Reportagem da Agência estimula debate sobre os Guarani Kaiowá

16/10/2009 - 9h23

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Conflitos étnicosgeraram as mais sangrentas e prolongadas guerras da história dahumanidade. Com o passar do tempo eles provocam intolerâncias erancores que se transformam em ódio e preconceito, os quais levam aações que visam a eliminação física dos inimigos. Muitos dessesconflitos foram criados e alimentados pela burocracia e peladiplomacia de Estados ao ignorarem as origens e as característicasculturais e espirituais dos povos, renegando ou subestimando o seudireito à autodeterminação. Como exemplo temos mais recentemente aquestão Israel-Palestina, os bascos na Espanha e na França, oapartheid na Africa do Sul e muitos outros. A chamada GrandeReportagem da Agência Brasil sobre a situação dos índiosGuarani Kaiowá, intitulada Duas realidades sobre o mesmo chão,publicada em setembro, da qual tratamos em nossa coluna Apartadosda natureza indígena, continua suscitando debate entre osleitores, por isso voltamos ao assunto para aprofundá-lo.O leitor AlbinoMilczwski Filho escreveu: “ Parabéns pela matériaesclarecedora sobre as terras indígenas do dia 02/10/2009. Alem deesclarecido me fez ver esse problema de um outro ângulo: o docoração”.Mas o autor da demandainicial, Fabiano Reis, não ficou satisfeito e tornou a escrever paraesta Ouvidoria: “ Obrigado pela resposta pois abre o debateentre os responsáveis e leitores da Agência Brasil e coloca emdestaque as mais variadas interpretações sobre o tema. Entretanto,a população de Mato Grosso do Sul é composta por aqueles quehabitam o estado, amam e defendem o povo desta parte do país e seusinteresses sendo indígena, branco, negro ou amarelo. Para seentender isso basta lembrar “(O sul) de Mato Grosso espera esquecerquisera o som dos fuzis, se não fosse a guerra quem sabe hoje eraoutro país”, aqui já foi Paraguai. Além disso, em Mato Grosso doSul (assim como o resto da Região Centro-Oeste) a ocupação foiincentivada pelo governo federal. Em MS as propriedades sãodocumentadas pela União desde 1885, 1910 e as mais tardias 1920 esalvo algum fato lamentável da história, não houve ataques aosindígenas para saírem das terras. Por outro lado, avisão pouco cientifica da questão e muito apaixonada, causa efeitoscruéis aos povos indígenas. A visão multinaturalista que aponta aterra como segmento do próprio homem é aplicado ao indígena semrestrição. E ela se refere ao homem tribal. Avalio que os problemasenfrentados por esta parte fundamental da população brasileira nãodifere dos outros excluídos do Brasil, necessitam de educação,saúde adequada, moradias decentes e perspectivas para planejar aprópria vida. Ser um cidadão de fato. Até o momento as mesmaspolíticas públicas afirmam inserir o indígena (dando ou devolvendoterras, por exemplo) para depois excluir (jamais mostraram comotrabalhar estas terras e ainda são considerados incapazes em suatotalidade, não são cidadãos completos) eu pergunto ao ouvidor quedefendeu a reportagem com tanta convicção: manter seres humanos àmargem do desenvolvimento, é certo? Dar manutenção em uma políticapública que trata homens e mulheres como seres primitivos, é certo?Há algum assentamento (que os próprios índios não tenhamarrendado aos brancos) que não seja um completo desastre?É evidente que aluta por várias causas, inclusive a indígena, oferece manutençãoa diversos empregos. Os casos da reserva Raposa Serra do Sol e do sulde MS são totalmente distintos. Não é intenção deste leitor daAgência Brasil pregar a não demarcação de terras que forem, dereal direito de indígenas, muito menos manter os índios na misériaou em estado primitivo. Entretanto, por aqui, nas terras do Mar deXaraés, ninguém quer ver cidades fantasmas e falidas, terrasarrendadas ilegalmente por indígenas e índios passando fome e todotipo de necessidade - sem assistência correta da Funai, assim comotodo resto da população do estado. Por outro lado, insisto serimportante abordar o assunto de forma técnica, sem paixões ecrenças, “doa a quem doer”. Portanto, seria interessanteentrevistar fontes para as questões jurídicas, que sejam estudiososdo assunto, fora da briga Funai e Famasul. Lembrando da sugestão doouvidor sobre a questão do índio presente em MS “há milênios”e por isso as terras são indígenas, lembro que a situação não édiferente no Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outra localidadedo país e a Funai não fala em estudos para demarcar essas unidadesda Federação”.Lembramosao leitor que não compete ao Ouvidor responder às suas perguntas sobreo assunto com opiniões pessoais, mas indicar onde ele encontraria aspossíveis respostas nas matérias da ABr. Em sua reportagem aAgência procurou fazer um retrato da situação atual doconflito, tarefa que consideramos bem sucedida em face da omissão daimprensa de um modo geral. Explicarpor que os fatos ocorrem já é um passo