Apartados da natureza indígena

02/10/2009 - 10h06

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - >A Agência Brasilfoi a Mato Grosso do Sul reportar a situação em que se encontra opovo Guarani Kaiowá e publicou a Grande Reportagem Duasrealidades sobre o mesmo chão. A iniciativa de revisitar oassunto quando a chamada “grande imprensa” o ignora, demonstra aimportância da comunicação pública em pautar a discussão detemas polêmicos que a sociedade não índia, estabelecida na região,parece não querer resolver. Apesar do assuntotranscender os aspectos abordados na reportagem, seu valor situa-seprincipalmente em tentar retratar um momento de um processo queacumula séculos de intolerância, de violência e de massacre poruma cultura dominante sobre os dominados. Os recursos multimídia deimagem e áudio complementam essa fotografia instantânea darealidade em que sobrevive o povo desterrado. O diário de bordo dareportagem ajuda a integrar o leitor no cotidiano do desafiojornalístico. Esta Ouvidoria foiacionada pelo leitor Fabiano Reis que escreveu: “Não hásul-mato-grossense que não fique muito chateado com o título ea chamada da reportagem Em Mato Grosso do Sul, índios em condiçõesprecárias vivem ao lado de latifúndios prósperos. Penso que foipré-definida a apuração, não avaliou o trabalho realizado pelosprodutores e não 'latifundiários' e principalmente nãoquis saber a opinião da população do estado. Não deveria em suareportagem jornalística obter 'As várias realidades sobre o mesmochão?'. Deveriam respeitar a população do MS, os trabalhadores eempreendedores do estado e até mesmo os critérios básicos dojornalismo. Sobre o último item há duas alternativas: trabalhem defato, como agência de notícias ou tornem público que são apenasuma assessoria de imprensa.”A ele, a AgênciaBrasil respondeu: “Agradecemos o comentário do leitor einformamos que o repórter da Agência Brasil esteve em Mato Grossodo Sul para ouvir todas as partes envolvidas na questão dos índiosGuarani e dos fazendeiros.”Ao ouvir a “populaçãodo estado”, como queria o leitor - como se os índios não fossem averdadeira e original população que há milênios habitam aquelasterras, a ABr considerou que “todas as partes envolvidas”fossem apenas índios e fazendeiros, tratando a assunto como umapartida de futebol em que dois times se defrontam. Essa abordagemsimplista de um assunto tão complexo reflete uma possível carênciade recursos para se aprofundar na questão – a falta de umapesquisa sobre o processo histórico que levou à situação atualnão permite ao leitor entender exatamente o que está em jogo e qualé o contexto da disputa. As matérias induzem a acreditar que osíndios querem as mesmas terras que valem R$ 20 mil o hectare para osnão índios, que o “chão” para uns e para outros, é o mesmochão. Fisicamente podem até coincidir os espaços, mas osignificado para cada um é muito diferente.Se para os não índiosa terra é uma mercadoria como outra qualquer, que só serve parasustentação da soja, do milho, da cana e do gado, que se podevender, trocar ou negociar ao bel-prazer, para os índios ela é aprópria mãe, que, até onde se sabe, pela ética branca, não sevende, não se dá e não se troca. Explicar essasdiferenças culturais entre o valor simbólico, material para uns eimaterial para outros, permitiria ao leitor compreender o verdadeirosignificado da terra em duas sociedades tão distintas, obrigadas auma difícil convivência quando têm de compartilhar da mesmanatureza. Um território indígenanão é uma “propriedade”, de quem quer que seja, o conceitosimplesmente não se aplica ao espaço físico onde habitam, pois eletranscende a qualquer utilidade mercantil de posse da mesma. A terrado índio é povoada por suas divindades e é ali que convivem comseus antepassados comungando passado, presente e futuro em umahistória viva recontada e reescrita a cada dia. São noções detempo, de espaço e de espiritualidade que os não índios nãoconseguem compreender e muito menos alcançar e por isso precisam seresclarecidos e devidamente informados para não formar juízos devalor apressados. Se o jornalismo nãotiver a sensibilidade para pesquisar e entender a essência do objetoreportado ele frequentemente incorre na banalização do assunto