Os insetos são mal entendidos
Entrevista: Amabílio José Ayres Camargo
Lana Cristina e Ubirajara Jr
Foto: Marcelo Jr
Onde ele nasceu, em Pinheiro Machado, no Rio Grande do Sul, existem borboletas, mas não tem Cerrado. Todavia, foi ao conhecer o bioma, quando veio para o Centro Oeste estudar Biologia na Universidade de Brasília (UnB), que Amabílio José Ayres Camargo teve sua atenção despertada pelas lepdópteras e resolveu estudá-las. Hoje, pesquisador da unidade Cerrados, em Planaltina (DF), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ele é curador do Museu de Insetos da unidade, apontado como o mais importante da América Latina. São 50 mil exemplares por indivíduos e 11 mil espécies sob seus cuidados. As gavetas que Amabílio mais gosta de mostrar são as que guardam os 7 mil exemplares de lepdópteras (borboletas e mariposas). Mestre em ecologia do grupo de mariposas Saturniidae e com especialização em taxonomia, ele passará os próximos dois anos na Universidade Federal do Paraná (UFPR) para fazer doutorado, uma vez mais estudando e pesquisando mariposas. Nessa entrevista, além dos insetos, que são sua paixão, Amabílio José Ayres Camargo também fala das dificuldades para se pesquisar na área, da troca de informação com pesquisadores com outros países e da carência de recursos para estudos em entomologia.
C&T – Diz a literatura científica que insetos são indicativo da diversidade biológica de um bioma. O que
determina a riqueza de um ecossistema?
Amabílio – Tenho domínio para falar do Cerrado, que é muito rico em insetos. Temos essa informação pelo menos para os grupos de lepidópteros. Também sabemos que o Cerrado é muito rico em outros grupos. A região do Distrito Federal é riquíssima. O interessante é que existem insetos que vivem aqui e que são compartilhados com a Mata Atlântica e Amazônia. Podemos tranqüilamente falar que a diversidade biológica do Cerrado não perde muito para a Amazônica. Alguns grupos até apresentam maior diversidade no Cerrado. Isso porque abriga espécies da Amazônia, da Mata Atlântica e da Mata de Araucária. Geralmente, os insetos que são amazônicos ou da Mata Atlântica são exclusivos de lá. Não compartilham com outros biomas. A Mata Atlântica, por exemplo, não compartilha muitas espécies com a Amazônia. O Cerrado está no meio dos dois biomas e compartilha com eles. Posso afirmar que a diversidade biológica do Cerrado, no caso de alguns grupos de insetos, é até maior do que a da Amazônia.
C&T – Há insetos que são indicadores de qualidade de vida ambiental em alguns biomas?
Amabílio – Sim. As libélulas, por exemplo, fazem postura em rios, em vegetação ribeirinha. E elas só fazem postura e se desenvolvem em águas limpas. E, por isso, são indicadores de água limpa. Se não tem libélula na fase juvenil, de larva, é sinal de que o rio pode estar poluído. Se tem é indicativo da boa qualidade da água naquele ambiente. É um indicativo seguro. Temos alguns trabalhos, que ainda precisam de conclusão, mas que indicam que mariposas também podem ser bons indicadores de mudanças ambientais.
C&T – Como?
Amabílio – Em lavoura, por exemplo. Se fizermos medida de diversidade biológica, podemos avaliar a qualidade de vida ambiental. Existem vários índices de diversidade biológica que nos dão essa medida. Podemos usar dois, aliado a outros parâmetros, para avaliar riqueza e abundância de indivíduos, antes da implantação de uma lavoura e, depois de algum tempo, certamente se verificará que a diversidade biológica muda muito e flutua e vai diminuindo ao longo do tempo, devido à implantação de lavouras.
C&T – A agricultura pode então ser um fator de risco para o equilíbrio ecológico?
Amabílio – Não só a agricultura. Qualquer tipo de interferência humana no ambiente concorre, contribui para a diminuição da diversidade biológica. A agricultura é uma delas. A construção de barragens, estradas, infra-estrutura de vilas, cidades também influenciam e muito.
C&T – A atividade agrícola facilita ou impede a migração de uma espécie?
