Brasília, 2/8/2003 (Agência Brasil - ABr) - O representante sul-africano no Brasil afirma que seu país é nosso aliado na política internacional e diz que "já é tempo de novos laços"
Mbuelo Rakwena, embaixador da África do Sul no Brasil desde 1998, acredita que a cooperação entre os dois países será cada vez maior de agora em diante. Em entrevista à Agência Brasil, ele conta que a visita do presidente Lula, prevista pra acontecer em novembro, trará uma série de oportunidades de parcerias nas áreas de turismo, comércio, investimentos, ciência e tecnologia.
Antes de seguir a carreira de diplomata, Rakwena foi jornalista e líder do sindicato de mineiros. Nos últimos cinco anos, conheceu vários estados brasileiros e se diz muito feliz por viver em Brasília. Em seu gabinete, o diplomata falou sobre assuntos que vão desde o apartheid, época em que perdeu vários familiares, até a nova postura política - marcada pelo desejo da conquista de uma soberania cada vez maior da África do Sul diante dos países desenvolvidos.
Agência Brasil - Quais as principais áreas de interesse em pauta na visita de Lula?
Rakwena - Turismo, comércio, investimentos, ciência e tecnologia. Há uma cooperação no intuito de desenvolver políticas sociais semelhantes. O Sebrae já assinou um memorando de cooperação com a Ntsika, instituição de apoio aos pequenos e microempresários. Sobre ciência, tecnologia e biotecnologia, nós trouxemos uma delegação ao Brasil que avaliou possibilidades de cooperação, e o presidente Lula assinará um acordo que dará novos rumos para os programas de mestrado e doutorado das universidades. Vamos desenvolver pesquisas, estudar vacinas contra a Aids e outras doenças contagiosas. Há novos programas de tecnologia da informação, também.
ABr - Como andam as relações comerciais entre a África do Sul e o Brasil?
Rakwena - Em 1994, a ordem democrática foi restaurada em nosso país. Em 1996, uma grande delegação de empresários brasileiros foi à África do Sul. O presidente Thabo Mbeki já veio ao Brasil três vezes, a última delas na posse do presidente Lula. Os investimentos mútuos estão crescendo. A Marcopolo, indústria brasileira de ônibus, vem fazendo bons negócios na África do Sul. Nós investimos há pouco tempo em minas de ouro, em Minas Gerais.
ABr - O comércio atual entre os dois países equivale a 1,28% do PIB sul-africano. Não é pouco?
Rakwena - É apenas uma amostra do potencial que os dois países têm. No ano passado uma missão comercial do Mercosul foi à África avaliar as possibilidades de negócios. Há um consenso, entre os países que compõem a União Aduaneira Sul-Africana (South African Customs Union) e o Mercosul, de que é necessário facilitar os acessos a ambos os mercados. A maior parte das vendas brasileiras para o meu país está na área de automóveis. Das nossas exportações para o Brasil, o destaque é para a venda de produtos minerais.
ABr - O Brasil já está entre os principais parceiros da África do Sul?
Rakwena - Infelizmente, o colonialismo ainda permeia as relações comerciais dos países em desenvolvimento. Tanto a América Latina como a África têm a maior parte do comércio exterior voltada as antigas metrópoles da Europa e os EUA. Nosso continente exporta 40% da sua produção para a Europa. Não estou dizendo que isso está errado, afinal nossos antigos colonizadores são indispensáveis no mundo globalizado. Contudo, já é tempo de estabelecer novos laços comerciais, tentar novos parceiros, investir na cooperação Sul-Sul, no comércio horizontal.
ABr - É fácil estimular esse novo eixo de comércio?
Rakwena - Entre São Paulo e Johannesburgo, são nove horas de vôo. Se você for por alguma outra rota, vai levar no mínimo 13 horas. Portanto, pela máxima de que tempo é dinheiro, podemos dizer que somos mercados mais competitivos, e o nosso preço pode ser mais baixo pelo menor custo do frete. Fora isso, há o fato de que a África do Sul está bem localizada no eixo Brasil - Ásia.
ABr - Essa proximidade física estimula o turismo?
Rakwena - De 1998 para cá, o número de vôos semanais nessa rota subiu de um para cinco. Hoje recebemos mais de 18 mil brasileiros por ano, todos interessados em nossas atrações, como safáris e vilas rurais. Nossa estrutura turística é de excelente qualidade: bons meios de transporte, hotéis luxuosos e um povo hospitaleiro. A moeda nacional, o rand, está com valor menor que o do real, o que significa uma boa opção de compras para os brasileiros. A cada oito turistas que desembarcam na África do Sul, é criado um posto de trabalho.
ABr - O Brasil tem lutado contra o protecionismo dos países desenvolvidos, principalmente com os produtos agrícolas. Qual é a posição da África nessa questão?
