Programa propõe Comissão Nacional de Verdade para analisar violações da ditadura militar

21/12/2009 - 0h07

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Diante do lançamentodo terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), oministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidênciada República (SEDH), Paulo Vannuchi, disse em entrevistaexclusiva à Agência Brasil que o programarepresenta um grande passo, mas ainda há muito mais por fazer.“Temos muito o quevalorizar, mas temos muito ainda para conquistar, porque o cotidianoainda está muito longe de ser um cotidiano minimamenteaceitável. A estrada é muito longa.”Ligado ao presidenteLuiz Inácio Lula da Silva desde a campanha para deputadoconstituinte em 1986, Vannuchi elogia os programas sociais dogoverno e a rápida recuperação do Brasil dianteda crise econômica mundial.O novo programacontempla as resoluções aprovadas na 11ªConferência Nacional dos Direitos Humanos realizada emdezembro do ano passado. Além disso, o documento propõea formação da Comissão Nacional de Verdade. Ocolegiado deverá examinar as violações deDireitos Humanos praticadas durante a repressão politica da ditadura militar (1964-1985). Agência Brasil(ABr): Hoje é o lançamento do novo ProgramaNacional de Direitos Humanos, o que há de inovador em relaçãoas outras edições?Paulo Vannuchi:A primeira marca desse programa é que ele foi coordenado pelaSecretaria Especial dos Direitos Humanos, que é um ministério,mas 30 ministérios assumem a responsabilidade pelas propostas.Nesse sentido, as ações estão sempreacompanhadas de ministérios responsáveis. Outro avançoé que ele apresenta recomendações repetidasvezes aos demais poderes da República, lembrando que a defesados direitos humanos tem que ser uma ação conjunta dasociedade e dos poderes públicos e que os poderes públicosenvolvem uma participação muito importante doLegislativo e do Judiciário. Uma novidade marcante é odestaque novo ao processo de educação em direitoshumanos, que tem cinco eixos: o da formação básicana escola, o da universidade, o da formação do próprioagente do estado, o da mídia e o da educação nãoformal, aquela que as igrejas, sindicatos, clubes e associaçõesfazem. Além disso, no texto, a segurança públicaé abordada como um tema essencial dos direitos humanos, entãorompe e supera aquela tradição de que políciaestava sempre associada com repressão política, dostempos da ditadura. Por último, a ideia de que o programaintroduz uma novidade que é um compromisso governamental, parase criar a Comissão Nacional da Verdade com o objetivo deresgatar as informação sobre tudo que se passou noperíodo da repressão ditatorial recente na históriado Brasil. ABr: No eixocontexto e igualdade há uma contemplação aodireito da alimentação. Isso ainda não estáconsagrado no Brasil, não é mesmo?Vannuchi: Bom,pode não estar consagrado, mas é um dos passos em que oBrasil deu um avanço gigantesco na história do paíse do mundo. O país lidera em âmbito mundial a políticade erradicação da fome e da extrema pobreza. Isso éuma marca. O Brasil há décadas vivia a questãodessa violência. Josué de Castro já fez livros degeografia da fome, sabia-se de um número de 48 milhõesde pessoas não tinha o direito sequer de ter trêsrefeições por dia, e de 2003 pra cá o Brasilcriou os programas Fome Zero e Bolsa Família. E se os 48milhões ainda não estão atingidos, jápodemos falar que provavelmente 40 milhões, sim. Se a gentefor comparar as diferentes áreas dos direitos humanos, essesetor avançou muito mais do que outras áreas, como aquestão do sistemas prisional, da igualdade racial, a questãoda violência. ABr: Sobre asegurança pública, o Brasil ao adotar essa terceiraedição do Programa Nacional de Direitos Humanos, aindavai ter espaço para ideias e projetos de “tolerânciazero”?Vannuchi: Vejabem, “tolerância zero” é uma proposta, umainformação que mesmo a imprensa brasileira nuncaconseguiu explicar bem. A imprensa apresentou como um granderesultado da política do prefeito Rudolph Giuliani em NovaYork e sequer conseguiu explicar. O programa Tolerância Zero,quando Giuliani lançou, era para as violações ecrimes cometidos por policiais. Isso não foi tratado assimaqui, porque alguns segmentos conservadores reacionárioscuidaram de dizer que era sair matando bandido. Hoje