comabordagens equivocadas como, por exemplo, querendo botar preço noque não tem preço porque o conceito não se aplica.O processo delevantamento dos territórios indígenas com a elaboração dosrelatórios antropológicos, demonizados pelos fazendeiros, é outroaspecto que as matérias não explicam no que constituem, quais sãoas ações, os procedimentos, parâmetros e metodologias utilizados,bem como qual é seu valor legal nas demarcações. A FundaçãoNacional do Índio – Funai, citada várias vezes por ambos oslados, inclusive sob a acusação de prática de terrorismo, não foiouvida, apesar de contar com um escritório regional em Amanbai,município visitado pela reportagem. O Estado brasileiro quehistoricamente colaborou, tanto por meio de sua ação quanto da suaomissão, para que se chegasse à atual situação, não teve suasresponsabilidades apuradas pela ABr, fazendo parecer que elenada tem a ver com os acontecimentos. O papel da Justiça branca, dapolícia branca e do governo branco não foram apurados e são apenaseventualmente citados sem confirmação das afirmaçõesapresentadas. No dia 12 de julho a ABr havia publicado amatéria Garantir terras para índios Guarani Kaiowá é“questão de honra”, diz presidente da Funai, em quemostrava a ação histórica e as responsabilidades do Estadobrasileiro na opinião do presidente da Funai, no entanto, o acesso aela depende do leitor fazer uma busca no site pois o materialnão foi disponibilizado dentro da Grande Reportagem. Em Mato Grosso do Sul aposse da terra também vem servindo historicamente para que a classede seus detentores construa um poder político que controla ogoverno, a polícia e boa parte da justiça. Esse poder político temprocurado ignorar, quando não excluir os direitos dos povosindígenas, conforme foi apurado pelo relator especial das NaçõesUnidas para os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais dosPovos Indígenas, James Anaya. A Grande Reportagem ignorou essesaspectos da realidade que procurou reportar e o assunto foi tema deapenas uma nota publicada pela ABr em 19 de agosto: Relatorda ONU diz que índios brasileiros precisam de melhor assistência. Orelatório aponta responsabilidades dos governos municipal, estaduale federal e as constantes violações dos direitos humanosrelacionadas aos elevados índices de suicídios e mortalidadeinfantil entre os Guarani.Diferentemente do queafirmou o leitor, os empreendedores do Estado estão representadospor lideranças ouvidas pela reportagem que defendem seu modeloparticular de desenvolvimento e sua noção de progresso,contrapondo-se radicalmente a qualquer outro tipo de destinação dasterras. Para eles o agronegócio cumpre seu papel empregando índiosem suas lavouras e a luta pela terra é apenas daqueles que nãoquerem vender sua força de trabalho.A reportagem mostratambém qual é a noção de segurança praticada pelos fazendeirosque advogam para si o uso legítimo da força quando suas possesestão ameaçadas, fazendo justiça com as próprias mãos, àrevelia dos princípios do Estado de Direito. Mas a reportagemembarca no conceito de produtividade desses mesmos fazendeiros paraos quais a terra vale pelo que produz, geralmente para exportação.Esse é mais um dos dogmas capitalistas que enxergam a naturezaapenas por aquilo que dela se pode tirar. Já para o índio, em vezde plantar um hectare de mandioca, vender e comprar bujões de gás,vale mais a pena deixar o mato crescer e aproveitar a lenha parafazer o fogo. São sutilezas que dificilmente a reportagem conseguecaptar se não for devidamente pensada, preparada e planejada.Os áudios multimídiapermitem ao leitor ter acesso direto aos depoimentos das fontes deviva voz, só faltando mais pessoas para fazer a contextualizaçãodo que estava sendo comentado, à exemplo da entrevista com oantropólogo Rubem de Almeida.Mas se em seu conteúdoa Grande Reportagem deixou a desejar por não ter conseguido captarnuances da natureza indígena, contextualizar historicamente esuperar o olhar branco sobre a questão, ela tem o mérito de mantero assunto na agenda da ABr e consequentemente de toda a mídiaque dela se vale reproduzindo suas notícias. Por aí nota-se aprincipal diferença da presença da agência pública no debatedemocrático da questão.Até a próxima semana.