Vandana Shiva (*)
Nova Délhi - Depois do fracasso da reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 1999, em Seattle, o encontro de Doha em 2002 foi uma tentativa de restaurar a legitimidade que esta instituição internacional perdeu pouco depois de seu nascimento. Agora, entre 10 e 14 de setembro, os ministros dos países que integram a OMC se reúnem em Cancún, no México, para discutir o destino de muitos milhões de agricultores pobres do planeta.
O problema com a OMC está ligado tanto ao processo de criação quanto ao conteúdo da instituição. A organização nasceu do unilateralismo dos países ricos, disfarçado de multilateralismo, embora as nações do Sul do mundo tenham resistido à inclusão nas negociações do tratamento de questões não comerciais, como a propriedade intelectual, os serviços e os investimentos, já durante a Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Alfandegárias (GATT), entre 1986 e 1994.
Para a maioria dos povos do mundo, que são agricultores e camponeses, os dois temas mais sensíveis da OMC são o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS) e o Acordo sobre Agricultura (AoA). Estes representam, literalmente, questões de vida ou morte para os pobres do Sul do planeta. Nos dois casos, incorporaram-se modificações obrigatórias no tratado e movimentos populares e governos do Sul insistem na concretização de revisões e reformas.
Entretanto, países poderosos representando poderosas corporações agrocomerciais e farmacêuticas têm bloqueado sistematicamente o processo de revisão e desviado os resultados para acomodá-los aos seus interesses. Tanto o TRIPS quanto o AoA forçam os sistemas nacionais a adotarem regras globais que criam mercados para as corporações globais. O TRIPS cria a propriedade sobre a biodiversidade, formas de vida, recursos genéticos e conhecimentos e vai contra toda norma ética de eqüidade e ecológica. Por sua vez, o Aoa força a transformação da agricultura, que passaria de base de sustento da maioria dos povos do mundo e fonte de satisfação das mais básicas necessidades, para um sistema de produção de mercadorias baratas que dêem enormes lucros às corporações agrocomerciais.
O TRIPS, além de cometer o atropelo ético de tratar a vida como uma "invenção", também levou a uma epidemia de biopirataria sob a forma de patentear conhecimentos indígenas ancestrais e biodiversidade indígena. Estas questões foram objeto de repetidas intervenções na OMC por parte de membros dos países em desenvolvimento. Entretanto, nenhuma destas reclamações do Sul, que já constavam da Declaração de Doha, é mencionada no projeto de Declaração de Cancún. As questões da biodiversidade, biopirataria e dos monopólios sobre as sementes desapareceram totalmente dessa agenda.
Entretanto, os acordos de Doha serão "vendidos" como novos resultados de Cancún. Os Estados Unidos apresentarão a remoção de seus obstáculos à concretização dos acordos de Doha como uma "concessão" à mudança, pela qual exigirá uma posterior liberalização comercial da agricultura para ampliar os mercados para suas subvencionadas empresas agroindustriais, tais como Cargill, ADM e Conagra.
Os compromissos da Rodada do Uruguai já estão destruindo a segurança alimentar e os agricultores do Sul. Na Índia, cinco milhões de camponeses perderam seus meios de vida, 20 mil agricultores se suicidaram, o consumo per capita de alimentos caiu a um nível mais baixo ainda do que o da fome de Bengala, na década de 40. A produção de grãos alimentícios baixou em 13,6% e a de sementes para produção de óleo caiu 11,4%. Subsidia-se as exportações em lugar de fazê-lo com os alimentos para o povo. Enquanto os pobres pagaram US$ 90,6 por tonelada de trigo, as corporações pagavam US$ 86,5.
As Restrições Quantitativas (RQ) sobre importações e exportações agrícolas são necessárias para defender o sustento dos agricultores e a segurança alimentar, bem como para prevenir o crescimento da fome e da pobreza. As RQ também são a única salvaguarda contra o dumping dos países ricos nos produtos agrícolas convertidos em artificialmente baratos graças aos US$ 400 bilhões anuais em subsídios. O direito a impor RQ deve ser reincorporado às regras comerciais se for para defender o sustento dos pobres. De outro modo, como afirmou Arun Shourie na reunião ministerial de Montreal, nossas sociedades vão implodir sob o peso da globalização.
A liberalização comercial da agricultura está agindo contra camponeses e consumidores pobres, contra a segurança alimentar e as exportações do Terceiro Mundo, e serve apenas para criar monopólios empresariais no setor de alimentos. O que se necessita é uma redução do alcance da liberalização comercial e não sua ampliação, especialmente em setores vitais como a agricultura. Movimentos de cidadãos elaboraram, com vistas à reunião de Cancún, uma agenda diversa da oficial, que é "paralisante e um passo atrás".
Os governos deveriam respeitar e fazer eco à vontade democrática de seus cidadãos quando vão negociar. Se Cancún converter-se em um passo a mais do unilateralismo das grandes corporações, a OMC perderá sua última oportunidade de pretender se legitimar através do multilateralismo. Cancún é uma prova para a OMC e um teste para a democracia.
(*) Vandana Shiva é escritora e especialista em temas ambientais e direitos da mulher
Artigo originalmente publicado na Inter Press Service