Amabílio – Nós observamos na região do Cerrado que as espécies estão aí, sejam ou não praga de uma determinada cultura. Por exemplo, o girassol. Não era uma cultura comum no Cerrado e agora já é. Não existia praticamente pragas do girassol, mas elas estavam ali, existiam, só que em equilíbrio com o sistema e não se apresentavam como pragas. A partir do momento que se estabelece monocultura de girassol, essas espécies que estavam em equilíbrio se transformam em praga porque há uma oferta muito grande de alimento. Outro exemplo é o da cana de açúcar. Tem a praga importante na região canavieira de São Paulo, a Diethrea sacaralis. Essa espécie também ocorre no Cerrado. É uma mariposa pequena, com a diferença que está em equilíbrio na população de insetos e não aparece como praga porque a cultura principal que ela ataca não tem no Cerrado. Se houver a decisão de plantar cana de açúcar no Cerrado, ela certamente aparecerá como praga. Não existe bem uma migração, há até algumas espécies que migram, mas em geral há um aumento de população por causa da introdução de determinada cultura.
C&T – Vem daí a aversão das pessoas pelos insetos?
Amabílio – Os insetos, na verdade, são mal-entendidos. Eles têm uma função importante dentro de um ecossistema, até mesmo na cidade. Até porque também precisamos de plantas na cidade para manter a qualidade do ar. E os insetos são fundamentais porque colaboram para a polinização. Não existiriam frutíferas se não fossem eles. Às vezes, na área urbana, as pessoas dão pouca importância para os insetos porque alguns são repugnantes. Mas, num jardim, se não houver inseto para polinizar, a maioria das flores não existirão, embora algumas plantas de jardim não precisem de polinização porque têm propagação por muda. Mas são poucas as espécies. Além disso, onde há insetos, há pássaros e as pessoas geralmente gostam de pássaros. A maioria dos pássaros é insetívoro, comem insetos para viver. As espécies de insetos, em grande parte, não são pragas.
C&T – Em que percentual poderia ser medido essa característica de inseto-praga?
Amabílio – Posso dizer que do grupo de mariposas, sobre os quais já fizemos trabalhos em alguns projetos agrícolas, em áreas de Minas Gerais, Bahia e em Balsas, no Maranhão, cerca de 8% a 10% eram pragas. Isso levando em conta a comunidade de mariposa da qual se fez amostragem, num período de cinco anos. O restante, ou seja, 90%, não eram pragas. Isso significa que a população de insetos que se torna praga é muito pequena diante da população inteira.
C&T – Isso vale para outros grupos também?
Amabílio – Não tenho informação em termos de percentagem para outros grupos, mas sei que é assim, que boa parte dos insetos de qualquer grupo não é praga. Infelizmente, aqueles 10% acabam levando a fama para o restante.
C&T – Há alguns insetos que são pragas na fase larval?
Amabílio – A maioria, na verdade, é praga na fase larval. Borboletas e mariposas só se alimentam na fase de larva. A maioria das borboletas continua se alimentando na fase adulta, mas o fazem, na verdade, para polinizar. Elas se alimentam de néctar ou pólen. Ou seja, não são pragas nessa fase.
C&T – Qual é o efeito dos defensivos agrícolas da população de insetos?
Amabílio – O uso indiscriminado de inseticidas vem causando uma série de problemas. Quando se aplica qualquer tipo de defensivo, mata-se os inimigos naturais também, que integram o controle biológico natural. Depois, começam a aparecer insetos cada vez mais resistentes, porque a cada ano aplica-se o inseticida e, como há a tendência de se tornarem resistentes, aplica-se uma dose maior ou um veneno mais forte. Aí, se arma um círculo vicioso. Mais resistência por causa de doses maiores e aumento de dose porque eles passam a ser em maior número e mais resistentes. A devastação, quase sempre, é geral quando se aplica um inseticida. Sem contar o risco de intoxicação não só de quem aplica, como também das pessoas que consumirão o alimento depois.
C&T – Se só 10% das espécies causam problema, não é mais fácil adotar o controle biológico,então?
