Brasília, 28/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - Professora, primeiro na Unicamp, depois na USP, onde se aposentou, e atualmente na Universidade de Chicago, a portuguesa Manuela Carneiro da Cunha tem uma biografia tão movimentada quanto a dos pais, judeus húngaros trotskistas que vieram para São Paulo depois de lutar na Guerra Civil Espanhola e escapar da 2ª Guerra Mundial.
Graduando-se em matemática, freqüentou em Paris as aulas de Claude Lévi-Strauss em plena agitação estudantil de 1968. Já no Brasil, começou a carreira com um estudo sobre os índios krahó. Depois, acompanhou o marido na África e estudou a comunidade de descendentes de brasileiros na Nigéria. Na década de 80, de volta ao Brasil, participou do movimento de criação das ongs que ajudaram a garantir os direitos indígenas na Constituição de 1988.
Também organizou estudos de fôlego, como a monumental coletânea História dos Índios no Brasil (1992) e, mais recentemente, a Enciclopédia da Floresta (2001), reunião de estudos feitos na região da bacia do Alto Juruá (AC). Retrato que vai da cultura dos seringueiros às comunidades indígenas Kaxinawá, Ashaninka e Katukina, a obra é fruto do trabalho conjunto com seu atual marido, Mauro Almeida, companheiro de luta do líder seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988. Do trabalho de pesquisa e militância que resultou na publicação, também nasceu em 1990 a reserva extrativista do Alto Juruá, a primeira do País.
Manuela teve rápida passagem por Brasília, na quinta-feira (21). Participou de audiência pública na Câmara dos Deputados, com o tema "Conhecimentos Tradicionais – Direitos Intelectuais". Ali, defendeu a necessidade de pesquisas sobre o real valor dos produtos que utilizam como base as técnicas e saberes tradicionais sobre o meio ambiente. "Não há hoje uma avaliação segura de quanto se deve pagar", disse, em sua exposição. Também sublinhou a necessidade de garantir assistência jurídica a grupos como índios, seringueiros, caiçaras e quilombolas, para que firmem contratos justos na divisão dos benefícios advindos da aplicação de seu conhecimento tradicional à criação de remédios, alimentos ou outros produtos industrializados.
Após o compromisso, já no aeroporto, onde embarcaria para São Paulo para permanecer no país até o fim de setembro, a antropóloga aprofundou o debate em torno da garantia de direitos intelectuais no mundo de hoje, que atinge áreas como as artes, a comunicação e o software.
Agência Brasil: A senhora falava em sua exposição da idéia de direitos intelectuais sobre o conhecimento tradicional, distinguindo-os da idéia de propriedade intelectual. Que categorias a senhora acredita que poderiam ser mais adequadas para garantir os direitos sobre o conhecimento tradicional, que não a idéia de propriedade?
Manuela Carneiro da Cunha: A contracultura hoje é a da liberdade de apropriação, transformação, recriação de idéias alheias – como sempre foi, aliás. E essa contracultura se opõe a uma tendência hegemônica, sobretudo em lugares como os Estados Unidos, em que, ao contrário, a apropriação privada das criações, sejam elas artísticas ou científicas, está imperando.
Se você impõe a figura da propriedade intelectual, congela e monopoliza a informação de uma forma que não é necessariamente compatível com o modo de produção do conhecimento pelas sociedades tradicionais, em que a informação circula muito livremente. No fundo, essas sociedades são um pouco como uma universidade, uma ilha de discussão de idéias livre num mar de apropriação privada de idéias.
O modo de conhecimento das sociedades tradicionais repousa em grande parte sobre uma livre circulação de informações e de resultados de experiências. Torná-lo propriedade é engessar esse modo de conhecimento e pode destruir aquilo que se está querendo proteger.
O domínio público pago poderia ser uma via alternativa interessante a essa idéia de propriedade. É pago se for usado comercialmente, para os provedores do conhecimento participarem dos resultados. Caso não seja usado comercialmente, continua em domínio público.
Isso teria algumas vantagens também porque muito do conhecimento tradicional já existente está em domínio público de fato: em bancos de dados, em publicações, inclusive antropológicas, etnográficas.
