O comércio internacional de produtos agrícolas e a segurança biológica
Maria Regina Vilarinho de Oliveira (*)
O último século e, principalmente, a última década presenciaram mudanças de grandes proporções tanto na economia global como em relação ao comércio internacional. Os avanços nos meios de transporte e de comunicação e a conseqüente melhoria da qualidade de vida da sociedade mundial foram os principais agentes propulsores dessas mudanças. Em conseqüência, aumentos expressivos ocorreram nas áreas de turismo e lazer, compras de produtos primários e manufaturados e nas trocas de várias outras mercadorias.
De acordo com o Banco Mundial, a economia global aumentou 28 vezes nos últimos 30 anos. Apenas entre 1995 e 1998, o valor total de importações passou de US$ 192 bilhões para US$ 5,4 trilhões. A importação de produtos primários agrícolas e industriais aumentou de US$ 55 bilhões, em 1965, para US$ 482 bilhões em 1990. No Brasil, o agronegócio passou a ter uma posição estratégica no superávit da balança comercial. De acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa, consultado em 23/7/03), a participação do agronegócio representou 44,5% do total arrecadado com as exportações brasileiras registradas no mês de junho, US$ 5,875 bilhões, com um recorde histórico de 48,5% em relação ao mesmo período do ano anterior e um superávit comercial do agronegócio de US$ 24 bilhões.
Junto a esses avanços e aumentos, organismos até então inexistentes em algumas regiões do mundo, passaram a ser introduzidos, causando grandes problemas socio-econômicos e ambientais. Definem-se como organismos ou espécies invasoras quaisquer microrganismos (invertebrados), plantas e animais (vertebrados), introduzidos intencionalmente ou não, em novos habitats, causando efeitos deletérios tanto no ecossistema como no setor sócio-econômico da região.
Exemplos que não devem ser esquecidos de introduções indesejadas são: (1) a peste bubônica, causado pela bacilo de Yersin, Pasturella pestis e transmitida por pulgas que vivem em ratos (Rattus rattus) se disseminou da região asiática para o norte da África, Europa e China, matando na Idade Média, um terço da população desses continentes; (2) o vírus causador da varíola e do sarampo foi introduzido no hemisfério ocidental por intermédio de colonizadores europeus, e praticamente dizimou os índios dos impérios asteca e inca; (3) a fome que assolou a Irlanda, em 1840, provocada pelo fungo, Phytophtora infestans, que ataca a batata, e depois introduzido na América do Norte, afetando grandes comunidades que viviam desse produto.
No Brasil, entre vários exemplos semelhantes aos citados anteriormente, temos o do bicudo do algodoeiro, Anthonomus grandis. Esse inseto, quando introduzido no país, por volta de 1982, causou grande impacto na economia nacional, mas principalmente na da região nordestina, fazendo com que o país passasse do papel de um dos maiores exportadores mundiais de algodão para o de maior importador. Só depois de quase 20 anos, com o auxílio da pesquisa científica, é que o país volta, timidamente, a exportar algodão. Se medidas fitossanitárias de erradicação tivessem sido tomadas, imediatamente após a entrada do inseto, o impacto sócio-econômico não teria sido tão devastador.
Barreiras naturais e nacionais, entre elas, as econômicas e as políticas, que antes eram capazes de deterem parte desses organismos indesejados, hoje não são mais eficazes por receberem uma grande pressão da sociedade moderna para manutenção ou melhoria da qualidade de vida por meio do consumo de produtos. Nos EUA, 43 insetos invasores exóticos, no período de 1906 a 1991 causaram perdas estimadas em US$ 925 bilhões aos cofres públicos.
Na década de 90, a expressão "globalização da economia mundial" dominou os mais diferentes setores da sociedade. Contudo, durante esse período observou-se que apenas os fatores econômicos não seriam capazes de proteger esse mercado. A proteção teria que ser estendida à biodiversidade animal e vegetal bem como ao homem em relação a pragas, resíduos, toxinas e outros contaminantes que podem estar associados a plantas, animais e alimentos industrializados. A proteção de um país passou, portanto, a estar além de suas fronteiras e o termo "risco" passou a direcionar ações, normas e diretrizes do comércio internacional.
A expressão "segurança biológica" ("biosecurity" em inglês) foi, então, adotada pela FAO na busca por instrumentos e atividades que possam conscientizar os diferentes segmentos da sociedade sobre esse problema e significa, "o manejo de todos os riscos biológicos e ambientais associados à alimentação e agricultura, Incluindo os setores de pesca e floresta". Os riscos incluem desde a avaliação dos organismos vivos modificados (OVM) (biossegurança), a espécies invasoras e a introdução de pragas de vegetais e animais até a erosão da biodiversidade com perda de recursos biológicos e genéticos, a dispersão de doenças (como o mal-da-vaca louca e a febre aftosa), armas biológicas de guerra, e assim por diante.
Essa terminologia, estabelecida pela FAO, vai muito além da elaboração de políticas públicas para a sanidade animal e vegetal e para os organismos geneticamente modificados (biossegurança), pois inclui também o desenvolvimento de métodos científicos, considerações éticas, confiabilidade, rastreabilidade, vigilância para a proteção da sociedade.