Amabílio – Hoje em dia o que se recomenda, mas nem todos fazem, é usar o manejo integrado de pragas, ou aquilo que se chama manejo ecológico de pragas. O manejo integrado usa um sistema baseado em vários métodos, como controle mecânico de catação de inseto, o controle biológico de insetos e o químico quando se faz necessário, e procurar não plantar culturas suscetível a pragas. Ou seja, substituir por uma variedade mais resistente. Já o manejo ecológico prioriza mais o controle biológico e a catação, sem utilizar, dentro do possível, o defensivo químico. São sistemas parecidos. Existe toda uma estratégia de combate nos dois sistemas. Precisa existir nos dois, um sistema de manejo. A agricultura tem que ser mais planejada onde a pessoa possa prever que podem aparecer determinadas pragas e tenha condições depois de monitorar desde o preparo do solo, para não chegar ao ponto de aplicar o veneno.
C&T - Os defensores do plantio direto não se cansam de enumerar suas vantagens, o solo fica mais rico e as plantas mais resistentes a pragas. Acontece que há relatos que o solo também se torna mais suscetível a pragas. Como trabalhar com essa ambigüidade?
Amabílio – Em áreas que o plantio direto é recente, existe um aumento de pragas de solo, tanto de espécies quanto de indivíduos. Mas, em áreas que o sistema é mais antigo, como sul e sudeste, já está equilibrado. Então, o número de pragas é maior, mas também o número de inimigos naturais já conseguiu se equilibrar o suficiente para controlar essas pragas. Aí, se torna vantajoso. O plantio direto exige paciência até atingir um equilíbrio. Em alguns casos pode levar até dez anos. Na região do Cerrado, cujas áreas de plantio direto são mais recentes, observamos que pragas de solo registram um aumento significativo.
C&T – Isso seria um desestímulo?
Amabílio – Não deve ser. É preciso ter persistência porque as vantagens da atividade são muito grandes. Não sou especialista na área agronômica, mas sabe-se que no sistema do plantio direto há maior incorporação de matéria orgânica e, por isso, o solo fica mais rico e estável. Com isso, diminui a compactação porque tem menos máquina passando e, também, menor remoção do solo. E, a longo prazo, as vantagens são bastante interessantes. O aparecimento de pragas não deve ser um fator a condenar o sistema, até porque praga existe em qualquer sistema.
C&T – Nas coletas que você faz no Cerrado, já foi possível concluiu se alguma borboleta ou mariposa está extinta, não ocorrem mais?
Amabílio – Existe uma lista de espécies extintas, em extinção ou em perigo de extinção, mas não gosto de citar esse tipo de material porque é complicado afirmar a falta de ocorrência para insetos. Eles têm muita ciclicidade anual. Num ano você faz a coleta e não acha um indivíduo de determina espécie, no outro já acha uma população considerável. Às vezes, são animais restritos a determinados ambientes dentro de uma região. Se não for exatamente no local que ele ocorre e não for encontrado, o critério é que ele entre na lista de extinção. Não gosto muito disso e tenho receio de incluir um inseto numa lista assim, porque é um animal muito pequeno, é difícil de coletar. Claro, sabemos que algumas espécies são mais abundantes que outras. Se for feita uma coleta durante dez anos, e se, depois de fazer uma amostragem de uma determinada região, nesse período, for encontrado só um ou dois exemplares, é sinal de que a espécie é rara. Se na literatura, a espécie era apontada como abundante anteriormente, está havendo algum problema com ela. Há alguns exemplos disso.
C&T – Quais?
Amabílio – Poderia citar a mariposa Thisania agrippina, que é um inseto grande. A literatura a apontava como abundante há alguns anos e, agora, com certeza não é mais. Nos últimos dez anos de amostragem que fiz no Cerrado, encontrei apenas dois exemplares.
C&T – Que conseqüência pode ter isso para o ecossistema?
Amabílio – O problema é esse. Não sabemos o papel de cada uma das espécies. Sabemos do papel ecológico. Provavelmente, a lagarta de uma espécie dessa come uma determinada planta. Se não tem a lagarta, a planta dominará o ambiente em detrimento de outras espécies vegetais. Ou ainda um passarinho que comia essa espécie de lagarta, não terá mais a fonte de alimento. Tem outra situação. Se a espécie de inseto que se tornou rara era um polinizador, não terá mais polinização daquela planta e, em conseqüência disso, sua população será reduzida. São conseqüências que não se sabe ainda avaliar, porque não há condições. Dá para dizer, no entanto, que o desaparecimento de uma espécie é sempre prejudicial para uma cadeia inteira.