mais além da propostainicial da cobertura que manteve a reportagem apenas quatro dias naregião, tempo muito aquém do necessário para se aprofundar emquestão tão complexa.Em uma análise maisdetalhada da reportagem esta Ouvidoria constatou que muitas dasperguntas do leitor poderiam ter sido respondidas se outrasabordagens tivessem sido empregadas e complementadas com a devidacontextualização do processo histórico de ocupação daquela partedo território nacional, citada por Fabiano Reis. No total de 14matérias são citadas 20 fontes, algumas mais de uma vez, das quaiscinco são grandes produtores rurais (25%) e 11 são índios (55%),somando 80%. Daí o clima de peleja entre dois lados contendores.Esse clima de antagonismo foi descrito em nossa coluna anterior como“uma partida de futebol em que dois times se defrontam”. Oefeito disso é que fica um discurso contra o outro, um dualismo quereduz a questão sem explicar os demais interesses que estão emjogo. Por exemplo, na matéria do Marangatu (área homologada), ofazendeiro sustenta que a terra pretendida pelos índios pertence aele. Para entender a disputa há que se recuperar o processo no qual,em 2005, o governo federal homologou a terra como área indígena.Como é que um processo homologado pelo presidente da República ésuspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal (ministro NelsonJobim) volta para a Justiça de Primeira Instância? <!-- @page { margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } -- Essas questões vãoalém da contenda descrita nas matérias e não foram informadas aosleitores. Três dos cincograndes produtores rurais entrevistados ocupam cargos no governomunicipal ou em órgãos de classe regionais ou estaduais, enquantoque dos 11 índios ouvidos pelo menos quatro são classificados comolideranças, mas apenas dentro da estrutura das aldeias ou dosacampamentos. Não foi ouvido nenhum representante de movimentosindígenas organizados que contextualizasse a questão de forma maisabrangente. Do lado da populaçãorural não indígena, excluídos os grandes produtores rurais, háapenas uma pequena agricultora como fonte da reportagem - ex-colona,assentada em uma terra que foi transformada em reserva. Por meio doscomentários de um promotor do Ministério Público no estado, acobertura toca na questão dos títulos irregulares de propriedadeoutorgados pelas autoridades federais e estaduais, mas a reportagemnão aproveitou a experiência da pequena agricultora para desenhar ocontexto histórico do povoamento da área, na qual pequenosagricultores não indígenas foram inseridos na região comocolonizadores. O que se destaca é o ressentimento da lavradora emconsequência de ter sido transferida para uma área menos favorávelà agricultura. Além dessas duasfontes, há apenas duas que não são grandes produtoresrurais ou índios: a administradora regional da Funai e o antropólogoque participa no trabalho de vistoria. A reportagem toca em aspectosimportantes na entrevista com o procurador, que acusa o governoestadual de compactuar com as entidades ligadas aos fazendeiros paraemperrar o processo de vistoria, mas não ouviu ninguém ligado aoPoder Executivo ou Judiciário estaduais para repercutir as acusaçõesde possíveis resistências políticas à demarcação e homologaçãodos territórios e não aproveitou a entrevista com o antropólogopara dar mais informações sobre o que as vistorias envolvem e quaissão os sinais que são usados para reforçar o direito dos indígenasàs terras. A questão dasindenizações das terras e benfeitorias que serão desapropriadas éapenas citada, mas parece que aí reside um dos principais focos detensão. Quem arcará com os recursos necessários? A União ou oestado? Há verba prevista para isso nos respectivos orçamentos?Na reportagem com aadministradora regional da Funai fica evidente a precariedade daestrutura e do funcionamento do órgão. Todavia poderiam ter sidoouvidas instâncias superiores para explicar por que a situação nãoé diferente. A atuação da instituição é citada na matéria como procurador do Ministério Público Federal – MPF, que afirma: “OTAC [Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo MPF com a Funai]não está sendo descumprido por força da Funai, há elementospolíticos e jurídicos”. Quais são esses elementos? As matériasnão explicam deixando sem respostas algumas das perguntas formuladaspelo leitor.A matériaMPF: destinação de terras para os guarani kaiowá écaminho sem volta fala que a “União cometeu um equívocohistórico no estado ao obrigar os índios a deixar as terrastradicionais e viver em espaços reduzidos nas reservas”.Sabe-se que sucessivos governos - estadual e federal, há mais de umséculo distribuíram terras na região como instrumento de barganhapolítica e como parte central da estratégia de colonização doCentro-Oeste, como se aquelas terras não fossem de ninguém. OsGuarani assistiram a tudo isso pacificamente pois sua força vital,baseada na identidade cultural e na