Ouvidoria das polícias em SP apura número crescente de ocorrências com morte

30/06/2003 - 8h06

São Paulo, 30/6/2003 (Agência Brasil - ABr) - O novo ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, Itajiba Farias Ferreira Cravo, assume o cargo com o objetivo de apurar o número crescente de pessoas mortas por policiais militares e civis. Os últimos números da Ouvidoria mostram que de janeiro a maio deste ano ocorreram 435 mortes nas ações da PM, 51% a mais que em igual período do ano passado. Cravo, de 42 anos, advogado com experiência na acusação de processos envolvendo violência policial, disse que "vai apurar do ponto de vista científico" as ocorrências policiais com mortes. "Não quero dar mais adjetivos para não preocupar a sociedade que já está preocupada com a violência", declarou.

Segundo Cravo, o desafio é grande. Ele pretende atuar de "maneira isenta, imparcial e transparente" na avaliação do serviço prestado pelas polícias no Estado de São Paulo, que reúnem o maior efetivo no País, com 130 mil policiais militares e civis.

Para o corregedor da PM, coronel Paulo César Máximo, a quem cabem o controle e a fiscalização da ação dos policiais militares, o número de mortes pela PM está dentro de uma média, "não é um número exagerado". Essas mortes, acrescentou, resultam do enfrentamento com "marginais". E ele justifica: "Morreram 435 pessoas no confronto com a PM, mas só em flagrante delito foram presas 6 mil pessoas por mês, além de 2 mil armas apreendidas em todo o Estado". O policial, completa Máximo, "leva a melhor" porque está mais bem preparado.

Em 1999, a Ouvidoria e a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, realizaram pesquisa sobre o uso da força letal por policiais, com o apoio da Procuradoria Geral do Estado. A pesquisa mostrou que 51% dos que morreram foram atingidos por tiros nas costas e em outras partes do corpo. E que 35% morreram com disparos na cabeça, sugerindo uma execução. Segundo a pesquisa, cada vítima foi alvejada em média por 3,17 disparos. Ao contrário da avaliação da corregedoria da PM, mais da metade dos mortos não tinham antecedentes criminais.

O corregedor nega que haja uma cobrança de resultados no trabalho ostensivo realizado nas ruas e que isso esteja ocasionando um abuso no uso da força letal. E lembra que nos casos com mortes e feridos, um oficial da corregedoria avalia a ação dos PMs. "Todo ato ilegal e irregular é responsabilizado", disse. Segundo Máximo, de janeiro a maio deste ano 244 PMs foram expulsos ou demitidos. E o Proar (Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco) não terminou: "Foi melhorado", disse. Hoje, o policial não é afastado imediatamente se estiver envolvido em ocorrência com morte. Na avaliação do corregedor, esse afastamento representava um "castigo para o policial".

O Manual de número 19 da Polícia Militar, que regulamenta o uso de arma de fogo, orienta os policiais a recorrer ao "tiro defensivo na preservação da vida" durante as ocorrências policiais e só efetuar o disparo "com propósito de tentar paralisar uma ação violenta". Recomendação semelhante tem a polícia civil, que orienta o uso moderado da força. Entretanto, o número de pessoas mortas por policiais civis e militares aumentou 21% em todo o Estado no primeiro trimestre deste ano, se comparado com o mesmo período de 2002, de acordo com dados da Ouvidoria.

O coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de São Paulo, João José Sady, defende o retorno de um programa que tire das ruas os policiais envolvidos em ocorrências com mortes, como o antigo Proar, que previa o afastamento imediato do policial. Segundo Sady, a alteração do programa foi resultado de pressões de parte da mídia, que trava diariamente uma guerra pela audiência nos programas policiais focalizando o crime e a violência, mas também dos policiais militares, contrários ao afastamento das ruas durante o período de avaliação, o que impossibilitava o chamado "bico" nas horas de folga, geralmente feito para comerciantes e lojistas. "A secretaria de Segurança Pública tem uma política voltada mais para o marketing policial do que para a eficácia", disse Sady.