C&T – Há muita pirataria de insetos no Brasil?
Amabílio – Acho que já existiu muito. Principalmente algumas borboletas que são muito bonitas e eram capturadas para venda; que iam para coleções particulares ou para museus estrangeiros. Ou seja, tinha tráfico com fins científicos também porque, às vezes, era uma instituição que não tinha exemplar da espécie. Mas com a legislação atual, ficou muito mais difícil. É um crime passível de pena severa e acho que dificultou a ação dos traficantes.
C&T – O estudo de insetos do Cerrado está ligado à farmacopéia?
Amabílio – Não tenho dados que comprovem essa eficácia, não para o grupo com o qual eu trabalho, que são as mariposas e as borboletas. Existem até alguns grupos que poderiam despertar interesse médico. A mariposa da espécie Lanomia obliqua, que ocorre no Cerrado, embora seja típica da região Sul, na fase larval é extremamente tóxica. Se uma pessoa entra em contato com ela, pode até ser fatal. Enfim, com essa informação, seria possível uma aplicação farmacológica. Não sei se há extração de toxinas para a produção de antídotos. Sei que há uma linha de pesquisa nesse sentido no Butantan, mas confesso que não estou a par desses trabalhos.
C&T – O conhecimento popular ajuda o pesquisador no estudo das espécies?
Amabílio – Claro que sim. Até no sentido de preservação. As pessoas quando têm uma vivência muito grande no campo, podem nos dizer se aquela espécie antigamente era comum e hoje não é mais. As pessoas da área rural também têm informações que nós não conseguiríamos em muitos anos de pesquisa. Algo como saber da época de ocorrência. Eles dizem que algumas espécies "não dão" naquela época do ano e sim em outra. São dados que levaríamos anos para adquirir.
C&T – Essa variação climática que são divulgadas ultimamente, associada a eventos como efeito estufa, tem refletido na população de insetos?
Amabílio – É muito difícil associar isso a insetos. O enfoque de meus estudos não busca analisar esse tipo de situação, ou seja, associar um determinado fator com raridade ou extinção, ou em perigo de extinção de uma determinada espécie. Agora, é certo que a diminuição de áreas com vegetação nativa reflete em redução da biodiversidade.
C&T – No Distrito Federal, rural e urbano se confundem e até se misturam um pouco. Isso influencia no equilíbrio das espécies de inseto que você pesquisa?
Amabílio – O que vale para inseto, muitas vezes, não vale para outros grupos de fauna, principalmente por causa do seu tamanho. Veja que uma área do tamanho de um parque nacional, é suficiente para a conservação da maior parte das espécies de inseto. Vou colocar uma hipótese que não sei se é verdadeira, mas tem grandes chances de ser. Não se consegue manter, numa área pequena, uma população estável de lobo guará. Para inseto, normalmente áreas de proteção ambiental como as já existentes são suficientes para manter uma população. Há espécies mais exigentes que podem sofrer uma redução. Mas, no geral, a maioria não precisa de áreas muito grandes para manter uma população geneticamente estável.
C&T – Significa que as áreas de preservação não precisariam ser tão grandes?
Amabílio – É muito complicado afirmar isso, porque quando se trabalha num grupo multidisciplinar que tem um pesquisador que estuda morcego, outro com lagarto, outro com mamíferos de maior porte e eu com inseto, o que eu falo nem sempre vale para os outros. Tudo isso se encaixa no grupo que eu estudo. Para determinar o tamanho da área a ser preservada, teria que ouvir pesquisadores de todos os grupos. Posso dizer que é muito importante ter uma área de preservação que, de preferência, não seja muito isolada. Porque não adianta deixar várias áreas pequenas isoladas porque fica difícil ter troca de população. Isso é necessário para haver a troca gênica, de genes entre populações. Sendo distantes as áreas, é mais difícil de acontecer. A solução poderia ser os corredores ecológicos.
C&T – A agricultura é prejudicial para os insetos porque, certamente, foram devastadas áreas para que se estabelecesse uma atividade produtiva. A manutenção dessa atividade, com uso de defensivos, também prejudica? Poderia dizimar uma população?
