A pauta ignorada e o desinformado autodidata

24/04/2009 - 8h52

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Dia 18 de abril: repórteres e cinegrafistas de algunsveículos de comunicação privados estavam presentes no local dos acontecimentosantes mesmo que eles acontecessem. Bola de Cristal? Dia 19 de abril: a AgênciaBrasil publicou a matéria Conflito armado entre sem terra e seguranças de fazenda deixa pelomenos sete feridos, dando conta de “Um conflito armado entre trabalhadores sem terra e seguranças daFazenda Espírito Santo”, aparentemente, cumprindo com sua obrigação deregistrar o acontecido. Nada além disso, ou seja, sem ouvir o proprietário daterra que mantém uma milícia armada, sem nomear as vítimas, sem ouvir seusparentes, sem contextualizar os fatos dentro do processo histórico da reformaagrária e sem discutir a responsabilidade do Estado brasileiro na ocupação daAmazônia por grandes grupos econômicos e financeiros e na execução da políticapública da reforma agrária.Dia 20 de abril: a pauta da Empresa Brasil de Comunicação, 48 horas depois de que os fatosocorreram, trazia a notícia sem muito destaque, informando que dois dias antes tinhahavido um confronto entre seguranças da Fazenda Espírito Santo, ligada ao grupoOpportunity, pertencente ao banqueiro Daniel Dantas, localizada em Eldorado dosCarajás no Pará, e camponeses sem terra ligados ao MST. Informava ainda quepossivelmente os sem terra estivessem bloqueando a estrada de acesso à fazenda.É na pauta que tem início todo o processo de produção danotícia. Na pauta diária da EBC osassuntos são priorizados em ordem decrescente, ou seja, o assunto pautado emprimeiro lugar é tido como o mais importante, o item dois é o segundo emimportância e assim sucessivamente. Essa é uma decisão editorial tomada em umareunião da qual participam todos os chefes de veículos e os responsáveis pelojornalismo da empresa.  Na pauta   definem-se também quais são as possíveisabordagens de um assunto, quem deve ser ouvido, qual o contexto histórico, ondeencontrar informações, dados, estudos  eestatísticas e a forma que as matérias devem ser apresentadas de acordo com asespecificidades da linguagem do veículo a que se destinam (texto, áudio, imagemetc.).A partir da pauta, toda uma equipe de profissionais semobiliza para pesquisar e apurar os fatos, recuperar o processo histórico,localizar as fontes, marcar entrevistas e realizá-las, redigir as matérias,editá-las, checar tudo e finalmente publicá-las. Isso é feito com base noreferencial fornecido pela pauta que norteia todo o trabalho, garantindo-sedessa maneira a linha editorial determinada lá no início do processo, nareunião de pauta. A qualidade e a profundidade das discussões que se travam aliserão decisivas para a qualidade e profundidade da informação que chegará aocidadão.No caso em questão, a orientação editorial dos responsáveispelo jornalismo era para que a reportagem acompanhasse e monitorasse a situaçãono Pará.Enquanto isso, os leitores Osvaldo da Costa e  Herbert Brüggemann enviaram para estaOuvidoria uma mensagem manifestando sua indignação  com o que classificaram de “um ataque à consciência dos telespectadores”,referindo-se à cobertura dada pelo programa Fantásticoda Rede Globo ao episódio.  Herbert diz: “Eu vi amatéria dessa famigerada emissora, e também fiquei perplexo com a cobertura. Épor isso que minha esposa fala que eu não deveria ver esses jornais, porque meirritam. Mas é necessário que vejamos, para justamente podermos divulgar essasbarbaridades. Esses jornais desinformam mesmo. Lembrei de algo que vi em umarevista. Em uma pesquisa, o entrevistador perguntou ao cidadão qual o jornal deTV que ele mais gostava. E o sujeito respondeu: Nenhum,  sou desinformado autodidata.”Já Osvaldo vai mais fundo. Sob o título: “Rede Globo e Daniel Dantas: um caso depolícia” ele afirma: “Não se trata decobertura dos fatos, se trata de um ataque à consciência dos telespectadores.Na noite de 19 de abril o programa de variedadesFantástico, da Rede Globo, apresentou uma suposta reportagem sobre um conflitoocorrido numa fazenda do Pará, envolvendo "seguranças" (o termoprocura revestir de legalidade a ação de jagunços) da fazenda do banqueiroDaniel Dantas e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST). Só pude descobrir que se tratava de propriedade do banqueiro processado porinúmeros crimes e protegido por Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal,após ter vasculhado algumas páginas na internet embusca de meu direito de escutar o outro lado da notícia, a versão dos fatos dossem terra, pois na reportagem eles aparecem como invasores, baderneiros,seqüestradores da equipe de reportagem da Rede Globo, assassinos em potencial,e ao final, corpos de militantes aparecem baleados no chão, agonizantes,sangrando, sem nenhum socorro, e a reportagem não fornece nenhuma informaçãosobre o estado de saúde das vítimas. Sem ter acesso às causas do conflito, e a nenhum dosdois lados envolvidos, o telespectador se vê impelido a acompanhar o julgamentoque o narrador da reportagem e a câmera nos sugere. No caso, tendemos a concordarcom a punição dada aos desordeiros: “que sangrem até morrer!”, ou “quem mandoubrincar com fogo?!” podem ser algumas das bárbaras conclusões inevitáveis a queos telespectadores serão levados à chegar. ... Seguem questionamentos àreportagem, com o intuito de expor o arbítrio de classe da Rede Globo, para queesse texto possa endossar a documentação que denuncia a irregularidade dasemissoras privadas e protesta contra a manutenção de concessões públicas paraempresas que não cumprem com as leis do setor:1º) Por que a Globoprotege Dantas? Por que a emissora não tornou evidente que as terras pleiteadaspelo MST para Reforma Agrária são de Daniel Dantas? Qual o grau de envolvimentoda emissora nas manobras ilícitas do banqueiro? 