Sociólogo diz que invisibilidade da “ralé” é problema grave do Brasil moderno

27/10/2009 - 18h03

Gilberto Costa
Enviado Especial*
Caxambu (MG) - A desigualdade social talvez seja o tema mais recorrente nas conferências, seminários e debates do 33º Encontro Anual da Associação de Pós-Graduação ePesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que ocorre em Caxambu (MG). O assunto,que se desdobra nas diferenças de classe, gênero, cor e idade, é,para alguns cientistas sociais, o principal problema a ser pesquisadona sociedade brasileira.

Essa é a opinião do sociólogo Jessé Souza, professor da UniversidadeFederal de Juiz de Fora (UFJF), que está lançando, no evento, o livro A Ralé Brasileira (Editora UFMG), que organizou comartigos seus e de outros autores. “A ralé é a grande questãoesquecida. O Brasil não tem 500 problemas, mas um grande problema,que é essa desigualdade abissal do qual decorre mais de milproblemas”, afirmou. De acordo com levantamento estatístico contido no livro, umterço dos brasileiros vivem sob condições precárias e excluídossócio-culturalmente.

ParaJessé, o problema da ralé é “a questão mais importante noBrasil moderno” e está associado a outros problemas como a segurança pública, otrabalho informal, o racismo e o preconceito regional.Apesar da importância social que tem,  “a desigualdade não é nem percebidaenquanto tal. Nós a naturalizamos”, na avaliação do sociólogo. Ele, no entanto, acredita que esse pensamento não é algo racional, mas tem uma função mais eficiente justamente por ser “pré-reflexivo”.

“Asideias estão dentro da cabeça para justificar nossocomportamento”, assinala. “Queremos que matem a ralé, masninguém vai dizer 'eu odeio pobre, eles têm mais é que morrer'. Ocomportamento efetivo, a ação do brasileiro, porém, vai ser debater palmas”, disse referindo-se ao episódio  em que um policial militar matou umhomem que fazia uma mulher refém, em Vila Isabel, Riode Janeiro, há cerca de um mês.

Segundo Jessé, aimagem do PM dando um tiro certeiro no homem - repetida várias vezes na televisão - dá margem acríticas à mídia brasileira que, para ele, “é conservadora” epautada pelo interesse econômico. Na sua avaliação,a mídia reproduz um comportamento predominante no país, “mesquinho,medíocre, avesso ao debate”.

O professor critica os seus pares, inclusive autores da sociologia clássicabrasileira, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda,Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, além do antropólogoRoberto Da Matta, que, na sua opinião, ajudaram a construir e perpetuar o mito da "brasilidade", com conceitossofisticados”. Para ele, acriação do mito foi extremamente eficiente, “está em todas ascélulas dos brasileiros. Ela é uma verdadeira cegueira [por meio da qual] nóspossamos nos perceber e nos autocriticar”.

“Anossa ciência se construiu em continuidade e não em crítica. Aciência social foi montada para uma sociedade que é autoindulgente[tolerante com seus erros], que não é autocrítica”, opina. Emsua avaliação, “o debate científico, assim como o debate públicoe do censo comum, é pobre e fragmentário e não capta a totalidade.É exatamente isso do que o dinheiro precisa”.

Além domito da brasilidade e da baixa autocrítica, a sociedade também secaracteriza pela ausência de transformações políticas erevoluções sociais, segundo Jessé Souza. “O Brasil é uma sociedade que se modernizouapenas economicamente. Não houve processo de aprendizagem coletivapor meio da luta”, diz o professor ao lembrar o processo que ocorreu na Revolução Francesa, no século 18, quando a ralé teve voz ativa, diferentemente da populaçãobrasileira excluída.

De acordocom ele, o livro também mostra como, em vez da luta, a ralébrasileira compartilha do consenso que legitima a desigualdade e aexclui. A importância do livro, na visão dele, éa possibilidade de reflexão. “Não existe crescimento de sociedadesem autocrítica”, acredita Jessé.