Gilberto Costa
Enviado Especial*
Caxambu (MG) - O sociólogo eprofessor emérito da Universidade de São Paulo (USP), José de Souza Martins, é consideradoum dos intelectuais brasileiros mais respeitados. De origem humilde, foioperário aos 11 anos de idade e formou-se em Ciências Sociais em 1964, pelaFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Sua formação teve influência de professores como Florestan Fernandes, Otávio Ianni eFernando Henrique Cardoso.
Quando começou a pesquisar as questões agrárias e dotrabalho, criou uma “sociologia da vida cotidiana”, que ajuda aentender a sociedade pelo que está à margem. Seu conhecimento ajudou na formação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso,e o levou a ser, durante dez anos, membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário daOrganização das Nações Unidas (ONU) contra as Formas Contemporâneas de Escravidão.
Martins cativa o interesse pela investigaçãosocial sobre os excluídos até em seu hobby, a fotografia. Sobre o assunto, escreveu o livro A Sociologia da Fotografia e da Imagem. Durante o 33º Encontro Anual da Associação Nacionalde Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que terminou nesta quinta-feira (29), emCaxambu (MG), José de Souza Martins concedeu a seguinte entrevista à AgênciaBrasil.
Agência Brasil - No seu hobby de fotógrafo osenhor tem registrado o fechamento de fábricas em São Paulo. Qual a explicaçãosociológica para esse fenômeno?
José de Souza Martins - Essa éuma visão impressionista minha, porque andei em algumas fábricas quefotografei e em outras. Há nos antigos bairros operários de São Paulo e nosubúrbio uma clara e extensa desativação de fábricas. Os fatores são vários ecombinados. A supervalorização dos terrenos torna aquela fábricaantieconômica. Se o dono da terra agrega no preço do terreno o capital que elemobilizou para produzir, acaba sendo mais interessante para ele fechar afábrica, vender tudo o que tem, transformar em ferro-velho (foi o que eudocumentei em foto), e vender o terreno nu para construir condomínios, prédios,supermercados, etc. Só na área em que eu nasci, em volta da minha casa, trêsgrandes fábricas foram fechadas nesses últimos 20 anos. Além dasupervalorização da terra, podemos acrescentar outras coisas: algumas fábricastornaram-se obsoletas, não têm mais sentido, o produto que fabricavam nãointeressa mais. Um exemplo: ao lado da Estação de Santo André havia afábrica Kowarick, da avó do Lúcio Kowarick, professor de Ciência Política na USP.Ela fechou porque era produtora de casimira [tecido]. Ninguém mais faz terno de casimira,que vai lã no meio. Estamos em um país tropical, a casimira é de uma época em queos brasileiros queriam se vestir como os europeus, não importando a temperatura.
Abr - Também há o deslocamento daprodução, não?
Souza Martins - Outro fator quehouve, especificamente na região do ABC, foi que o adensamento de trabalhadoresfortaleceu muito a classe operária. O fato de ter uma fábrica ao lado da outra,quando desencadeia uma greve apossibilidade de comunicação, especialmente se forem do mesmo ramo, érapidíssima. Eu acho que houve uma estratégia da indústria no sentido de dispersaras fábricas para o interior, lugares onde não há tradição de lutas operárias.Isso é uma técnica social, é uma forma de esvaziar os sindicatos. Pode seraté uma forma de modernizar, de sair da greve, que rapidamente pelo cochicho sedifunde, e ir para um padrão de mobilização que envolve mais negociação.
Abr - Em sua apresentação, duranteo encontro da Anpocs, o senhor também chamou a atenção para o processo de "menos-valia", de desacumulação de capital. O que é isso?
Souza Martins - A menos-valia éoutro lado da questão. A gente tende a pensar o capital como se fosse um serimortal, quer dizer, o empresário que o personifica nunca vai perder o que tem.Há alguns anos a revista Veja publicou uma capa muito interessante: havia umafotografia de 1929 com a primeira diretoria da Fiesp [Federação das Indústriasdo Estado de São Paulo]. Todos os grandes nomes da história da industrializaçãode São Paulo estão lá: Roberto Simonsen, Francisco Matarazzo, etc. Aí areportagem pergunta: "quantas famílias desses empresários ainda mantém aindústria?". A resposta: "só uma". Eles faliram, perderam tudo. Os familiaresnão conseguíram tocar o negócio, não demonstram competência empresarial, odinamismo que dizem que devem ter. Quer dizer, o capital era muitopersonalizado e se reproduzia em condições muito particulares. Então também temisso: uma cultura empresarial ainda com pouca solidez.
Abr - Há muita idealização sobreesse processo inicial de industrialização brasileiro. O senhor já demonstrouque ele não foi exatamente ético e legal.