Rakwena - Os subsídios que desequilibram o mercado internacional nos preocupam da mesma forma. Em Seattle, no encontro da OMC, ficamos do mesmo lado, assim como no encontro no Catar. Acreditamos que, se os subsídios aos fazendeiros norte-americanos e europeus continuarem, esses países vão matar o comércio internacional. Os subsídios dados pelos 30 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em 2002, chegaram a US$ 340 bilhões. Não há como competir. Isso é o PIB de toda a África junta.
ABr - O Brasil também encarou, nos organismos internacionais, uma luta pela quebra de patentes nos remédios que combatem a Aids. Qual a posição da África do Sul, com um dos maiores índices de soropositivos do mundo, sobre os esforços do Brasil?
Rakwena - O Brasil é um país extremamente importante na luta pelo combate à Aids. A infecção atinge pelo menos 10% da população sul-africana. Para se ter uma idéia, no Brasil há cerca de 0,3% de soropositivos, e um magnífico trabalho no combate à doença.
ABr - Por que a África do Sul não segue a mesma estratégia?
Rakwena - Estamos começando a fazer parcerias com alguns países, mas não é tão simples. O alto índice de analfabetismo nos obriga a transmitir as mensagens das campanhas de prevenção em pequenas partes, porque as pessoas às vezes não entendem a ligação entre a causa e o efeito da doença. Além disso, há 11 línguas oficiais e dezenas de dialetos. Ainda é impossível dar remédio de graça para todos.
ABr - A atual geração de jovens tem um número considerável de órfãos por causa da morte dos adultos pela Aids. Qual a expectativa de vida desses adolescentes?
Rakwena - Dados estatísticos começam a mostrar uma estabilidade no número de contaminações. Geralmente, quando os números começam a se manter num mesmo nível, o próximo passo é a queda, e é nisso que queremos acreditar. A imigração proveniente de outros países e o descaso do regime do apartheid com a infecção de negros nos fizeram chegar à casa dos 10% da população infectada. Houve casos de brancos que, durante o apartheid, pesquisavam formas de fazer o vírus se esparramar pela população negra que não fossem apenas pelo contato sexual, em vez de tentar parar o HIV.
ABr - Os presidentes Nelson Mandela e Thabo Mbeki avaliaram os prejuízos causados pelo apartheid ao povo sul-africano. O trabalho da Comissão de Reconciliação de Verdade, que cuidava dos processos de indenização às famílias prejudicadas no regime, já terminou?
Rakwena - A CRV avaliou milhares de pedidos de indenização, e os relatórios já foram apresentados ao governo. Cerca de 22 mil pessoas têm direito a indenizações, mas sabemos que o pagamento justo a todos quebraria o Estado. As indenizações são de cerca de 30 mil rands (R$ 11.860,38) por família, pagos apenas uma vez. Na verdade, não há como recompensar a todos por um regime que castigou todos os negros que viveram na África do Sul entre 1948 e o início da década de 90. Eu mesmo perdi alguns anos de vida escolar, e membros de minha família morreram nas mãos da polícia.
ABr - A África começa a ter seu papel mais reconhecido na política internacional?
Rakwena - Fomos, durante muito tempo, um continente marginalizado. O mundo resumia a África a doenças, fome, guerras e corrupção, mas poucos perceberam o desenvolvimento chegar. Uma prova de que as coisas mudaram foi a criação da New African Partnership for Africa´s Development (Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano), a Nepad. Essa é uma aliança dos 53 países africanos que se deram conta de que a maior responsabilidade no desenvolvimento do continente é deles próprios. Somos o continente mais rico em minerais e podemos reestruturar nossas economias usando recursos naturais. Estamos trabalhando pela democratização de todos os países, pela solução dos conflitos e por eleições justas.
ABr - Mas, com essa posição, a África não perderia as doações dos países mais ricos?
Rakwena - Vamos deixar de lado a visão de que o mundo sustenta a África. Queremos ser tratados como parte igual no processo. Se outro país decide contribuir financeiramente com o desenvolvimento das nossas nações, os termos desse acordo serão estabelecidos por nós também. Parte do problema da África é que, por tempo demais, fomos tidos como o lado mais fraco das relações, o que deu margem para consultores do mundo inteiro virem aos nossos países ditar o que deveria ser feito para revigorar a economia. Esse tempo é passado. Não queremos mais que pessoas sentadas em arranha-céus, a milhares de quilômetros de nossas vilas, ditem o que deve ser feito, pois eles não conhecem nossa realidade.
ABr - Então, a relação é de parceria, e não de dependência?
Rakwena - As nações africanas querem ser parceiras do mundo em nível de igualdade. Como em qualquer negócio, deve haver benefícios mútuos. Ninguém mais vai fazer negócios com a África porque tem pena do povo africano. Isso seria diminuir a importância do nosso continente.