Amabílio – Pode contribuir para diminuir a diversidade de insetos. Se houver áreas muito extensas, com monocultura, favorecerá algumas espécies que acabamos por chamar de praga. Na verdade, as espécies estavam todas equilibradas no ecossistema e, entrando com um elemento novo, uma planta nova, em grande quantidade, sem limite nenhum de fornecimento de alimento, favorecerá mais algumas espécies. Elas vão, então, proliferar em detrimento de outras. Ocorrerá um desequilíbrio, mas não sabemos até que ponto isso pode ser revertido. Não sabemos, no entanto, se aquela cultura não for mais plantada, e começar o plantio de outra, quanto tempo levará para a população se recuperar. A verdade é que na área de ecologia de insetos existem mais perguntas do que respostas. Há mais pergunta para fazer do que resposta a dar, costuma-se dizer isso.
C&T – Quais são as principais indagações?
Amabílio – Começa pela lista de espécies. Para região de cerrado, só se tem lista de uma espécie de mariposa, de uma família. E as outras? São mais de 40 famílias só de mariposa na região de cerrado. Sobre a espécie descrita, sabemos algo de biologia, de período de apupamento, período de emergência, quantidade de população, compartilhamento com outros biomas. São informações importantes para sabermos em que situação está aquela espécie, mas ainda há muitas dúvidas até para essa espécie.
C&T – Ou seja, sobra inseto e falta estudioso?
Amabílio – No Brasil, temos uma deficiência enorme de pessoas que estudam insetos, os entomólogos.
C&T – Por quê?
Amabílio – Acho que por falta de incentivo. É um trabalho árduo, onde se ganha pouco e se trabalha muito. Quem trabalha com inseto, por exemplo, se estudar mariposa e quiser coletar alguns exemplares para fazer coleção e desenvolver estudos científicos, tem que passar a noite toda de pé. Não são muitas as pessoas dispostas a fazer isso. No caso de borboleta, as coletas podem ser feitas de dia porque são insetos de vôo diurno.
C&T - O motivo poderia ser por que a entomologia não é estudo de vitrine?
Amabílio – Talvez seja por isso. A entomologia que atrai mais aos estudantes acaba sendo aquela aplicada, das pragas. Mas as pragas são 10% das espécies. Veja que para entender as pragas, e saber como funciona a dinâmica dessa população, precisamos entender o ecossistema inteiro. Praga não funciona separado dos outros insetos. Existe toda uma cadeia alimentar e, por isso, na natureza nada é compartimentalizado. O homem é que compartimentalizou, separou em grupos, para facilitar os estudos.
C&T – A indústria multinacional, que produz os defensivos, tem um poderio enorme e despeja milhares de toneladas do produto por ano. Isso não seria um fator a desestimular o estudo, já que as populações tendem a diminuir consideravelmente com o uso dos defensivos?
Amabílio – A produção de inseticida não tem essa conseqüência. Existe produção de inseticida porque há demanda, tem quem compre, quem aplique, quem recomende. Na verdade, acontece o contrário. Quando há uma aplicação muito intensiva e freqüente de determinado inseticida, estimula mais pesquisadores a estudarem as populações não só de insetos, mas de outros grupos de animais, até para conhecer antes que desapareçam. Eu percebo um aumento recente na procura por ecologia. Há mais ecólogos. Há uma tendência de o pesquisador da área entender de tudo um pouco. Por exemplo, não existe mais o taxônomo, aquela pessoa que só faz a identificação da espécie. Ele existe, mas em geral é um biólogo, ou um ecólogo. A verdade é que a área científica no Brasil ainda carece de recurso e incentivo. Por isso, não há muitos cientistas no país. No Japão, por exemplo, há um entomólogo para cada grupo, cada família de insetos. Às vezes, em alguns grupos, há cinco entomólogos para cada gênero. O Brasil, que é um país dessa dimensão, tem um ou dois entomólogos para determinado grupo e há grupos que não há ninguém estudando.
C&T – O tamanho do país, então, não seria um complicador. O país é imenso e tem muito mais diversidade?
Amabílio – Se tem mais diversidade tem que ter mais gente pesquisando, mais entomólogos.
C&T – Talvez seja então pela preferência do brasileiro em viver em grandes cidades e não abdicar desse conforto para ir para o interior?