Agência Brasil: Não corremos o risco de chegar a um ponto parecido com a discussão sobre o ressarcimento a populações vítimas da escravatura ou de perseguição na 2ª Guerra? No fim das contas, até a batata, o tomate, o milho e a mandioca são frutos de descobertas do conhecimento tradicional dos povos ameríndios. Como delimitar até onde deve chegar esse reconhecimento de direitos?
Manuela: Todos nós, inclusive as populações tradicionais, usamos os conhecimentos um dos outros. Há uma grande mistura. O café veio para cá, e a borracha foi para a Malásia. O século XVII foi o grande século do trânsito botânico, e os portugueses e holandeses foram os principais artífices disso. Promoveram uma enorme viagem de espécies botânicas pelo mundo. Seria absurdo pagarmos pelo uso do café, ou pensar que deveríamos ter participação nos benefícios pelo uso da borracha na Ásia. Não se trata disso, há uma questão de bom senso aí.
O que há é a idéia de que o conhecimento atual, que vai servir para se desenvolverem novos produtos, deveria também beneficiar quem gerou essas idéias. É muito diferente da propriedade intelectual em sua plenitude. Da mesma maneira que, por exemplo, existem movimentos como o do copyleft, na área da Internet (N.R.: como inversão da idéia de copyright, direitos autorais, trata-se de um movimento vinculado à defesa do software livre – a circulação de programas de computador que podem ser usados, modificados e repassados gratuitamente por qualquer usuário. O objetivo do copyleft é garantir que toda cópia desses programas continuará sendo livre, como o original), há muita convergência com essas idéias de um regime sui generis que, por um lado, beneficie os produtores desses conhecimentos, mas por outro lado não os seqüestre.
Eu sou uma das pessoas que defendem essas idéias do copyleft. O jurista americano James Boyle, que também defende essas idéias, organizou uma reunião há uns dez anos. Ele juntou questões de interesses intelectuais quanto ao software, as células humanas e o conhecimento tradicional. E, no final dessa discussão, declarou que, embora estivesse pregando a idéia de domínio público basicamente, no entanto, no caso do conhecimento tradicional, existe uma injustiça histórica. Você tem razão de questionar até onde vai, digamos, o ressarcimento dessa injustiça histórica. Acho que vai até onde manda o bom senso, que ainda é o melhor guia para essa coisas.
Agência Brasil: Vemos hoje um movimento muito forte por parte das indústrias para formar um senso comum em torno dessas idéias de propriedade, pirataria etc., no que tange à música popular, o cinema, o software. Como antropóloga, por onde a senhora avalia que passa o confronto dessas idéias em direção a um regime de reconhecimento geral do copyleft?
Manuela: Esses exemplos são de direitos autorais, uma categoria particular da propriedade intelectual. Novamente, tudo está na justa medida. Por um lado, a criação autoral só se faz em cima de outras criações. A própria Disney, corporação que é a maior defensora de direitos de propriedade intelectual, para garantir os direitos autorais sobre o Mickey Mouse: Walt Disney criou o primeiro desenho animado do Mickey parodiando um filme de Buster Keaton da mesma época. Em suma, como se costuma dizer, nada se cria, tudo se copia. Ou melhor, tudo se remonta, e essa remontagem é que é interessante.
A criação não se faz no vácuo, se faz a partir de uma linguagem e de imagens compartilhadas. Esse regime de propriedade intelectual tolhe brutalmente a criatividade. O movimento pelo copyleft está apontando para a importância da liberdade de um certo tipo de uso da criação de outros para a própria criação. Todas as chamadas citações na arte fazem exatamente isso. Hoje se chegou a tal extremo nessa proteção de direito autoral que estão se cobrindo coisas por um tempo absurdo, como é o caso agora de 95 anos nos Estados Unidos.
Entre os autores não receberem nenhum fruto da sua criação e um controle total dessa criação por meio da propriedade intelectual, temos que ficar, novamente, no que o bom senso manda. A criação do direito autoral tem uma história muito curiosa. Não foram os escritores que começaram a pedir direitos autorais, foram os impressores, os livreiros de Londres. Eles estavam furiosos, porque impressores da Escócia estavam ameaçando o que eles consideravam ser o seu patrimônio.
