalho de avaliação semestral um projeto de pesquisa e, mais tarde, orientado pelo professor José Moura Gonçalves Filho, mergulhou no assunto para elaborar sua tese de mestrado. Defendida no final de 2002, a tese levou o título de "Garis - Um estudo de psicologia sobre a invisibilidade pública".
O levantamento histórico para verificar a existência do fenômeno em outras civilizações e em outras épocas, bem como sua origem, mostrou a Costa que a invisibilidade é mais antiga que seu próprio registro no campo da Psicologia. Na Grécia Antiga, escravos, mulheres e crianças não tinham papel social nenhum e, por isso, eram simplesmente desconsiderados como membros da sociedade. Ele identificou a origem do fenômeno na consolidação do capitalismo, movimento que se firmou no século XVIII, com a Revolução Industrial, trazendo consigo implicações sociais e econômicas profundas, como a produção coletiva em massa, a geração de lucro e o acúmulo de capital.
"É a partir de então que mudam as relações de trabalho e, acima de tudo, o modo como o homem é visto na sociedade. A maneira como esse homem integra a sociedade é a partir de seu trabalho, sua ocupação. É esse o instrumento que o permite ter contato com outros homens", lembra Costa. O natural, continua ele, seria que o ser humano interpelasse, incomodasse, produzisse uma reação no outro, pela simples presença. Mas, desde os primórdios da divisão do trabalho, o homem passou a ficar encarregado de tarefas determinadas, e isso mudou sua visibilidade social. O economista, filósofo e socialista Karl Marx foi o primeiro a definir o fenômeno e usá-lo cientificamente como fixação da atividade social.
De relação entre pessoas, a sociedade passa a registrar relação entre funções. Costa classifica o olhar que se pousa, hoje, sobre o semelhante como o olhar "reificado". Ou seja, abandona-se o olhar simplesmente humano para, num processo de alienação, tornar o outro uma "coisa". O olhar reificado, para o psicólogo, é produto da relação mercantil que se dá entre as pessoas.
Nesse sentido, a invisibilidade atinge mais as profissões da classe pobre, do que as das classes média e alta. Como fenômeno, ela pode trazer o que Costa define como doença, que é a segregação social. "O que se convencionou chamar de violência é algo originário de uma condição social discrepante. Se eu não sou considerado, no seio da sociedade, um humano como os outros, como vou reconhecer a humanidade no outro?", questiona o pesquisador, como que explicando empiricamente o motivo por que autores de crimes como roubo e assassinato não se preocupam com o valor do patrimônio e vida alheios. Para ele, a invisibilidade é violenta e gera violência em troca.
A relação entre violência e invisibilidade não foi objeto de estudo da pesquisa de Costa, mas ele enumerou outro tipo de violência que gera, em contrapartida, comportamento de reação por parte das vítimas da invisibilidade. A violência velada, de não ver o outro como ser humano, gera na vítima do fenômeno um comportamento de indiferença. Ele conta o caso de um vigia da universidade que, certa vez, o encontrou saindo da aula e o abordou para falar de seus estudos com os garis. "O senhor podia trabalhar de vigia uns tempos para saber o que a gente passa aqui", comentou o vigia com o então aluno.
Curioso, Costa quis entender o porquê do comentário e descobriu no funcionário uma pessoa que se sentia humilhada. O psicólogo resgata a história ouvida em seguida: "Ele me contou que havia uma senhora, mulher de um dos professores, que ia buscar o marido freqüentemente. Essa mulher nunca havia dirigido nem sequer o olhar em direção a ele, nunca percebera que ele existia e que era útil naquele local. Mas, certo dia, quando o marido estava numa reunião demorada, a mulher, cansada de esperar, foi até ele perguntar-lhe se sabia algo. Ele devolveu o tratamento na mesma moeda, nem olhou nos olhos dela, como se não estivesse dando atenção, e respondeu que não sabia de seu marido, como se estivesse prestando atenção em outra atividade".
A explicação para o comportamento do vigia, segundo o pesquisador, é que o ser continua humano, independente da classificação social e, obviamente, ninguém tem prazer em sentir-se invisível. "Por isso, as vítimas da invisibilidade se fecham ao contato com o outro. Eles acreditam que estarão se protegendo", avalia.
A relação social, assim, indica que há um componente a mais, o rebaixamento. Há os que estão em determinados postos da sociedade para servir e outros para serem servidos. Os primeiros recebem ordens, acatam determinações. Os demais nem sequer tomam conhecimento da situação que provocam, ainda que seja algo não tão inconsciente, segundo Costa.
Não satisfeito em apontar as raízes históricas do fenômeno, identificar suas causas e estudá-lo à exaustão, Costa tenta apontar soluções para que a invisibilidade tenha fim. "Seria preciso que todos tomassem parte em tarefas que não são próprias de seu dia-a-dia, numa atitude mais simples. Complexamente, acredito que é necessário reestruturar a sociedade de baixo para cima", opina. Certo de que seus colegas garis, como outras pessoas que pertencem a profissões típicas de classe pobre, são seres infelizes, o pesquisador crê que a análise sobre os efeitos do fenômeno em suas vítimas, no entanto, tem que ser mais complexa. "Eles sofrem porque sabem que os ricos são seres humanos como eles, mas que não enxergam a mesma realidade na contramão. No entanto, não sei se o sentimento acabaria caso eles se tornassem ricos. Sei que, devido sua condição social, o gari tem uma vida parcial, uma vida impedida", postula.