2°) Por que o MST não foi escutado na reportagem? Quais os motivos do movimentopara decidir ocupar aquela fazenda? 3°) As imagens contradizem os fatos. A câmera da equipe de reportagem aparecesempre posicionada atrás dos seguranças da fazenda, e nunca à frente dossem-terra. E vejam informação da Agência Estado: “ A polícia de Redenção informou a Puty[Cláudio Puty, chefe da Casa Civil do governo do Pará] não terhavido cárcere privado de jornalistas e funcionários da Agropecuária SantaBárbara, pertencente ao grupo do banqueiro Daniel Dantas e que tem 13 fazendasinvadidas e ocupadas pelo MST. Os jornalistas, porém, negam a versão da políciae garantem que ficaram no meio do tiroteio entre o MST e seguranças da fazenda”( http://br.noticias.yahoo.com/s/19042009/25/manchetes-pm-desarmar-mst-segurancas-no.html). Quer dizer, nem mesmo os grandes jornais conservadores estão fazendo corocom a cobertura extremamente parcial da Rede Globo. 4°) Ocorreu um tiroteio mesmo? Só aparecem os jagunços da fazenda atirando, ecom armas de calibre pesado. E a imagem dos feridos mostra os sem terrabaleados e um jagunço de pé, com pano na cabeça, possivelmente contendo sangramentode ferimento não causado por arma de fogo, dado o estado de saúde do homem. 5º) Por que os feridos não são tratados com o mesmo direito à humanidade que asvítimas de classe média da violência urbana? Eles não têm nomes? O queaconteceu com eles? Algum morreu? Quem prestou socorro? Em que hospital estão?Por que essas informações básicas foram omitidas? 6°) Por que mostrar como um troféu a agonia de seres humanos sangrando no chão,sem nenhum socorro?”.A princípio perguntamo-nos por que os telespectadoresrecorreram à Ouvidoria da empresa pública de comunicação para manifestar suaindignação? Mas na própria mensagem dos leitores estava a resposta: “Nós, em nossas casas, consumidores do que atelevisão aberta nos apresenta, não temos direito ao juízo crítico, porque oprotocolo básico das regras do jornalismo não é mais cumprido. Nós somosatacados em nosso direito de receber informações e emitir julgamentos, nóssomos saqueados por emissoras privadas que mobilizam nosso sentimento de medo,ódio e desprezo, para em seguida nos exigir sorrisos com a próxima reportagem.Como um exercício de manutenção da capacidade de reflexão, precisamos nominaresse tipo de ataque fascista com os termos que ele exige. A ilusão de verdadedeve ser desmontada, a suposta neutralidade deve ser desmascarada, caso a caso,na medida de nossas forças.”Consideramos essas palavras muito mais que um desabafo. Sãouma grave denúncia contra a maneira como se faz jornalismo em empresasconcessionárias de bens públicos, outorgadas pelos poderes constituídos quedeveriam, por lei, apurar e fiscalizar denúncias como essa. Hoje os leitores jáencontram nesta Ouvidoria pública um canal para desaguar suas críticas emanifestar sua opinião contra um modelo de comunicação que começa a mudar, masque ainda tem um longo caminho a percorrer para que se cumpra o que estáescrito em nossa Constituição. Assim, talvez um dia chegue a que, em vez de terde optar por ser um desinformado autodidata, o público possa optar por ser umcidadão bem informado pela mídia.   Respondemos aos leitores que entendemos sua indignação, masque não cabe a esta Ouvidoria tratar da cobertura de outros veículos que não osda EBC. As pautas dos dias 21 e 22ignoraram o assunto. Será que a estrada vicinal que dá acesso à fazenda foidesbloqueada? A resposta a essa pergunta da pauta não foi respondida, pois a EBC não enviou repórteres ao localapesar de chegarem ao público inúmeras versões contraditórias do conflito pormeio de outros veículos de comunicação. Ontem, dia 23, o assunto voltou à pauta da EBC, com menor prioridade erecomendando acompanhar e monitorar o Ministério da Justiça, a CNA(Confederação Nacional da Agricultura) e a PGR (Procuradoria Geral daRepública). Ou seja, a partir de Brasília, sob o ponto de vista do governofederal, que enviará trinta homens à região, e dos ruralistas da CNA que pedemintervenção federal no estado do Pará para que se cumpra 111 mandados dereintegração de posse a favor dos fazendeiros, provavelmente, provocando maisconflitos. Dentre as diversas versões circulando na mídia algumas dãoconta de que no meio, entre os sem terra e a milícia armada estão “jornalistas”levados ao local em avião da fazenda Espírito Santo, pela assessoria deimprensa do banqueiro Daniel Dantas, sob encomenda, para registrarem oconfronto.Mas na pauta da EBCnão há indicação para que se esclareçam os fatos e suas versões, para que seapure o estado de saúde das vítimas baleadas, para que se faça um balanço sobrea reforma agrária e a situação fundiária na Amazônia.  A pauta também não manifestou nenhumaintenção de enviar repórteres para o local. Se depender da agência pública denotícias parece que o Pará continuará sendo tão distante quanto Gaza ou oAfeganistão onde se cobrem os conflitos de maneira virtual, a partir da visãode outros veículos que têm algum tipo de interesse na questão.    Até a próxima semana.