Amabílio – Acho que não, nem sempre é preciso ir para o interior. Nós aqui, por exemplo, estamos na capital e realizamos expedições com freqüência. Os projetos são financiados para responder determinadas perguntas. Então, se estabelece as áreas para que essas indagações sejam dirimidas. São expedições de vinte a trinta dias. O pesquisador fica no meio do mato e volta com material suficiente para trabalhar durante o ano inteiro. Penso que o problema seja mais por falta de divulgação, do papel da ciência, da pesquisa, e também falta do incentivo financeiro, da disposição de financiar pesquisa. Uma expedição dessas custa caro, porque se leva equipamentos como geradores, para fazer coletas noturnas. O carro tem que ser tracionado para suportar estradas ruins. É necessário também levar um ajudante e por aí vai.
C&T – A iniciativa privada não investe?
Amabílio – O investimento da iniciativa privada, na minha opinião, é quase nulo no Brasil. E isso talvez ocorra por falta de negociação. O governo poderia oferecer algo em troca. O financiador poderia ter um incentivo, como ser liberado do pagamento de algum imposto.
C&T – Os fundos setoriais não seriam interessantes, não ajudariam a pesquisa na sua área?
Amabílio – Realmente não sei.
C&T – Talvez fosse o caso de criar um específico para a pesquisa ecológica?
Amabílio – Existem várias entidades de fomento, de pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Mas mesmo assim os recursos não são suficientes. Sempre será insuficiente para estudar tudo o que há para conhecer.
C&T – Por isso você vai fazer sua pós-graduação no Paraná?
Amabílio – O fato de eu ir para o Paraná se deve ao enfoque que a universidade daquele estado dá para o assunto que eu quero estudar.
C&T – Qual será seu objeto de estudo?
Amabílio – Vou trabalhar com um grupo de mariposa que já venho estudando, que é da família Saturnidae, e vou usar a biogeografia para responder algumas perguntas. Quero saber por que a distribuição desse grupo, no Cerrado, é tão heterogênea. Aparentemente parece uma pergunta simples, no entanto, é muito difícil de responder e tem implicações diretas. E a resposta pode auxiliar na escolha de árvores para preservação, pode-se prever áreas que tenham maior diversidade e o porquê disso.
C&T – Não seria justamente a distribuição da vegetação que determinaria essa irregularidade na ocorrência desses insetos?
Amabílio – Definitivamente não. Esse grupo se alimenta de várias espécies de plantas, é polígafo e não seria por causa da distribuição de plantas a heterogeneidade de sua distribuição. Agora, o que é bastante limitante para inseto é a altitude, que pode dar diferença na diversidade. Mas no Cerrado não há muita diferença de altitude, são chapadas com 900 metros no máximo. Além disso, tem áreas de matas ciliares com 300 metros de altitude. A temperatura também é um fator limitante para esses animais, mas também não se verifica uma variação muito grande na região do Cerrado. Por outro lado, existe uma distribuição muito diferenciada de chuva. Isso é uma provável resposta.
C&T – Você partirá, então, dessa desconfiança para iniciar sua tese?
Amabílio – É. Essa é uma das minhas hipóteses de trabalho. Se eu descobrir que isso é verdadeiro, não resolverá criar unidades de conservação aleatoriamente. Elas terão que ser distribuídas em áreas com diferentes regimes de chuva.
C&T – Você tem material de consulta sobre borboletas da Rússia. Por que isso?
Amabílio – Isso é interessante. Por que estudar borboletas da Rússia ou do Japão, cujos exemplares eu tenho aqui? É que para fazer o trabalho de identificação, eu preciso conhecer insetos do mundo inteiro, porque, às vezes, é uma espécie de ampla distribuição que está com identificação errada lá fora. Então, por isso é importante conhecer museus estrangeiros, inclusive para saber se eles têm material brasileiro, se têm em outros países espécies que chamamos de pares. Ou seja, são espécies do mesmo gênero, com papel ecológico similar, mas que vivem em ambientes diferentes. Por isso, tenho interesse de saber sobre o grupo que estudo que ocorre também na África, no Japão, nos Estados Unidos. Entendendo melhor as espécies, nos diferentes ambientes, teremos mais respostas.