Finalmente, chegou-se a um meio termo, proteção durante um certo tempo, depois domínio público. O sujeito que tinha os direitos autorais sobre o "Paraíso Perdido", de Milton, tinha pago cinco paus para ele pelo monopólio da impressão da obra. E, no seu ataque aos piratas escoceses, ele disse: "Isso é como uma terra. Eu quero deixar esse monopólio para os meus filhos".
E o interessante é que Locke, o inventor da base da propriedade a partir do trabalho, era contra o direito autoral. Ele achava que não se podia comparar o trabalho intelectual com o trabalho na terra. Engraçado, os maiores piratas até o começo do século XX eram os Estados Unidos, que não respeitavam direitos autorais de autores ingleses. Tanto que Charles Dickens fez uma viagem memorável aos Estados Unidos, furioso, tentando ver se lhe pagavam alguma coisa pela publicação dos livros dele. Você vê que no fundo o que mudou foram os interesses dos EUA. Hoje, os direitos de propriedades intelectual, sobretudo na indústria farmacêutica, são uma fonte muito grande de rendimentos para eles. Quanto mais se estende o prazo da patente, do direito autoral, mais conveniente é para os EUA. E isso é imposto por meio da Organização Mundial do Comércio para o resto do mundo.
Agência Brasil: A senhora acompanha lá dos Estados Unidos toda essa discussão. Como vê os acordos que estão sendo feitos com o Brasil na área de direitos intelectuais, os debates sobre a Alca?
Manuela: Eu não estou suficientemente informada sobre isso, não quero falar sobre o que não entendo, mas sei que, além das imposições feitas por meio da OMC, onde os EUA têm evidentemente uma hegemonia, eles também fazem acordos bilaterais com condições ainda mais draconianas. Essa negociação dos acordos é extremamente delicada e importante, e penso que o Itamaraty está consciente disso.
Especificamente quanto ao conhecimento tradicional, eu diria que essa questão está trazendo à baila também a importância de exigir o registro da origem no processo da patente. O caminho que levou à invenção, o material usado: tanto os recursos genéticos como conhecimentos tradicionais devem fazer parte da descrição de qualquer produto que se deseje patentear.
Quando se compra um imóvel, temos acesso a toda a cadeia dominial. Quando se patenteia, deveria-se mostrar o chamado consentimento prévio fundamentado das pessoas que deram acesso aos recursos ou aos conhecimentos tradicionais, que foi feito um contrato da repartição de benefícios, enfim que se atuou dentro da lei.
Só assim vamos poder, inclusive, separar a pesquisa científica da pesquisa comercial. Se a pesquisa é aproveitada para gerar produtos comerciais, a partir desse momento, deve-se negociar. Mas quem vai controlar isso na origem? O controle tem de ser feito no ponto final, no momento da patente.
Agência Brasil: A senhora fazia uma analogia dessa identificação da origem com o sistema usado para os vinhos, por exemplo. Que força tem hoje no mundo a marca "Amazônia" como origem de um produto?
Manuela: Tem força. Mas, é um absurdo, um desastre econômico derrubar árvores na Amazônia para exportar commodities como soja ou gado, que podem ser produzidos absolutamente em qualquer lugar. Por mais que gerem divisas agora, estão destruindo uma das nossas maiores fontes de riqueza para o futuro. Mas, quando você compra a borracha que os seringueiros de uma reserva extrativista produziram, você está não só comprando borracha, mas está comprando preferencialmente uma borracha que foi produzida por certas pessoas, em certas condições. Esse é um movimento que já existe nos Estados Unidos. É chamado Fair Trade. Justamente, da mesma maneira que se paga mais por produtos orgânicos, também se paga eventualmente mais por um café que você sabe que foi feito por pessoas em condições dignas – por uma cooperativa, por exemplo, que você sabe que funciona de uma certa maneira. Tem um selo. E esses selos são importantes hoje em dia no comércio internacional. Então, menos do que a Amazônia em geral, é a Amazônia sustentável que tem valor. Uma Amazônia que não está só vendendo sua madeira, mas que está vendendo produtos certificados, que indicam como foi feito esse produto. Na França, por exemplo, essas apelações de origem controladas não são só uma questão de localização geográfica, indicam um modo tradicional de fazer.