Como se constrói um preconceito: toque de recolher para a juventude

01/05/2009 - 6h15

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Um assunto importante vem ocupando a atenção da mídia nosúltimos dias e, dependendo da maneira como se conduz o debate e se aborda oproblema, ela, a mídia, poderá estar contribuindo para a construção de mais umpreconceito em nossa sociedade. O leitor Edwilson Souza escreveu para esta Ouvidoria paramanifestar sua opinião com relação ao assunto tratado na matéria Municípiospaulistas adotam “toque de recolher” para menores, publicada pela AgênciaBrasil em 23  de abril: “achei umasolução excelente para ao menos tentar minimizar os atos infracionais cometidospor menores. Claro que a ‘garotada’ não será favorável pois, por sua natureza,o jovem é contra proibições. No entanto, sou do tempo em que a criançada tinhamedo do ‘juizado de menores’ e até ficava  mais alerta  quando via  aquela ‘baratinha’ (fusca branco e preto)passando pelo bairro. Quem sabe, um dia  teremos um  sistema de leis mais sérias que punam e/oueduquem devidamente os ‘di’ menor. Até lá, o toque de recolher serve deinstrumento para que a polícia possa tomar alguma ação com relação aos menoresde idade.”Talvez fosse interessante, então, que não houvesse menoresde idade  e que nascessemos todosadultos, já que eles são um problema que cabe à polícia “tomar alguma ação”? Decerta maneira é isso que a sociedade de algumas cidades do interior paulistaestão fazendo – eliminando menores de idade das ruas a partir de um certohorário. Se a matéria da ABr inspirou o leitor a se manifestarsobre o assunto é sinal de que o tipo de abordagem pode estar incentivando oleitor a se convencer de que a medida é uma solução para acabar com acriminalidade infanto-juvenil. Na notícia, são ouvidos o juiz autor dadeterminação, um membro do Conselho Tutelar, e o delegado da cidade. Todavia,os principais atingidos e apenados, apesar de não terem sido formalmentecondenados – os jovens, são totalmente ignorados.Da forma como a ABr tratou a questão, os direitosdesses cidadãos parecem não existir. Será que o Estatuto da Criança e doAdolescente, o ECA, dá poderes ao Judiciário para legislar sobre a liberdadedos jovens ir e vir, como alega o juiz em sua entrevista? O que diz a nossaConstituição? Esse pode ser apenas o início para um debate mais aprofundado queconsidere tanto os argumentos dos magistrados quanto o contexto legal e oprocesso histórico de marginalização de uma parcela da juventude.      Em outra matéria:Secretário adjunto de Justiçade São Paulo é contra toque de recolher para menores,publicada no mesmo dia, a Agência Brasil apresenta um contrapontoimportante que permite ao leitor saber que a aparente “solução” para o problemapode ser encarada como um problema ainda maior, mas não fornece informaçõessuficientes para que o leitor seja demovido de acreditar que os municípios queadotaram o toque de recolher estão no caminho certo para resolver questãodesses “menores de idade”. E termina por ai a discussão na ABr. É curioso como certas atitudes e certos procedimentos sãousados ao longo da história por regimes autoritários como marca daintolerância, discriminando e separando os diferentes do convívio social. Onazismo, com apoio da opinião pública germânica, a princípio isolou os judeusnos guetos, impedindo-os de ir e vir livremente pelas cidades, depois implantouo toque de recolher confinando-os em casa a partir de certo horário, e,finalmente os exterminou. Na mesma época, os Estados Unidos fizeram o mesmo comos imigrantes alemães e japoneses, só não chegando a extermina-los. Mas, do queeram mesmo culpados judeus e imigrantes para merecerem tal discriminação? Issoé o que menos importa quando a opinião pública é conduzida por um sentimento depreconceito e intolerância. Sentimentos responsáveis pelos maiores crimes dahistória da humanidade e inclusive genocídios de que se tem notícia.  Hoje em dia, as regras que regem o Estado  de Direito pressupõem a liberdade de cadaindivíduo poder ser o que é e existir dignamente, ou seja, ser respeitado pelosoutros e respeita-los, conforme os direitos individuais e coletivos da pessoahumana que disciplinam a coexistência social. Na prática, isso significa queninguém pode ser considerado culpado por um crime que não cometeu ou por serdiferente dos demais ou ainda, simplesmente, por ser menor de idade. Apesar de apenas 0,06% da população jovem se envolver emcrimes contra a sociedade, toda uma geração está sendo punida por decisão dejuízes de algumas comarcas do interior paulista. A determinação (sentença?):toque de recolher! Confinem-se os jovens em suas  casas! Ou seja, atingir os jovens justamentenaquilo que mais prezam: a liberdade de ir e vir quando e para onde bemdesejarem. Uma dentre outras numerosas possíveis abordagens da questãopor uma agência pública de notícias seria verificar como anda a execução daspolíticas públicas para a infância e adolescência nos municípios citados nasmatérias. Afinal, a medida do juiz também não deve ser interpretada como umindicador de que elas falharam e de que o estado está desistindo de educar eprevenir a violência preferindo punir indiscriminadamente? As consequências da medida judicial podem ir muito além denúmeros e estatísticas policiais conforme apresentado na matéria da ABr.Uma delas – a criminalização de toda uma geração, pode estar alimentando umpreconceito contra nossos jovens, apartando-os do convívio social. Daí adecidir que eles devem ser exterminados pode ser apenas uma questão de tempo ede lugar. Hoje, em algumas comunidades, os jovens já são os alvos prediletos degrupos de extermínio. Para serem exterminados basta ser  pobres, morar  na periferia e estar  reunidos na rua depois de determinada hora danoite.Cabe à mídia, seja ela pública ou privada, arcar com suaresponsabilidade de promover esse debate a partir dos limites da cidadania, dointeresse público e do Estado de Direito, pois, fora deles, não há soluçãocivilizatória.   Até a próxima semana.