A precisão da informação e o jornalismo de números

27/11/2009 - 7h29

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Uma polêmica entre umaleitora e a Agência Brasil sobre a classificação do Brasilno ranking do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH,calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(Pnud), faz pensar sobre dois problemas que afetam o jornalismo nosdias de hoje: a precisão na divulgação de números e a suadecodificação pelo leitor.Segundo apontou aautora da demanda, Gabriela Campos: “Há um erro na matéria'Brasil melhora índices, mas continua no 70º lugar emdesenvolvimento humano'. No ranking do IDH 2005, o Brasil ficou em70º se levado em conta a metodologia antiga desse ranking, portanto,não pode ser adequadamente comparado com o atual (2006). O Pnud,porém, recalculou os números de 2005 com base na nova metodologia(tabela Trends em http://hdr.undp.org/en/media/HDI2008Tables.xls). Serankeados, esses números de 2005 indicam que o Brasil, de acordo coma nova metodologia, estava em 71º no ano passado. Logo, usandometodologia comparável, o Brasil melhorou uma posição: subiu de71º para 70º entre 2005 e 2006.”A Agência Brasilrespondeu: “a matéria teve como base de dados o relatório doÍndice de DesenvolvimentoHumano (IDH) divulgado pelo Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (Pnud), o que foi publicado constava no relatório".A que a leitoracontestou: “Desafio a equipe da Agência Brasil a achar, emqualquer dos links, textos e tabelas domaterial, as informações que contestei. Levar seis meses paracorrigir um erro já seria uma lástima; para insistir no erro, éuma tragédia.”E a Agênciarespondeu: “Sempre há disposição da Agência Brasil emcorrigir eventuais erros de informação. Vamoschecar os dados novamente e verificar os dados.”A precisão dasinformações é um problema quando se trata de índices,estatísticas e números. A assessoria técnica da Ouvidoria analisouos relatórios do Pnud e as metodologias de cálculo. O próprio Pnudadverte “as análises de tendências do IDH não devem basear-seem dados de edições diferentes do Relatório”, no entanto,não seria exatamente isso que a matéria fez ao comparar a posiçãodo Brasil em dois momentos distintos sem levar em conta as diferençasde metodologia dos cálculos? Apesar da Agência afirmar que“há disposição em corrigir eventuais erros”, o tempo decorridodesde a apresentação da demanda pela leitora (18 de dezembro de2008) demonstra o contrário, daí a razão de sua insatisfação. O outro problema,decorrente da divulgação de pesquisas e estatísticas pelaimprensa, está na decodificação dos números pelo leitor - se elenão entende o que os números significam, a comunicação nãocumpre sua função. Diariamente o leitor é bombardeado com adivulgação de resultados que, transformados em manchetes, veiculam interpretações impregnadas de posições políticas, e portantoeditoriais, de veículos de comunicação, em vez de ser um espelhode um determinado aspecto da realidade investigada. A forma dedivulgação dos resultados de cada nova pesquisa vem sempreacompanhada de um novo julgamento de valor sobre os administradores,autoridades em geral e políticos. Na sociedade midiática moderna osindicadores passaram a compor a imagem da personalidade em questão –eles tanto podem ajudar a construi-la quanto a destrui-la. Isso temlevado muitos gestores a trabalhar muito mais em função do que diza interpretação desses indicadores pela mídia do que em funçãoda opinião dos reais beneficiários das políticas públicas queadministram. Feita essa ressalva,precisamos perguntar o que efetivamente é medido pelo IDH do Pnud?Se tomarmos por base os principais fatores que integram o índiceveremos que ele reflete muito pouco daquilo que se propõe a medir.Para que serve, por exemplo, a renda per capta obtida pela simplesdivisão do valor do PIB pelo número de habitantes quando se temelevados índices de concentração de renda? Ou para que serve onúmero de alunos matriculados nas escolas quando consideradoisoladamente das taxas de evasão e da qualidade do ensino oferecido?Ou ainda a taxa de alfabetização de adultos quando as pesquisasrevelam que a maioria da população escolarizada é analfabetafuncional?A divulgação pelaimprensa de rankings como esse, para ter algum valorinformacional, precisa ser acompanhada da devida contextualização,tanto sobre a metodologia dos cálculos quanto de sua eficiência emmedir alguma coisa. Mas isso requer da imprensa uma análisedetalhada e aprofundada, não só dos cálculos, mas também damaneira como os dados foram coletados, o que geralmente não ocorre.Os institutos de pesquisa sabendo disso, preparam por meio de suasassessorias de imprensa releases, resumos onde fornecem oprato feito com as conclusões a que chegaram, dispensando assim aanálise de dezenas, centenas e as vezes, de milhares de tabelas.O IDH é um indicadorque pode fazer algum sentido quando comparado com outros como, porexemplo, a situação do Brasil como potência econômicamundial. Como explicar que a oitava economia do mundo é a 70ª emdesenvolvimento humano ou uma das últimas classificadas no rankingde distribuição de renda? O próprio conceito de desenvolvimentohumano com que trabalha a pesquisa é bastante polêmico uma vez quenão inclui fatores que meçam a sustentabilidade dessedesenvolvimento.Talvez para explicarisso as palavras falem mais do que cifras ou indicadores. Por que ovalor do indicador é esse e não aquele é uma tarefa muito maisdifícil de apurar do que simplesmente relatar quanto foi apurado. Osignificado das estatísticas muitas vezes é totalmenteincompreensível para os leitores, carecendo de tradução para serentendido. A sua interpretação é um mistério técnico-burocrático,restando ao leitor acreditar naquilo que lhe dizem que significa –torna-se uma questão de fé. Mesmo decodificados, os números nuncapassam de uma interpretação da realidade condicionada pela formacomo foram obtidos e pela abordagem politico-ideológica de quem osinterpretou – não são a realidade em si e dificilmente aexplicam. Por isso, matérias cheias de números geralmente vêmacompanhadas da opinião de algum técnico que os traduziu para osjornalistas e que, consequentemente, é transferida para os leitoresde maneira acrítica. Quando o jornalismoproduz o cruzamento dos números originados em diferentes fontes epor diferentes metodologias geralmente ele consegue revelar aspectosda realidade imprevistos até então. É aí que ele deixa de ser ojornalismo de números e passa a ser verdadeiramente jornalismo.Até a próxima semana.