Brasília, 14/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - Dona Maria Tereza de Souza, comerciante em Acauã (PI), a 465 km de Teresina, uma das cidades-piloto do Fome Zero, diz que nunca se sentiu tão importante no seu município. E não é qualquer orgulho besta ou "pabulagem" - como se chama no sertão o ato de envaidecer-se à toa. O seu pensamento está carregado de sentido. Ela é uma das nove pessoas do Comitê Gestor do Programa do Mesa (Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome).
"Nunca pensei que pudesse ser tão influente nas mudanças desse lugar", relata Maria Tereza, que representa a Igreja Católica no grupo acauãense. "O melhor é ver os resultados na nossa frente, dia após dia", diz, enquanto aponta para um rapaz que, agora aos 27 anos, acabou de aprender a escrever o seu nome completo. É Roberto Raimundo de Souza, trabalhador da roça que trocou a velha almofada de tinta reservada aos analfabetos pelo orgulho da assinatura.
"Analfabetismo Zero", que levou quase 500 adultos a descobrirem a escrita, foi uma das ações definidas como prioritárias pelo comitê gestor do município piauiense. "Esse pessoal aí, com essas reuniões todas, fez mais por nós do que muitos prefeitos", exalta Raimundo.
De reunião em reunião, o comitê vai decifrando as carências da cidade e apontando políticas para mudanças. No começo, seja em Acauã, Guaribas (PI), Boqueirão (PB), Delmiro Gouveia (AL) ou Barcelona (RN), há um certo desconforto com tantos encontros, tanta conversa, tantos planos. Mas logo, logo, vem o engajamento enérgico, até passional, exercício democrático nunca dantes testemunhado nos pequenos lugares aonde chega o Fome Zero.
O debate já esquenta na escolha das pessoas que terão direito ao benefício emergencial do programa, o Cartão Alimentação. Esse tipo de seleção, historicamente, sempre ficou nas mãos dos prefeitos e seus auxiliares. O poder agora é de todos. O Comitê é composto por representantes da Igreja, sindicatos, entidades da sociedade civil e também a prefeitura.
Fora dos gabinetes
"Deus que nos livre das coisas ficarem só nas mãos dos políticos daqui", celebra "seu" Orlando Rocha, 62 anos, em Guaribas, também laboratório do Fome Zero. "Agora a gente vê de perto que pessoas do nosso lado ajeitam as coisas sem passar pelo gabinete do prefeito", admira-se. "Precisam nem ir pras bandas da prefeitura, é aqui mesmo, numa casa ali que eles se reúnem".
A experiência do Comitê Gestor deixa um rastro de democracia e participação em todo o mapa do Fome Zero. A maioria dos municípios beneficiados pelo programa nunca tinha reunido os vários segmentos da sociedade para discutir qualquer problema ou programa social. "Estamos formando o Comitê agora, acabou de acontecer a capacitação das pessoas. Realmente dá para envolver toda a cidade", afirma Eurisélia Maia, assistente social da prefeitura de Barcelona, a cidade potiguar homônima da famosa metrópole catalã, a 100 km de Natal.
Em Malacacheta, no vale do Mucuri, em Minas Gerais, Flávia Hilário Cassiano, assistente social e componente do comitê do município, reconhece que a mobilização vai deixar uma marca na comunidade. "Além dos nove membros, o programa envolve a polícia e o Ministério Público, também engajados no combate à miséria por aqui", conta.
Fazer parte do Comitê Gestor do Fome Zero confere um status de poder na cidade, estágio que só era alcançado anteriormente pelos ocupantes de cargos públicos, como os vereadores e secretários das prefeituras, além do próprio chefe do executivo, claro.
"Tão importante quanto suprir as necessidades daqueles que têm os estômagos roncando é abastecer os lugares de democracia, coisa que nunca se tinha ouvido falar por aqui", opina o professor Raimundo Ribeiro da Silva, também locutor da Rádio Esperança FM, de Guaribas. "Aqui os caciques falavam e pronto. Mas agora o vento da mudança veio com tudo".
Xico Sá*
(*) O jornalista Xico Sá e o fotógrafo U.Dettmar estão percorrendo a rota do Fome Zero e são patrocinados pelo Banco do Nordeste. A série de reportagens é publicada por vários jornais brasileiros e será editada em livro.