''Tortura é cultural no país'', diz Nilmário Miranda

26/06/2003 - 10h31

Brasília, 26/06/2003 (Agência Brasil - ABr) - Ex-preso político torturado nas prisões da ditadura militar (1964-85), o ministro Nilmário Miranda está à frente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos desde o início do ano. No último mês, Nilmário se dedicou a organizar os poucos levantamentos estatísticos sobre o crime no Brasil, para serem apresentados no Dia Mundial de Combate à Tortura. O governo lança hoje o projeto "Todos contra a Tortura", ao mesmo tempo que assume um compromisso contra o crescimento do crime no país. A primeira versão do pacto foi apresentada em 2000, mas, desde então, houve muitas denúncias. Nilmário decidiu renovar o fôlego do programa e trazer o assunto novamente para discussão. Segundo ele, a maior parte dos processos vira lesão corporal e a lei que tipificou o crime quase nunca é aplicada.

Radiobrás - Qual o objetivo do projeto "Todos contra a Tortura"?
Nilmário Miranda - O projeto visa treinar, capacitar os operadores do Direito: delegados, peritos, promotores, juízes, defensores públicos para discutir a questão da tortura, melhorar o tratamento do crime da tortura, tornar a lei mais viável e punir quem pratica tortura.

Radiobrás – Quem pratica a tortura hoje no país?
Nilmário Miranda - A tortura no Brasil é feita por uma parte de policiais militares. Ao efetuar a prisão, eles deveriam apenas prender a pessoa e conduzir à delegacia. No entanto, eles já fazem interrogatórios, torturam, às vezes ferem uma pessoa e demoram a leva-lá ao hospital, para ver se ela morre antes de chegar ao local. A tortura também é verificada dentro da polícia civil, que utiliza a prática para obter confissões. Existe ainda tortura praticada por agentes penitenciários, para aplicar castigos em detentos que cometem, segundo eles, indisciplina. Alguns monitores dessas aberrações chamadas Febem também torturam.

Radiobrás- Existe algum trabalho de prevenção ao crime?
Nilmário Miranda - Nas academias de polícia está sendo feito um trabalho de educação em Direitos Humanos. Há um esforço muito maior hoje de capacitar os policiais em técnicas de investigação para evitar a tortura. O crime induz a confissões falsas. A tortura leva a erros grosseiros, aumenta a incompetência, a ineficiência da polícia que faz uso deste método bárbaro. A Secretaria Nacional de Segurança Pública também auxilia no combate à tortura. Ela está condicionando assinaturas de convênio de repasse de verbas federais para os estados modernizarem suas polícias, aumentarem a eficiência e eliminarem as práticas bárbaras como a tortura, execuções extra-judiciais e os grupos de extermínio.

Radiobrás- Por que é tão difícil combater esse crime?
Nilmário Miranda - É uma questão cultural. Tem uma história de tortura no Brasil, mas é também uma questão de corrupção dentro de uma parte do aparelho policial. Já existe uma nova geração de policiais civis e militares que não torturam e trabalham com outra mentalidade e são muito mais eficientes, mas ainda existem muitos setores que estão formados na velha tradição da tortura, da violência e da corrupção.

Radiobrás – Como eliminar essa tradição nas corporações policiais?
Nilmário Miranda - Para combater essa realidade é preciso ter boas ouvidorias e corregedorias de polícia nos estados. As corregedorias precisam ser autônomas dentro das polícias. Todos os países democráticos usam isso, fortalecem muito as corregedorias. Aqui, ainda fica muito a dever. A nossa maior dificuldade é que isso se dá no âmbito dos estados. Eles têm autonomia de fazer a segurança e não podermos interferir, apenas pressionar, educar e sugerir. Na Polícia Federal, a tortura, praticamente, já foi eliminada como método de investigação. Existe como uma aberração, como aconteceu em setembro do ano passado, no Rio de Janeiro, em que uma unidade da polícia federal torturou o cozinheiro Antônio Gonçalves até a morte. Aí sim, o governo federal tem a obrigação de fazer sindicância e extirpar da Polícia Federal gente que tortura, para dar exemplo.

Radiobrás- Como os governos estaduais podem ser responsabilizados pelos crimes de tortura e pelas condenações que o país recebe dos organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos?
Nilmário Miranda - Há um projeto de lei do ex-deputado Marcos Rolim que foi reapresentado, que propõe ações regressivas contra o estado, ou seja, se a União Federal pagar, depois ele procura receber do governo estadual onde foi praticada a violação dos Direitos Humanos. A União não pode ficar responsabilizada por um crime cometido no estado. Não se trata de uma questão financeira, o que importa é que a condenação da Organização dos Estados Americanos (OEA), busca enfrentar aquela violação, não deixar que ela se repita. Por exemplo, a condenação do caso Zé Pereira, que era um jovem que estava no trabalho escravo, no Mato Grosso. Em 89, ele tentou fugir da fazenda, levou um tiro e ficou paraplégico. O Brasil foi condenado e o Senado já aprovou a indenização do caso.

Radiobrás - Há casos da época da ditadura militar que são julgados ainda hoje?
Nilmário Miranda - Sim. Vários estados têm leis próprias para reparar as vítimas de tortura. São Paulo já tem mais de mil requerimentos. O Rio Grande do Sul indenizou quase seiscentas pessoas. Minas Gerais está em curso também, já indenizou quatrocentas e tem outros casos para serem julgados. O sentido da indenização não é mais financeiro, mas simbólico, pois as quantias são muito pequenas, variam de três a 35 mil reais. Evidente que esse dinheiro não vai reparar o sentimento de uma pessoa que passou por torturas bárbaras. É mais uma reparação moral e o reconhecimento do Estado de um crime cometido, no passado, por outros. (Carolina Pimentel e Luciana Vasconcelos)