Crise atual pode ser mais intensa do que a de 1929, diz sociólogo

25/04/2009 - 12h28

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Em 1980, o cineasta mineiro JoãoBatista de Andrade filmou O Homem que Virou Suco para contar asagruras de um imigrante nordestino confundido com um assassino de ummanager de uma empresa multinacional. A imagem antecede aoconceito, usado pelo sociólogo Ricardo Antunes, de“liofilização” organizacional - tomado deempréstimo da química para explicar o processo detransformar substância líquida em pó (comoacontece com o leite em pó ou com o veneno).Para Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em temas do mercado de trabalho, as empresas, antes da crise atual, passaram por processos de“liofilização” e enxugaram suas “substânciasvivas”, os trabalhadores, por meio da modernizaçãotecnológica e da reestruturação produtiva. Oresultado disso foi o crescimento do chamado desemprego estrutural,que poderá aumentar em muito coma crise econômica mundial de hoje.Ele avaliou que o trabalho está sob enorme ameaça eo dia 1º de maio deste ano será“digno do século 19”. Nesse contexto, sãoabandonadas as teses sociológicas que enxergavam o fim dotrabalho ou do trabalhador como categoria de análise e voltama circular críticas ao capitalismo e idéias de umasociedade assentada em novas relações de produção. Ele afirmou que a crise mundial atual poderá ser mais intensa do que a de 1929, nos Estados Unidos.AgênciaBrasil - Que ameaças a crise econômica mundial trouxe aotrabalho?RicardoAntunes - Não é mais ameaça. A crise econômicajá tem um resultado devastador para a classe trabalhadora. AOIT (Organização Internacional do Trabalho) fez aprevisão de novos 50 milhões de desempregados em 2009,o que eleva o número de desempregados para até 340milhões de pessoas no mundo. Este número é umaestimativa moderada. Só a China anunciou que 26 milhõesde ex-trabalhadores rurais, que estavam ocupados nas cidades, perderamo emprego. A tragédia que se abateu entre os trabalhadores émonumental, a começar pelos imigrantes à cata detrabalho nos países do norte do mundo, mas também a classe trabalhadoraem geral, que estava empregada na indústria metal-mecânica, têxtil, no setor alimentício. A primeiraprovidência que o empresariado toma na eminência de umacrise é o corte nos postos de trabalho. É emblemáticoque os Estados Unidos, a Inglaterra e o Japão vivem a maiortaxa de desemprego das últimas décadas.ABr –Qual a versão brasileira dessa situação?Antunes – O governo tentou nos vender a idéia, completamentefalsa, de que estávamos imunes à crise. A verdade, noentanto, é que nós, no final do ano, tivemos 640 milnovos desempregados. De lá para cá, os dados melhoraram,porque o governo tomou medidas, como a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) dos automóveis, para impedir que a recessão fosse maisdura. Mas essas medidas têm folego curto. A economia brasileiraé muito globalizada. O Brasil depende muito do mercado externopor causa das commodities. O desfecho da crise brasileira estábastante atado ao desfecho da crise internacional. Não podemoster uma ilusão de que o país é uma ilha róseaem um mar turbulento.ABr – Antes da crise essa “ilha” tinha metade dosseus trabalhadores sem os direitos reconhecidos, não?Antunes – Chegamos a quase 60% da nossaPopulação Economicamente Ativa, em meados dos anos 2000,na informalidade, o que é expressão da tragédiasocial. Imaginar que o Brasil vai ficar no século 21fornecendo, por exemplo, cana-de-açúcar com trabalhosemi-escravo e pessoas cortando até 17 toneladas de cana pordia, sob um regime de mensuração do trabalho quesubtrai os valores de remuneração. Essa não podeser a alternativa brasileira. O Brasil não é o piorcenário no contexto internacional, mas pensar que estamosimune a ele é um completo equívoco.ABr –O trabalho no Brasil chegou ao século 21?Antunes – Estamos vivendo uma situaçãobastante contraditória. Embora o mundo produtivo àsvezes atinja um patamar do século 21, as condiçõesde trabalho estão regredindo às condiçõesverificadas nos séculos 18 e 19. O trabalho escravo, semi-escravo e infantil, que nós imaginávamosfazer parte do início da Revolução Industrial, estão hoje esparramados em vários setores, e nãoé só no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, tambémexiste trabalho infantil, e o trabalho sujo do imigrante, que étratado como um cidadão de quarta categoria. Tudo isso nosjoga a querer ser uma economia do século 21 com condiçõespretéritas de trabalho, o que faz com que a luta do 1º de Maio de 2009 seja semelhante à luta do 1º Maio de 1886, ano daRevolta de Haymarket, em Chicago, nos Estados Unidos.ABr –O senhor disse que políticas como a isenção doIPI têm fôlego curto. Por que os governos optam por medidas para a indústria automobilística, adespeito dos problemas ambientais e dos problemas de saúde?Não há outros setores com maior empregabilidade?Antunes – O Brasil é uma triste repetição degovernos que representam os interesses dominantes. Por que que aindústria automobilística joga pesado? Porque seu lobbyé decisivamente forte, assim como os bancos também osão. Os governos olham para o capital, para o setor produtivoe financeiro, de um modo muito diferente de como olham para otrabalho. Os trabalhadores só conseguem alguma medida em seufavor quando lutam de forma consciente. Como muitas centraissindicais, hoje, estão prisioneiras de política oficiais, trabalhadores e sindicatos de base perderam força. Muitas das centrais oscilam em defender a política do governo e defender os trabalhadores. Mas sabemos que asconseqüências para o desemprego, quando a indústriaautomobilística entra em recessão, são graves. Se reduz o emprego nessa indústriaaumenta o nível geral de desemprego porque a cadeia produtivaatinge o fornecedor, toda a rede de autopeças, que existe emfunção da montagem do sistema automotivo.ABr –E quanto à sustentabilidade?Antunes – Sevoltarmos a produzir, recuperaremos o emprego da indústriaautomobilística e de sua cadeia produtiva, mas aumentam osníveis de destruição ambiental e de poluiçãoglobal. Se tivermos a retração do emprego, odesemprego aumenta a barbárie social. Atividades que sãoprofundamente positivas na medida em que preserva a sociedade, pelavia reciclável, daquela tendência do capitalismo dedestruir as mercadorias para produzir outras, sãosubvalorizadas e não recebem incentivos. Isso nos faz ter quepensar um novo modo de vida e de produção para o século21. Vamos querer viver eternamente nesse sistema que exclusão, precarização, informalidade, desemprego e barbárie social são o predominante?ABr –As características desse sistema é que constituem aatual morfologia do trabalho, tratada em um dos novos artigos de seu livro Adeus Trabalho?, relançado agora?