No Brasil, o órgão responsável pela harmonização e execução de medidas sanitárias e fitossanitárias durante as negociações do comércio internacional é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Este órgão, junto à sua Organização Nacional para Proteção Sanitária e Fitossanitária (ONPF), que é a Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA)/Departamento de Defesa e Inspeção Vegetal (DDIV), iniciou o processo de estabelecimento das bases técnico-científicas para a concretização das medidas fitossanitárias, de acordo com os órgãos de proteção de plantas inter-governamentais.
A comunidade científica deve participar neste novo cenário mundial como um elemento fundamental subsidiando os órgãos oficiais na tomada de decisões e na elaboração de políticas públicas. Do mesmo modo, o setor privado (indústria, comércio, produtores, etc.) desempenharão um papel importante quanto ao fornecimento de informações tanto para a identificação como para a avaliação e mitigação do risco de pragas.
Nesse novo cenário do comércio internacional, se o Brasil pretende aumentar suas exportações agrícolas e conquistar e manter mercados deverá estruturar a sanidade animal e vegetal de forma a dar credibilidade a suas ações e produtos. Essa estruturação deve, necessariamente, passar pelos seguintes passos:
(1) estabelecimento de um comitê multidisciplinar em segurança biológica para determinação de metodologias sobre Análise de Risco de Pragas, Organismos Geneticamente Modificado (OGMs), Impacto ambiental e econômico, Resíduos, Toxinas e Contaminantes. Esse comitê deve também realizar estudos sobre as normas internacionais de medidas fitossanitárias, que estão sendo elaboradas por órgãos inter-governamentais como o Codex Alimentarius, Organização Internacional de Epizootias, Convenção Internacional de Proteção dos Vegetais e Convenção da Biodiversidade, com participação ativa em fóruns nacionais e internacionais, dando embasamento técnico-científico às ações governamentais referentes à exportação e importação de produtos vegetais;
(2) capacitação e qualificação de profissionais, em equipes multidisciplinares, em segurança biológica, para o entendimento das medidas sanitárias e fitossanitárias, levando-se em consideração a análise de risco, de modo a elaborar justificativas técnico-científicas para as restrições impostas no setor de importação de produtos agrícolas, diminuindo as disputas bi ou multilaterais e as barreiras zoo e fitosanitárias;
(3) credenciamento e melhora da capacidade e infra-estrutura de laboratórios das instituições de pesquisa para a diagnose acurada de pragas, identificação de resíduos e de microrganismos tóxicos e análise da qualidade de produtos veterinários e dos agrotóxicos tanto para a exportação como na importação de produtos agrícolas;
(4) desenvolvimento de tecnologias avançadas para diagnose, prevenção e controle de pragas de alto risco para a agricultura brasileira. É também necessário o desenvolvimento de métodos científicos adequados, para amostragem, monitoramento de pragas de vegetais e animais, detecção de resíduos e microrganismos tóxicos em produtos derivados dos animais e vegetais visando estabelecer áreas livres e ou de baixa prevalência de pragas, de modo a estabelecer transparência durante as negociações agrícolas, ao mesmo tempo em que aperfeiçoa, fortalece e harmoniza o repasse dessas informações para a sociedade;
(5) desenvolvimento de métodos científicos claros e transparentes para tratamentos sanitários e fitossanitários em commodities de exportação;
(6) incorporação dos conceitos de perigos e riscos na agricultura junto ao sistema produtivo, levando em consideração o nível apropriado de proteção sanitária e fitossanitária e os planos de contingência de pragas;
(7) maior atuação de instituições públicas e privadas de ensino para implementação de disciplinas referente às novas tendências de medidas fitossanitárias globais, incluindo a formação de analistas de risco;
(8) ampliação do sistema de defesa agropecuária do país para evitar a entrada de pragas que podem levar a perda de mercados exigentes. Deve-se incluir a formação de um banco de dados de pragas potenciais e de perigo imediato para a agricultura nacional, de modo a facilitar e embasar os acordos comerciais de importação, exportação de produtos agrícolas, incluindo materiais de propagação vegetativa (recursos genéticos) e o treinamento de profissionais das áreas de sanidade e fitossanidade quanto à formação de base de dados de alerta para a movimentação de pragas ao redor do globo, pragas essas que podem colocar em risco o sistema agrícola brasileiro;
(9) conscientização dos produtores agrícolas por meio de seminários, palestras e da mídia escrita e falada sobre a importância de se evitar a entrada de pragas no país e as mudanças na segurança biológica de cada país;
(10) a ONPF deve ampliar a comunicação de risco entre os cientistas, o sistema produtivo e a sociedade, de modo a elaborar sistemas informatizados (portais, por exemplo) de alerta de pragas que podem colocar em risco as áreas de produção agrícola, de estratégias de defesa agropecuária durante processos de exportação e importação e de inovações que surgirem resultantes das normas internacionais de medidas fitossanitárias.
(*) Maria Regina Vilarinho de Oliveira é Bióloga com doutorado e pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), Cx. Postal 02372, Brasília, DF. Email: vilarin@cenargen.embrapa.br.