Salvador, 31/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - "Quero mesmo que você me procure amanhã. Tem umas coisas que eu gostaria de pôr em reportagem". A conversa rápida com Hamilton Daniel de Paula se deu em plena agitação da festa de abertura do Alaiandê Xirê. Paramentado como filho-de-santo, ao lado de Leuzinéia Stein (ou "de Oiá", como ela prefere), dava uma boa imagem para o Milena. Tinha que conferir pelo menos os nomes, mesmo que não dessem papo. Disse-me e lançou o sorriso assimétrico, olhar fixo. A proclamada origem na ilha de Itaparica, a pele e os olhos mestiços fizeram supor parentesco remoto com os tupis da região, extintos mais de um século antes de o romantismo oitocentista e, mais tarde, a umbanda imortalizá-los.
Pouco depois, conversava com o professor Ysamur, do texto anterior. Uma das assessoras de imprensa do evento apressou-se em puxar-me quando um negro baixo e de constituição forte se aproximou da roda. "Este aqui é o guardião de uma das tradições mais ameaçadas do candomblé, que é o culto aos ancestrais, os eguns. Como o terreiro dele, já não há quase nenhum, a não ser na África. O professor vai inclusive tentar reintroduzir em Cuba essa tradição."
O padeiro Miguel Roque Filho me conta que é ojé, sacerdote de Lessé Ogum, do terreiro Ilê Axé Tuntum, na Ilha de Itaparica. Existem apenas cinco ou seis terreiros da sociedade egungun no Brasil. Só um, na Baixada Fluminense, fica fora da Bahia. Do Tuntum saíram todos os outros, a partir de dissidências. "Mas, a gente faz força mesmo é para não abrirem nenhum. A sociedade egungum é como uma maçonaria negra, secreta. Até há menos de 20 anos só existia o nosso terreiro" - talvez a assessora se decepcionasse ao ouvir isso, penso eu.
Miguel explica: não é para qualquer um o conhecimento que permite o contato com os eguns. Só os rituais necessários para converter um morto recente - perigoso, porque pode querer levar os vivos consigo - em alguém com quem se pode ter contato duram sete anos.
O culto aos eguns, ou ancestrais, existe também no candomblé dedicado aos orixás, mas não adquiriu maior expressão no Brasil. Trata-se de rituais familiares, embora o tempo, que é rei, como já cantou um ministro, flexibilize as regras. No Axé Tuntum, a família que deu origem ao terreiro são os Daniel de Paula. Miguel entrou na história como sucessor do pai, que também exercia o papel de ojé dali. A família deste, por sua vez, adquirira vínculo de parentesco com os Daniel de Paula, e foi isso que permitiu seu acesso ao culto secreto.
Mas, onde estão os Daniel de Paula, pergunto eu. "Aqui mesmo no Ilê Axé Opô Afonjá mora um deles. Poderia ocupar cargo no Tuntum. É o Miltinho, Hamilton Daniel de Paula". Aquele mesmo, do primeiro parágrafo.
Restava saber por que deixara o cargo que lhe cabia por herança o Hamilton, hoje filho de Oxaguiam e com o cargo de Olobolum no terreiro de Mãe Stella. Depois de muito procurar por sua casa na direção que ele nos dera na noite anterior, encontramo-lo ali mesmo, ao pé da cruz dos mortos, em saudação aos ancestrais, a quem ele nunca deixa de dispensar atenção, apesar de ter seguido o caminho dos orixás. "Na barriga de minha mãe, já me apareceu a coroa de Xangô. E eu estava destinado a ser lessé orixá, não lessé egum". Lembra o pai, que, segundo ele, titubeou nessa escolha a certo momento da trilha. Não teve mais que exatos 24 meses de vida, logo após.
E concluiu, com os mesmos olhos e sorriso afro-ameríndios, apertando a mão do repórter, pouco antes do retorno a Brasília. "Eu segui outro caminho, mas conheço o mistério da vida e da morte. Está comigo, me foi dado pelos ancestrais. Um dia, posso usá-lo. Obrigado."