C&T – Inclusive sobre o manejo agrícola, a melhor forma de fazê-lo?
Amabílio – Pode ajudar nisso. Veja o caso do Japão, que tem pouca área agrícola, muita montanha e que todos os espaços possíveis para a agricultura são ocupados. Eles têm também aplicação de veneno, por exemplo. Já os Estados Unidos praticam uma agricultura mais extensiva como a nossa. Acho que o conhecimento que os vários países adquirem podem servir para o Brasil, pode nos dar uma pista.
C&T – Por que você não citou a África, cujos ecossistemas são tão parecidos com os do Brasil?
Amabílio – É um continente que deve ter uma diversidade enorme, mas nos falta informação. É uma das áreas sobre as quais menos informações existem sobre insetos. Há dados sobre grandes mamíferos, como se vê nos documentários de televisão. Mas sobre invertebrado não há praticamente nada.
C&T – Falta profissional para estudar?
Amabílio – Não só profissional, mas principalmente o incentivo financeiro. Nós, brasileiros, por exemplo, temos um interesse todo especial pelo continente africano. Seria bom que houvesse condições de ir até lá e coletar material, porque eles têm um sistema savânico semelhante ao nosso do Cerrado. Então, é possível que haja muita semelhança. Até porque na África há uma faixa tropical grande, há deserto, há a faixa de transição entre deserto e florestal tropical, toda uma diversidade ambiental que, teoricamente, interessa para quem trabalha com o Cerrado brasileiro. Se conseguisse um financiamento para uma viagem à África, eu passaria, sei lá, uns dois anos... (risos)
C&T – Não seria o caso de buscar pelo dinheiro?
Amabílio – Em tese sim, mas como justificar que você quer ficar um ano na África fazendo amostragem de insetos se estamos aqui no Cerrado, onde realmente interessam os resultados. Quem está financiando, raciocina que não tem retorno. O agente financiador investe num determinado projeto e você precisa apresentar as respostas para ele. Geralmente, ele pensa também em quanto lucrará com aquilo. E a visão do pesquisador é outra. Ele raciocina que precisa do dinheiro para fazer o trabalho. Os resultados relativos à questão ambiental, dos trabalhos com fauna e flora, e até mesmo para quem trabalha com pesquisa de uma maneira geral, não são imediatos. São resultados de longo prazo, e, geralmente, quando começa um projeto de pesquisa e, no final do projeto, há mais perguntas para serem respondidas e isso gera um outro projeto. E quem financia não entende isso, acha que se financiou tem que ter as respostas e pronto.
C&T – As organizações não-governamentais não são mais compreensivas nesse sentido?
Amabílio – Quando o agente financiador tem tradição de financiamento de pesquisa e, ainda mais se quem está decidindo for pesquisador, eles têm essa visão. Mas como também estão lidando com dinheiro, precisam de respostas.
C&T - Não seria o caso de tentar fora do país. É mais fácil?
Amabílio – Não é algo que eu tenha tentado. Mas o investimento mais barato que poderia ser feito e que daria resultado semelhante é buscar informações em literatura estrangeira, para saber o que tem lá, não necessita se deslocar. Precisa ter acesso à literatura, ou então visitar museus. Tem muito material do século passado, coletado aqui no Brasil, que só tem em museu estrangeiro. Mas hoje em dia é muito fácil também entrar em contato com pesquisador de qualquer parte do mundo, via computador, via Internet. Eu tenho acesso a material de museus estrangeiros, porque tenho colegas que podem me informar isso. E o mesmo fazemos com eles, informando sobre material que existe aqui.
C&T – O pesquisador estrangeiro tem muito interesse em material brasileiro?
Amabílio – Sim, têm muito interesse. Todas as regiões tropicais, na verdade, são de interesse para os pesquisadores estrangeiros.
C&T – Qual o país que busca mais informações, que tem mais interesse?
Amabílio – Não é muito fácil avaliar, até porque acho que é mais ou menos igual. Talvez pela proximidade, os Estados Unidos sejam os mais interessados, os que mais buscam. Mas existe interesse também dos japoneses. Tenho contato com alguns colegas japoneses, com os quais troco informações, via e-mail. Os países que são desenvolvidos e, que tradicionalmente, têm vários cientistas, com interesse em várias áreas, têm essa visão.