Coluna da Ouvidoria - Dramas humanos no jornalismo

02/12/2011 - 9h07

Brasília -

Notícia de Jornal (*)
(Luís Reis - Haroldo Barbosa)

Tentou contra a existência do humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João
Depois de medicada, retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão
O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste que errou
Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou
Na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal

Mas e quando não foi Joana que tentou contra a existência do humilde barracão e sim o poder público? E quando o lar não existe mais, ninguém volta ao que “acabaram” porque foi desalojado de sua existência, de seu lugar de existir, de seu direito de habitar.

Segundo informações contidas na matéria ONGs criticam falta de diálogo nas remoções de comunidades pobres em função das obras para a Copa Mundo, publicada dia 26 de abril pela Agência Brasil, naquele momento, só em São Paulo, estimava-se que algo em torno de 200 mil famílias estariam na rota das obras da Copa e precisariam ser removidas, no Rio de Janeiro seriam 20 mil, em Porto Alegre 9 mil e assim por diante, o drama se repetia em cada uma das doze cidades sede.

Naquela matéria a Agência Brasil forneceu um panorama geral da situação das desapropriações e desalojamentos em todas as cidades que sediarão jogos da Copa na visão de “integrantes de movimentos representativos da sociedade civil”.

Em outra matéria, publicada na mesma data, ONU denuncia violação de direitos humanos na remoção de famílias para obras da Copa do Mundo de 2014, a urbanista brasileira Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada, alertava o governo brasileiro sobre casos de violações dos direitos humanos na remoção de comunidades em função das obras para a Copa de 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também para as Olimpíadas de 2016.

Segundo a notícia: “Raquel destacou que as famílias removidas têm que ser reassentadas em lugares melhores do que aqueles em que moravam antes, não só do ponto de vista da habitação em si, mas também dos serviços e infraestrutura. 'Ela [a família] não pode ser desalojada para um lugar a 40 quilômetros dali, que não tem nada, que não tem as oportunidades de desenvolvimento humano que ela tinha antes. Porque tudo isso vai acabar violando outros direitos humanos, como o direito ao trabalho, à educação, à saúde'”.

A Agência Brasil, além de publicar matérias sobre referido relatório da ONU, repercutiu-o entre especialistas e autoridades brasileiras dando a elas a oportunidade de se explicarem. Ouviu-se os dois lados. Mas é totalmente diferente abordar-se violações dos direitos humanos de forma abstrata, do ponto de vista de um relatório de uma organização internacional e, de forma concreta, do ponto de vista do cidadão desapropriado.

Ainda, conforme informações daquela matéria: “De acordo com a ONU, a promoção de eventos esportivos da magnitude de uma Copa do Mundo de Futebol ou dos Jogos Olímpicos, oferece oportunidades para a reorganização do espaço urbano. Adverte, contudo, que nem sempre os investimentos bilionários que são apresentados resultam em cidades mais justas e com moradia adequada para as populações. De acordo com a ONU, esses eventos constituem oportunidades valiosas para que os governos aumentem o acesso à moradia para as parcelas mais pobres da população, ampliando da mesma maneira o acesso à saúde, à qualidade de vida e ao lazer.”

Mas esses são direitos cujo atendimento ou violação precisam ser constatados pela reportagem concretamente no cotiano das pessoas afetadas, despojadas de seus laços afetivos, sociais, culturais e econômicos do lugar onde muitos nasceram e cresceram. São impactos gravíssimos de políticas públicas e, na maioria dos casos, decisivos para o destino de milhares de famílias.

Desde novembro de 2010 a Agência Brasil acompanha esse processo e fala sobre o problema. Foram mais de 20 matérias retratando diferentes etapas da desapropriação e ou desalojamento de moradias por parte dos poderes públicos: municipal, estadual e federal, cada qual com sua responsabilidade. Nelas são ouvidas autoridades das três esferas de governo, representantes de organizações da sociedade civil e especialistas.

No entanto, na cobertura observa-se que apesar das matérias citarem valores indenizatórios insuficientes e inclusive o uso de violência policial em certas remoções, apenas dois, sim, dois personagens que realmente estavam vivenciando os fatos foram ouvidos.