a melhorpolítica de combate ao crime, no mundo inteiro, aponta paraque haja o reconhecimento que segurança pública éo problema de toda a sociedade, não é só dapolícia. Essa polícia está nascendo antes dogoverno Lula. Cuidaram de introduzir na academia de políciacursos de direitos humanos e outras mudanças, mas nunca tinhasido passo comparável ao do Pronasci (Programa Nacional deSegurança Pública com Cidadania) do Ministérioda Justiça. A gente pode mencionar o Espírito Santocomo poderia mencionar vários outros estados. Cada vez quechega denúncia, como chegou no caso do Espírito Santo,envolvendo uma situação inaceitável detratamento aos presos, nós interviemos sempre no esforçode diálogo para fazer a autoridade estadual trabalhar juntocom a autoridade federal para superar tal situação.ABr: Outra coisainteressante no programa é a garantia da participaçãode comunidades atingidas por grandes empreendimentos na discussãodo impacto socioambiental. Que importância tem essa medida?Vannuchi:Direitos humanos no Brasil e praticamente no mundo inteiro vivem acontradição entre o que está na lei e o que éefetivado na prática. Se todas as leis brasileiras, aConstituição Brasileira e os seus artigos fosseminteiramente aplicados, o Brasil seria um país que teriaviolações de direitos humanos muito esporádicase ocasionais. As conquistas legais estão dadas, o ECA[Estatuto da Criança e do Adolescente] garante a defesae a proteção da criança e do adolescente e seusdireitos ainda não são razoavelmente seguidos noBrasil. As famílias ainda aplicam castigos corporais, abusossexuais, o Estado não assegura o perfeito atendimento desaúde, de educação, de preparaçãopara a cidadania. Nesse sentido, o programa procura sempre atualizaro balanço do que a lei assegura: políticas paracumprimento das leis e aperfeiçoamento desse sistema de leis.No capítulo sobre desenvolvimento de direitos humanos, nósintroduzimos um debate muito importante. Temos empresas como aPetrobras, a Vale do Rio Doce, que compõem uma espéciede orgulho nacional na sua intervenção, produçãoe comércio em outros países. Essas empresas nãopodem se colocar ou ser vistas como opostas, inconciliáveis,com o pequeno empreendimento, o chamado desenvolvimento local eterritorial. Temos que articular esses dois circuitos da economia,não podemos pensar em realizar o necessário programaenergético do país desconsiderando os direitos daspopulações ribeirinhas, os que serão ou estãosendo atingidos por barragens. E cabe aos direitos humanos lideraresse diálogo, de convencimento interno. O PAC [Programa deAceleração do Crescimento] é o programaextremamente necessário e é um orgulho, é umadas razões que leva o Brasil a ser um dos primeiros paísesa sair da crise de 2008, mas ao mesmo tempo o PAC tem que sercombinado com um conjunto de obras muito menores que vãoassegurar esse circuito interior, que é tão importantepara a história do país.ABr: Com oestabelecimento do novo programa, a formação e ofuncionamento do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana vaimudar? Outro conselho vai assumir as atribuições doCDDPH?Vannuchi: Oprograma reafirma a pressão da histórica que há15 anos tramita no Legislativo brasileiro a transformaçãodo CDDPH em Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Eu quero que essaseja uma das primeiras agendas, vou visitar o presidente [da Câmarados Deputados] Michel Temer. Já visitei ele duas vezes comesse tema. Vou pedir a ele no começo do ano que façatodo empenho, até porque não existe grandesdivergências sobre esse assunto, é praticamente umaacordo de lideranças entre todos os partidos.ABr: O paístem cerca de 100 casos em avaliação na ComissãoInteramericana de Direitos Humanos (CIDH) não sei se essesestão lá, mas há casos muito emblemáticos,como foi o da morte da missionária Dorothy Stang e tambéma do advogado Manoel Mattos. São casos que o senhor mesmo fazquestão de que não sejam esquecidos. Nessa terceiraedição, o país está indo para o 13ºano do Programa Nacional dos Direitos Humanos. Por que que essascoisas ainda acontecem a ponto de termos tantos processos?Vannuchi:Primeiro, o número de 100 processos não é umnúmero elevado. Comparado com os demais países émuito pequeno. É um bom indicador para o Brasil. Segundo, sãolevados ao sistema interamericano casos de violaçõesdos