O documento que trata dos "Princípios Básicos sobre o Uso da Força e das Armas de Fogo por Agentes da Lei", adotado em 1990 pela ONU (Organização das Nações Unidas) e que determina as diretrizes aos Estados membros – entre eles o Brasil –, visa assegurar ao cidadão a adequada atuação dos funcionários responsáveis pela aplicação da Lei. Diz o texto: "Os agentes da Lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em defesa própria ou em defesa de outras contra ameaça iminente de morte ou ferimentos graves, para prevenir a ocorrência de um crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida ou para prender uma pessoa que apresenta este perigo e que resista à sua autoridade, ou para evitar sua fuga e apenas quando meios menos extremos sejam insuficientes para conseguir esses objetivos".

Mas, de acordo com o 2º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, a resolução da ONU não está sendo seguida. O estudo mostra que a polícia que mata não representa a garantia de uma polícia eficiente e que o uso da força letal tem crescido nos últimos anos. Em São Paulo, revela o estudo, o número de pessoas mortas por policiais militares aumentou 58,1%, passando de 546 em 1998 para 837, em 2000.

As estatísticas da Ouvidoria da Polícia no Estado de São Paulo mostram que a Polícia Militar matou 725 pessoas em 2002, número 22,8% superior ao do ano anterior, quando ocorreram 590 mortes. Já a Polícia Civil, matou 100 pessoas, 13 a menos que em 2001, mas 30 a mais que em 2000. A explicação das corregedorias é que as mortes resultaram de perseguições a bandidos que reagiram à prisão, descritas habitualmente nos boletins de ocorrência como "resistência seguida de morte".

O advogado Fermino Fecchio, de 59 anos, discorda do que classificou como política "de matança" implantada pelo governo paulista. "Isso reflete a orientação das nossas polícias", disse Fecchio, acrescentando que não se conseguem resultados no combate à violência com uma polícia que está preparada para reprimir. "Está na hora de investir em uma polícia preventiva, a população está clamando por uma polícia preventiva", alertou.

Fecchio foi substituído do cargo de ouvidor das polícias, no início de maio, apesar de o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) entender que o advogado deveria permanecer por mais dois anos.

O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, alvo de críticas constantes pelo então ouvidor, não se manifestou em relação ao afastamento de Fecchio. No cargo de ouvidor, ele denunciou as ações do Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância), formado por policiais civis e militares ligados à Secretaria de Segurança Pública. O Ministério Público considerou ilegal a utilização de presos que foram recrutados para trabalhar como agentes infiltrados em organizações criminosas e solicitou ao Tribunal de Justiça a abertura de inquérito, a fim de apurar a responsabilidade do secretário Abreu Filho e dos juízes-corregedores dos presídios, que permitiram a saída dos presos.

Enquanto esteve à frente da Ouvidoria, desde abril de 2001, Fermino Fecchio denunciava a suposta participação de policiais em grupos de extermínio nas cidades de Guarulhos (Grande São Paulo) e Ribeirão Preto (interior do Estado). E reclamava de abusos dos policiais e da lentidão na apuração dos casos. "Ninguém discute que o policial tem o direito de se defender", mas o número de mortes, segundo Fecchio, "prova a ineficácia da polícia e o despreparo dos policiais. O custo social é altíssimo em vidas humanas", alertou.

Com um número crescente de denúncias contra policiais, o Conselho Nacional de Defesa de Direitos da Pessoa Humana criou a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana para investigar os grupos de extermínio formado por policiais militares nas cidades de Guarulhos e Ribeirão Preto. As testemunhas e parentes das vítimas identificaram policiais do 15º Batalhão da Polícia Militar de São Paulo. Segundo a corregedoria da PM, quatro policiais estão detidos no Presídio Romão Gomes, sob suspeita de integrar o grupo de extermínio em Guarulhos, e aguardam denúncia do Ministério Público.

O deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP), que preside a comissão especial, disse que não restam dúvidas quanto à participação de policiais militares, após audiência pública realizada em maio na Câmara Municipal de Guarulhos. A população, mesmo temendo represálias, tenta reagir e se defender por meio das denúncias, mas a rotina das execuções continua. Em Guarulhos, cerca de 100 assassinatos ocorreram nos últimos dois anos.

Apesar das reclamações de abusos dos policiais, o número de punições ainda é pequeno. Em 2002, por exemplo, das 2.360 denúncias registradas na Ouvidoria contra delegados, 173 casos foram investigados e aplicadas 129 punições. Nas 732 denúncias contra capitães da PM, houve 71 investigações, com 54 punições.