Barcelona (RN), 17/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - Na frente da casa, calçada alta, em Barcelona (RN), o vaqueiro e homem da roça Pedro Joaquim dos Santos, 64 anos, o Pedro Quincó, galego como muitos na caatinga de olhos azuis ou cor de capim, amola o machado e derrama-se em lágrimas. É um homem que chora, chuva diária de dores antigas e novas, algumas represadas, como a água imaginária.
"É fraco do juízo", diz a mulher, Tereza Patrocínio dos Santos, 55 anos. "Ele acorda, noite alta, com lembrança de ‘pegança’ de boi e de todas as necessidades da vida, atordoado da cabeça, feito uma assombração dentro de casa, tenho é medo", conta. Os vizinhos fazem um círculo com o dedo indicador, na altura das têmporas, para dizer que o homem não gira bem da cabeça.
Pedro chora quase o tempo inteiro. Calado ou narrando sua trajetória. Basta uma pergunta e ele desaba a falar. Fome? Muita. "Mas a minha eu sabia onde roncava", conta. "O povo diz que sou fraco do juízo. E sou mesmo. Saía de casa, atrás de boi dos outros, sem deixar nada pros meninos (12 nascidos, cinco sobreviventes), e a cabeça não sossegava. Pegar boi me deixava nervoso, um nervoso que eu gosto até hoje, mas eu chorava nos descampados, meião do mato, por causa dos meninos, assim é até hoje. Sabe um passarinho que deixa as crias no ninho em pé de juá?".
Pedro limpa os olhos na manga de camisa. Macho nordestino sem vergonha do choro, do soluço que funciona como ponto e vírgula de uma crônica das dores do mundo. Trabalhou a vida inteira para fazendeiro que tirou-lhe o couro e o despediu como gado que dá carne de terceira. Os vizinhos, de tanto vê-lo chorar, nem mais olham. "É fraco do juízo". Ele só fica um tanto sossegado quando está no meio do deserto, a caatinga já é rala, e grita coisas para os céus, em língua de pentecostes, "misturo fala de bicho, mocó, preá, cachorro e gente". Falar com esses bichos é a sua psicanálise.
Chegaram a interná-lo em Natal, inferno dos hospícios administrado pelos ditos sãos. "Cheguei lá e lá vem um doido e já tomou minha comida, outro mandou um tapa, um desmantelo", lembra, rindo, com choro e tudo. Limpa os olhos na manga de camisa. "Outro deu um tapa em um pão, que era meu, o pão subiu nas alturas, ô inferno".
Pedro é a memória da alimentação sertaneja em tempos de necessidade-mor. Tudo que era cacto ou planta, chique-chique, macambira, sementes de mucunã _ como narra o cientista e escritor Josué de Castro no clássico "Geografia da Fome"(1946) _ ,ele comeu sem pestanejar. Feijão com rapadura era "luxo", como lembra. "Hoje esse povo reclama com qualquer roncadinha das tripas", diz. "Pior é aquele povo ali dos sem-terra", aponta, com os beiços, para uma legião de refugiados da caatinga, barracas sobre a pedra.
(Xico Sá)