direitos humanos em que o país se revelou desinteressadoou excessivamente moroso ou incapaz de promover apuração,punição e o procedimento reparatório epreventivo para que não se repita mais a mesma violência.Sempre que se leva [um processo ao sistema interamericano] épreciso considerar isso, não o esgotamento dos recursosinternos e na dinâmica difícil e delicada da relaçãoentre o Poder Público e sociedade civil. Nem sempre osorganismos da sociedade civil se pautam também pela posiçãomais ponderada. Muitas vezes consideram que é melhor fazer umtensionamento, inclusive político, levando casos que aindaestão em procedimento, com muita possibilidade de soluçãodentro do Brasil. Então, nesse sentido o sistemainteramericano representa uma espécie de diferencial, queobriga o Brasil a melhorar, mas em vários casos o Estadobrasileiro obteve um encerramento, porque foi demonstrado que aintervenção dos peticionários era prematura.Estão começando a recorrer pelo sistema da OEA[Organização dos Estados Americanos]como se fosse umsegundo Judiciário, o que está errado e tem que sercorrigido. Ele existe exatamente para trabalhar casos como o daguerrilha do Araguaia, que durante duas décadas o Estadobrasileiro não trabalhou. Lamentável que tenha idoagora para a Corte. quando pela primeira vez o Brasil começa acumprir uma sentença judicial federal sobre o Araguaia, pelaprimeira vez promove uma busca séria, pra valer, por decisãodo presidente da República com empenho do ministro da Defesa eparticipação dos direitos humanos. Esse sistema dosdireitos humanos ainda é um sistema em construçãoe cada um dos participantes dele pode acertar e pode errar.ABr: Por queainda há tanta violação no país?Vannuchi: Porqueo novo não nasce do novo, o novo nasce do velho e o velhosobrevive e esses se misturam e a mudança vai sendogradualmente o novo desenho, a nova face. E o Brasil de 2009 jáé um país muito melhor do que o de 1988, o ano zero dareconstrução democrática. A nova ConstituiçãoFederal estabeleceu, o respeito à dignidade da pessoa humana,a busca de erradicação da fome e da extrema pobreza, ocombate às desigualdades sociais e regionais como pressupostosbásicos e fundamentos da construção republicanabrasileira. Muito melhor 1988 do que 1978, do que 1973 quando sepraticava tortura rotineira contra opositor político,violações sexuais, mortes, desaparecimentos edestruição ou ocultação de cadáveres.O Brasil de 2009 tem avanços palpáveis em relaçãoao de 2003 e o de 2015 terá avanços palpáveis emrelação ao ano atual. A situação dedireitos humanos é sempre a comparação entreavanços e violações. Então nóstemos muito o que valorizar e saudar, mas temos muito mais ainda pararealizar, para conquistar porque o cotidiano ainda está muitolonge de ser um cotidiano minimamente aceitável. O paísestá no caminho certo e está caminhando em passoslargos, mas a estrada é muito longa.ABr: O senhorcitou 2015 porque vem a revisão do programa ou por motivo deexplanação?Vannuchi: Citei como um anoqualquer, mas 2015 ele é um ano possível de revisãodo plano, não está definido isso, mas certamente éo ano em que algumas das metas da ONU [deverão ser cumpridas],que os Objetivos do Milênio estabeleceram como prazo. Entãocostumamos usar 2015 e, no caso do Brasil, tem a vantagem de que seráum ano entre a Copa do Mundo e as Olimpíadas do Rio deJaneiro.ABr: O senhor falou do caráter democrático einterdisciplinar da elaboração e da discussão do programa. OMinistério da Defesa está entre os 30 ministérios que assinam oprograma?Vannuchi: O importante nesse passo que está sendo dado é queo Brasil tinha uma espécie de dívida no tema do direito à memóriae à verdade. O programa lançado pelo presidente é uma ação degoverno, então envolve necessariamente todos os ministérios. OMinistério da Defesa não é um deles, mas participou do seu debatee todas as elaborações, são partes de um consenso construído aolongo de dois anos de trabalho. O governo Lula se compromete noprograma a apresentar até abril ao Legislativo um projeto de lei dogoverno instituindo uma Comissão Nacional da Verdade. Não [hánisso] qualquer sentimento anti-Forças Armadas. Primeiro porquea repressão política não envolveu apenas as Forças Armadas.Segundo, as Forças Armadas têm participado claramente em missõesde defesa dos direitos