A poesia acima diz que a dor da gente não sai no jornal. Mas será que a notícia exata, precisa e objetiva não pode, não deve falar da dor que Joana sente? Ah! Isso é subjetividade! Ou será que a notícia não tem de ser antes tudo completa, com dores, ardores, paixões e sentimentos? Tudo isso comporta a realidade, faz parte, parte inseparável, indissociável da realidade vivida pelas comunidades expropriadas.

Segundo os professores Luiz Martins e Fernando Paulino, da Faculdade de Comunicação da UnB:

“A reportagem não se encaixa na visão objetiva e matemática do mundo, mas sim, impregna-se do senso comum, sensibiliza-se frente ao cotidiano para poder compreendê-lo. Assim, quando enfrentado com a complexidade do mundo, o jornalismo torna-se solidário aos dramas humanos, dá voz aos anônimos e excluídos, contesta a ordem que alberga a desigualdade; informa, emociona e ao mesmo tempo propõe reflexão, cumprindo assim com seu compromisso ético.”(**)

 

O jornalismo “solidário aos dramas humanos” dele impregna-se sem medo de tornar-se militante de um dos lados, afinal seu compromisso ético reside justamente na cumplicidade com o lado humano da notícia. Sem essa cumplicidade o jornalismo torna-se acético, pasteurizado, desprega-se do real que pretende reportar - é só mais um relatório sobre a realidade.

A capacidade do jornalismo de retratar esses dramas familiares pode influenciar significativamente na avaliação da eficácia das políticas públicas e suas possíveis consequencias para a qualidade de vida das populações atingidas.

A leitora Valéria Sanchez escreveu para esta Ouvidoria como que a pedir socorro: “Estamos vivendo, em São Paulo-capital, situações análogas [despejos promovidos pelo poder público para obras da Copa 2014], gostaria de contato com os jornalistas da matéria acima [Ministério das Cidades promete apurar denúncias de despejo e remoção de famílias devido às obras da Copa ] e ou outras pessoas que possam somar idéias e forças!”

A Diretoria de Jornalismo da EBC respondeu: “Agradecemos a participação da leitora e informamos que estamos realizando uma reportagem sobre o assunto que deve ser publicada nos próximos dias.” E realmente, ontem, 1 de dezembro, às 18:47, a Agência Brasil publicou a matéria: Moradores de comunidades desalojadas para obras da Copa e Olimpíadas protestam contra remoções.

Alem de ouvir todas as fontes que já ouviu, o jornalismo da agência pública precisa ir ao encontro de Valéria que está preocupada com milhares de Joanas que não são mudas.

No contexto deste assunto cabe cruzar politicas publicas habitacionais,como o Minha Casa, Minha Vida, com a reorganização urbana, com as obras de mobilidade para a Copa e com as vítimas de enchentes que habitam alagamentos anuais e ver no que resulta essa oportunidade de reordenamento urbano, sem precedentes na história do Brasil.

Ao reportar as questões de moradia o jornalismo precisa considerar que isso significa agua encanada, coleta de lixo e de esgoto, asfalto, energia elétrica, iluminação pública, escola, creche, saúde, correio, transporte público, segurança, lazer, cultura e muito mais.

As estatísticas dos programas governamentais não retratam dores, as metas não atingem os dramas pessoais de cidadãos removidos da rota do “desenvolvimento”, tampouco os números bilionários dos eventos os refletirão.

Há uma dívida humana que está sendo gerada em função da indústria do entretenimento e do esporte que só o jornalismo da empresa pública pode reportar porque é desprovido de interesses de poderosos anunciantes. Esse jornalismo pode “dar voz aos anônimos e excluídos, contestar a ordem que alberga a desigualdade; informar, emocionar e ao mesmo tempo propor reflexão, cumprindo assim com seu compromisso ético.”(**)

Só Joana pode falar de sua dor e a Agência Brasil precisa ouvi-la para humanizar seu jornalismo.

Até a próxima semana.

(*) citado no artigo Jornalismo e Humanidade:Técnica e Ética de Mariana Caetano
(jornalista e repórter de "O Estado de S. Paulo") disponível em: http://www.hottopos.com/mirand2/jornalis.htm

(**) O blog SOS Interativo é um dos eixos de atuação do SOS Imprensa, um projeto de extensão da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília: “usamos este espaço para produzir reflexões e promover o debate sobre a cobertura midiática de algum caso específico”. Disponível em: http://sosinterativo.blogspot.com/2011/09/complexidade-e-etica.html