Souza Martins - Em nenhum lugardo mundo esse processo foi limpo. Algum tipo de lesão ao direito sempreaconteceu. Eu sempre me lembro de uma placa fixada ao lado da porta do BarclaysBank, em Cambridge [na Inglaterra] que dizia algo como: o fundador desse banco[1690] tinha como lema "o que vocês chamam de corrupção, eu chamo de relaçõesde interesse". Os empresários não questionavam moralmente o negócio. Houvemuita coisa desse tipo no Brasil, negócio com o governo, etc. Você pega a históriada industrialização no país no final do século 19 e no começo do séculopassado, sempre há alguma coisa estranha que as pessoas levantavam suspeita.Hoje há mais controle, naquela época não havia nenhum. Se pensarmos no períodoVargas, quanta licenciosidade não havia no Estado brasileiro, quanto não sefacilitou a vida desses empresários com grandes empréstimos a jurossubsidiados, às vezes considerados escandalosos.
Abr - Além dessa lesão aodireito, a industrialização e outras atividades econômicas no Brasil tambémestão assentadas em processos de grande exploração da mão de obra e dedestruição ambiental.
Souza Martins - Isso vem desde ocomeço. Grande parte da chamada "acumulação primitiva" ocorreu com aescravidão. Essa história de que o capitalismo brasileiro esperou o fim daescravidão, isso é teórico. Na verdade, a grande acumulação se deu naescravidão. No caso do Sudeste, foi no café mesmo. O trabalho livre chegou aquino limite da história da escravidão, enquanto houve essa possibilidade elesseguraram. Introduziram trabalho livre porque não havia reposição com acessação do tráfico negreiro e o preço do escravo começou a subir a ponto devirar uma mão de obra antieconômica. Depois, eles reintroduziram o trabalhoescravo com outra cara, que é o colonato, sistema em que trabalhador produziaa sua própria comida e praticamente não recebia salário. Dizer que acabou aescravidão e começou o trabalho assalariado não é verdade.
Abr - Uma forma assemelhada doque hoje chamamos de trabalho análogo à escravidão?
Souza Martins - Que não éanálogo. Nós temos uma terceira escravidão no Brasil. Há um sistemarazoavelmente eficiente no governo federal de combate à escravidão, mas sórazoavelmente eficiente, porque não consegue acabar com a escravidão. Querdizer, ela sai daqui e aparece ali. A nossa economia, diferente da economia demodelo, da literatura teórica, histórica e econômica, é uma economia dependenteda acumulação primitiva. Ou seja, tem o lucro normal do capital mais o lucroextraordinário da acumulação primitiva, que depreda o ambiente, depreda a mão deobra, rebaixa os custos por meios violentos. Enfim, é uma economia muitodependente de formas primitivas de extração da riqueza.
Abr - Essas atividades não sãoperiféricas na nossa economia?
Souza Martins - Eu estudei muitoisso, não é periferia. Se você pensar a economia em grupos econômicos,articulados em rede, você vai ver que todas as grandes empresas têm o seucentro e a sua periferia. E na sua periferia, pratica trabalho escravo. Isso vai daindústria à agricultura. Eu me lembro do caso emblemático da fazenda Vale doRio Cristalino, no sul do Pará, que era da Volkswagen e onde havia trabalhoescravo. No fim da ditadura militar [1964-1985], uma comissão de deputadosrecebeu uma denúncia de que havia exploração de trabalho escravo na produção decarne. A fazenda tinha o equipamento mais moderno para abater, frigorificar etransportar essa carne para a Alemanha, que ia de avião e chegava lá no diaseguinte, como carne fresca. O trabalho de derrubar a mata, plantar o pasto, otrabalho bestial era trabalho escravo, a chamada “peonagem”, escravidão pordívida. Cada vaca da Volkswagen tinha um chip implantado e a saúde do rebanhoera controlada por computador, via satélite, na fábrica de São Bernardo.
Abr - De um lado a modernidade datecnologia e de outro lado o passado no trabalho precário.
Souza Martins - Essa coisa dasociologia brasileira, de separar o tradicional e o moderno, está errada. Os doisestão juntos, não se separam. Você encontra isso permanentemente. Por isso,tivemos grande acumulação de capital e até industrialização na escravidão. Issonão foi anômalo. As duas coisas estavam juntas no mesmo sistema de produção deriqueza. A mesma coisa continua acontecendo até hoje.
Abr - Mas isso não tem grandevisibilidade, não?
Souza Martins – A sociedade nãovê porque ela não acredita. Nós temos uma cultura escolar de bestificação daspessoas. "Acabou a escravidão no dia 13 de maio de 1888", esta é umahistoriografia idiota! Não analisa os processos. Não salienta que tivemos duasescravidões no Brasil e temos agora uma terceira. Tivemos então: a escravidãoindígena, a escravidão negra e depois a escravidão da peonagem, com radiantes emvárias partes do Brasil. Se a escola educasse melhor para as pessoas enxergarema história como ela é, as pessoas seriam mais sensíveis. Essa informação sobrea terceira escravidão está sendo publicada todo o tempo, mas as pessoas nãoenxergam. É uma deturpação cultural derivada da matriz de entendimento dascoisas.
* O repórter viajou a convite da Anpocs