ancestralidade, vinha sendocomprometida desde tempos mais remotos de confronto com acivilização branca. Essa aparente “passividade” daquele povoprecisaria ter sido explicada de maneira antropológica. Essasinformações provavelmente serviriam para esclarecer sobre “osíndios na miséria ou em estado primitivo”, citados peloFabiano.Lideranças indígenascom destaque nacional e internacional estão neste momento pensando ediscutindo ativamente politicas públicas e soluções para odesenvolvimento sustentável de suas diversas etnias, dentre elas osGuarani. Marcos Terena, diretor do Memorial do Povos Indígenas,órgão ligado à Secretaria de Cultura do Distrito Federal,representante da população nativa brasileira na Organizaçãodas Nações Unidas - ONU, desde 1991, é um deles.Em recenteentrevista(*), Marcos lembra que “Meu povo, até hoje ficou emsilêncio em relação a todas as provocações. O silêncio tem umsignificado espiritual. É a força espiritual para saber o momento equal o tipo de ação a tomar. Reflexão dos líderes homens emulheres. Aparentemente estavam contentes com o paternalismo. Ochamamento tem a ver com o meio ambiente e espiritualidade, não temespiritualidade se não tiver meio ambiente.”Tratando da questãojurídica sobre a demarcação das terras o líder indígenaargumenta: “Na Declaração Internacional da ONU está claro.Muitas vezes os advogados, o sistema jurídico brasileiro adesconhece e a maioria das decisões em relação ao direito indígenaé unilateral. O sistema é ignorante em relação aos povosindígenas. Precisamos mostrar para ele (governador do MS) que eletem a ver com o compromisso indígena, ele tem que ser parte porque oinstrumento do lucro imediato vai trazer catástrofe ambiental,desequilíbrio nas águas das chuvas dos rios. Isso vai refletir nasnovas gerações. Precisamos despertar isso na nossa sociedade. Afama de Mato Grosso do Sul no exterior, digo porque conheço 30países, é que o Estado produz o gado verde. Quem cuida desse gadono Pantanal? São os índios peões. Meu avô já foi um deles. Amodernidade não permite mais a monocultura. Não precisa destruir oCerrado para criar gado. Os índios ensinaram os fazendeiros apreservar. A carne é famosa lá porque não precisa de ração. Anova geração de produtores rurais vai para fora e começa aentender isso. A reação contra a demarcação vem do setor maisracista que não gosta dos índios, não sabem nem contar o gado enunca pegaram no arado. O que trabalha com a terra vê o índio comoaliado. Quem é contra é o fazendeiro unha pintada, que não temcalo na mão.” Discutindo alternativaseconômicas para o desenvolvimento, Terena considera: “O turismoé educativo, preventivo e gera renda. Lá no Canadá os índios têmempresa de transporte aéreo. O Sebrae tem que profissionalizar oíndio. No Paraná, o governador Requião fez o ICMS Ecológico. Seaquele município tem mais área verde, vai receber mais recurso paracuidar dele. Requião é do mesmo partido do Puccinelli [governadordo MS] e pode dizer para ele como funciona. O índio é parte doprocesso e o desafio é construir o processo em Mato Grosso do Sulque hoje é conhecido internacionalmente como o Estado do Brasil quemais viola os direitos indígenas. Tem que mudar a cabeça dasautoridades.”A matéria Áreasob litígio aumenta tensão entre índios e fazendeiros na fronteiracom o Paraguai mostra o quão explosiva é a situação. Hádenúncias de uso de pistoleiros contra a comunidade, mas ela não foram repercutidas no Ministério PúblicoFederal, na Funai, nem na polícia - nenhuma autoridade foiouvida sobre isso. Para se entender a complexidade da questãoem Mato Grosso do Sul há que se observar também que o contextopolítico regional repercute em Brasília por meio dos deputados esenadores, representantes das oligarquias que têm o domínioeconômico da região e que pressionam os Poderes e as instituiçõesfederais para que a atual situação perdure. Fora desse contextofica difícil para a reportagem explicar a realidade local. A GrandeReportagem tem o mérito de ser uma fotografia dessa realidademostrando a gravidade da situação em que se encontra uma parcelaconsiderável dos 70 mil índios. Mas se os fatos extrapolam ascircunstâncias reportadas há que se aprofundar na pesquisa, naapuração e na verificação das declarações das fontes. Além deespecialistas, precisam ser ouvidas lideranças, políticos eautoridades referidas nas matérias. Muitas das perguntas do leitorsó encontrarão resposta se a Agência Brasil se aprofundarna questão. Tudo indica que oassunto continuará na agenda pública pois o presidente da Funai jádeclarou que a homologação da terras dos Guarani é “uma questãode honra”. À agência pública compete acompanhar a questão paramanter vivo o debate, como vem fazendo. Séculos de injustiças eviolência podem finalmente ter um paradeiro e ao jornalismo cabeescrever a parte atual dessa história.Até a próxima semana.(*) ver aentrevista completa em:http://www.midiamax.com/view.php?mat_id=560467