Antunes – O meu livro foi, desde sua primeira edição (em 1995), uma resposta à tese do fim do trabalho e de que aclasse trabalhadora não tinha mais sentido. O que venhomostrando desde então é que é preciso compreender quem éa classe trabalhadora de hoje. Temos trabalhadores notelemarketing que não existiam antigamente, dehipermercados, motoboys. Temos uma nova morfologia, um novodesenho. Não é que acabou o trabalho, e muito menos aspossibilidades da revolução do trabalho. A novamorfologia é para não ter uma visão restrita daclasse trabalhadora como apenas os operários metalúrgicos.

ABr –Essas idéias do fim do trabalho foram apropriadas pelascorrentes de ciência social aplicada que defendiam a chamadaqualidade total, a eficiência e o aumento da produtividade.Essas melhorias não foram benéficas à sociedade?

Antunes – Esse conjunto de medidas nasceram no Japão edepois se ocidentalizaram. Esses processos tiveram como resultado oaumento da produtividade e dos ganhos do capital, maiores lucros dasempresas e crescimento do desemprego. Com esse processo deliofilização, digo utilizando um termo cunhado pelosociólogo espanhol Juan Jose Castillo, asempresas passaram a produzir dez vezes mais com cinco vezes menostrabalhadores. Quem perdeu foi o pedaço da humanidadeque depende do trabalho. Foi aí que o desemprego estrutural,em escala planetária, aumentou. O problema é que aspessoas afetadas hoje estão no desemprego, informalidade, precarização, narcotráfico, economia docrime.

ABr – O que o senhor acha da proposta de banco de horas paraevitar o desemprego atual, visando uma extensão de jornada nofuturo?

Antunes – É ruim, descalibra a vida dostrabalhadores. Fiz uma pesquisa há alguns anosanalisando essa situação e haviatrabalhadores que não teriam férias nos trêsanos seguintes. Significa que o trabalhador nunca vai poder terférias programadas, vai estar sempre devendo. Por que ostrabalhadores têm que pagar o ônus de uma crise sobre a qualnão têm nenhuma responsabilidade?

ABr – Em um dos artigos da última ediçãode Adeus Trabalho?, o senhor afirma que “a crise penetra nocentro dos países capitalistas, numa intensidade nunca vistaanteriormente”. A atual crise é pior que de 1929?

Antunes – A crise atual é diferente, e seu espectro éde mais intensidade. A crise de 1929 ainda foi herança de umperíodo cíclico: ciclo de expansão e ciclo decrise. Há pensadores muito qualificados que dizem que desde o fim dos anos 1960 entramos em uma crise estrutural de longa duração,na qual não teremos mais aqueles ciclos. É uma longafase depressiva, onde não há mais como equacionardentro da lógica do capital a destruiçãoambiental e não tem como atender toda a humanidade que precisatrabalhar para sobreviver. Estamos em um buraco de proporçõesrazoáveis. Isso não quer dizer, no entanto, que estamosno fim do capitalismo.

ABr – O senhor diz que o socialismo não morreu.Que projeto a classe trabalhadora pode ter neste cenário?

Antunes – Se há um pensador que ressurge das cinzascom vigor explosivo neste momento é o Karl Marx. Nenhumpensador chegou perto de análise crítica do (livro) OCapital (de 1867). Um texto escrito há 150 anos se mostraatual, ainda que o capitalismo tenha mudado bastante. No ManifestoComunista (de Karl Marx e Frederich Engels, de 1848) já estavaescrito que o capitalismo precisa de um mercado global. Assim comonão há capitalismo em um só país nãohá socialismo em um só país. As revoluçõessocialistas do século 20 foram derrotadas, mas àquelesque disseram que o socialismo acabou eu provocaria dizendo que osocialismo não pôde começar. O século 21 é um laboratórioem ebulição.