humanos hoje. Terceiro, a redação não é aque eu escrevi, eu gostaria decerto. Assim como não é certamenteaquela que o ministro da Defesa teria preferido. Ela é sempre abusca de composição, de um meio termo, de um ponto de acordo queseja concreto e viável.ABr: Gostariaque o senhor falasse também do que se espera para 2010 no que dizrespeito ao direito da verdade e ao restabelecimento da memória doque aconteceu no período militar.Vannuchi: Oassunto foi relativamente sufocado se tentou dar como superado numaexperiência histórica dolorosa e uma verdadeira democracia nãopermite esse tipo de bloqueio ou interdição. O debate hoje nogoverno do presidente Lula se ampliou muito, o balanço derealizações nessa área é muito consistente. Nós lançamos olivro Direito à Memória e à Verdade em 2007, lançamos odebate no Ministério da Justiça em comissão de anistia sobrelimites e impunidades de torturadores. Uma interpretação correta daLei de Anistia de 1979, não o senso comum que foi forjado que tentaser imposto até hoje. Nós criamos o arquivo Memórias Reveladas,interligação digital de milhões de páginas de documentos, fizemosuma campanha publicitária pedindo informações. Estamos buscandorestos mortais no Araguaia, organizando homenagens e memoriais aosque morreram nessa luta. Quando eu falo estamos, quero dizergovernos, quero dizer presidente Lula. Uma parte é feita pelosdireitos humanos, outra parte é feita pelo Ministério da Justiça,uma parte é a ministra Dilma Rousseff na Casa Civil, o ministroFranklin Martins na Secretaria de Comunicação. Então é uma açãode governo que dá um passo adiante que está voltado para o futuro enão para o passado, é uma questão importantíssima que tem que serlevada ao lado de outras. Não é mais importante, por exemplo, doque o problema que existe hoje de violência contra a criança,contra populações carcerárias, violência em áreas rurais Épreciso levar conjuntamente. Nesse espírito de um país quefinalmente está encontrando seu caminho histórico, a sua vocaçãoe não ser uma nação periférica e sim uma nação fadada à vidademocrática.ABr: A partir do projeto de lei é que o cidadão comum vaiter direito de acesso aos arquivos ou a partir do ano que vem isso jávai estar franqueado?Vannuchi: Oacesso aos arquivos já está amplamente franqueado nos termos daConstituição e da Lei brasileira. Como já citei o Brasil tem umvolume de arquivos e documentos da ditadura abertos e nenhum um outropaís tem igual. O que nós dizemos é que possivelmente nem todos osarquivos estejam segurados lá, porque é da lógica de criminosos ede ditadores destruírem as provas das suas violências, dos seuscrimes. A transição política brasileira se arrastou por muitosanos, houve muito tempo para destruição de arquivos.ABr: Que expectativa o senhor tem sobre o posicionamento doSupremo Tribunal Federal no que diz respeito à Lei de Anistia?Vannuchi: Aminha expectativa é positiva. A composição atual do Supremodificilmente decidirá uma sentença em que o assunto da violênciaestá encerrado e não pode mais ser debatido. Se acontecer isso, nósacataremos, mas a minha convicção é de que dentro de alguns anos osistema judiciário brasileiro estará examinando de novo. Porque sóassume esse tipo de posição uma nação disposta a não terqualquer herança daquela fase em que se falava a gíria “repúblicade bananas”.  De qualquer modo, se o Supremo decidir, de umjeito ou de outro, a atividade da Comissão Nacional da Verdadeguarda completa independência sobre isso e, como formulada noPrograma Nacional dos Direitos Humanos, não será uma comissão parapunir responsáveis e sim encaminhar às autoridades e poderes todasas suas conclusões. As conclusões serão tomadas ao final de umlongo processo de tomada de depoimentos de vítimas, convocação einquisição de pessoas acusados, mapeamento de locais, instrumentoslegais autorizados, apoiadores, estimuladores. As responsabilidadessão amplas e têm que ser colhidas muito mais como aprendizadonacional histórico do que uma individualização e o judiciáriosterá a atribuição de decidir também se faz a atribuiçãoindividual e nos diretos humanos não damos lugar para revanchismo. Oespírito é de reconciliação, os direitos humanos defende justiçarestaurativa, ou seja, quem causou dano promove ações pedindoperdão, pedindo o reconhecimento, busca reparar.