Comer poeira para vingar a cegueira histórica

24/08/2003 - 9h30

Brasília, 24/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - Depois de cerca de 30 mil quilômetros rodados, entre vôos, rodovias, estradas de terra e veredas onde chegamos a pé, concluímos, eu e o fotógrafo U. Dettmar, a primeira etapa do projeto "Nova Geografia da Fome", patrocinado pelo Banco do Nordeste. O batismo vem do livro clássico do cientista pernambucano Josué de Castro, o primeiro a denunciar, ainda nos 40 do século passado, o ronco das necessidades básicas que persistem nos estômagos dos sertões e periferias afora. Fomos a dez estados _ o Nordeste inteiro e os vales miseráveis das Minas Gerais. A caatinga virou um mar de histórias.

Além da fome atual, que não é ficção, como às vezes insinuam cínicos escribas da metrópole, o mais importante nesse primeiro momento foi documentar a memória dos mais velhos, museu do imaginário e das carências mais antigas. Falas necessárias cortadas à faca e soluços, como o choro permanente do vaqueiro Pedro dos Santos, de uma
Barcelona potiguar visitada duas semanas atrás. Narrativa oral que não devem se perder no vento, como punhados de farinha que não chegam à boca.

Filho da nação semi-árida, a fome sempre foi enredo bem próximo de mim. Em 1932, meu tio-avô Patriolino tombou, durante a construção de um açude nas Batateiras, município do Crato, no Cariri cearense. Cresci ouvindo essa história. Contada pelo meu avô João, que foi salvo nas últimas, por uma mulher conhecida por ele como Madrinha Zefinha do Ipiranga. "Escapei por um milagre, mas nunca consegui esquecer a hora em que meu irmão dobrou no meio, desmilingüindo em cima de um carrinho de mão cheio de terra", contava, à guisa de encorajamento para a vida dos netos.

Na viagem pelos sertões, 71 anos depois desse episódio, ouvi muitas histórias semelhantes. Sem contar os infinitos casos dos "anjinhos", crianças que morrem antes de completar um ano de idade. Raro encontrar uma mãe que não tenha perdido pelo menos um. "Deus dá, Deus tira", conformam-se.

Quase quatro meses na estrada _ as reportagens passaram a ser publicadas algum tempo depois da nossa saída _, nos deparamos também com a poeira da esperança. Foi difícil chegar a Guaribas, no Piauí, com tantos buracos no caminho e um deserto de areia pela frente. Mas a cidade-laboratório do programa federal Fome Zero, no dizer dos próprios moradores, passou a fazer parte do mapa de janeiro para cá. Ganhou água tratada, alfabetização para adultos, casas populares, mercado público, rádio comunitária, estudos e planejamento estratégico feito por uma equipe do governo estadual.

A síntese da mudança, como tem dito o ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome, José Graziano, pode ser vista no rosto das mulheres. Com tempo de sobra, economia a serviço da auto-estima, elas motivaram a abertura do primeiro salão de beleza na cidade, ainda em maio. Esse tempo foi ganho com a água mais perto de casa e os R$ 50 que permitem acordar com o juízo menos atordoado. "Ganhar o ‘de-comer’ no próprio dia acaba com qualquer um, deixa um rastro de tristeza danado, pois num é sempre que se consegue voltar com o almoço", lembra dona Tereza Rocha, 88 anos, a mais antiga moradora do município.

Na rota do programa do governo federal, que não tem o assistencialismo fácil de benefícios anteriores, há sinais de animação. Pelos mesmos motivos citados por dona Tereza. Em alguns municípios, existem queixas contra a excessiva democracia do Fome Zero, cujas decisões são tomadas por um comitê gestor _ composto por nove representantes da sociedade. O benefício às famílias está associado a projetos como a alfabetização de adultos e atividades comunitárias, por exemplo. "Vocês não sabem o que é um homem de quase meio século nas costas sair daqui com a felicidade no rosto de assinar o próprio nome pela primeira vez", conta a comerciante Maria Tereza de Souza, representante da Igreja Católica no comitê de Acauã, a outra cidade laboratório do Fome Zero, que já alfabetizou cerca de 500 adultos.

Contra o programa, no entanto, ainda vale lembrar um velho dilema levantado por Euclides da Cunha, no livro "Os Sertões". O escriba dizia que o país estava diante da peleja entre a rua do Ouvidor e a caatinga. O endereço carioca concentrava, na época, 1902, os maiores jornais e editoras do país, casas de impressoras que forçaram a barra para antecipar, a todo custo, o triunfo das tropas republicanas contra o povo de Canudos, uns poucos anos antes. Valia tudo para encobrir os fatos e a matança.

A rua do Ouvidor, que concentrava o poder da mídia impressa, hoje é uma metáfora fora de lugar, mas a caatinga, seja na fome ou nos exemplos de esperança, continua, infelizmente, a ser ignorada como sempre. É contra essa cegueira histórica que estamos dispostos a comer toda a poeira da estrada.

Xico Sá