Planejamento, pesquisa e apuração fazem falta

03/04/2009 - 10h52

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Toda pessoa sonha comuma moradia digna. Milhões de famílias brasileiras estão longe disso.Recursosexistem. Deixar a situação como está custa muito mais para toda a sociedade.Vamos, portanto, tornar esse sonho realidade.Luiz Inácio Lula daSilva, conselheiro do Instituto Cidadania, na apresentação do ProjetoMoradia, em maio de 2000 (*). A cobertura jornalística de um programa habitacionalcomo o que o governo lançou na semana passada requer planejamento para que nãose divulgue apenas o que as autoridades dirão, mas, sim, o que o público quer eprecisa saber. A falta de aprofundamento da Agência Brasil em questõespráticas e objetivas fez com que diversos leitores escrevessem para estaOuvidoria tentando tirar dúvidas sobre a sua operacionalização. Como asinformações solicitadas não constavam das matérias, sugerimos aos leitores quese dirigissem à Caixa Econômica Federal para esclarece-los. As fontes governamentais (55%), juntamente comempresários e políticos (35%) dão o tom da cobertura da ABr, somando 90%das fontes ouvidas. Assim, o ponto de vista dos interesses do poder político eeconômico constituem quase a totalidade do olhar hegemônico sobre o programahabitacional do governo. Será que o cidadão sente seus interesses contempladosnessa forma de abordar e repercutir o assunto? Onde mais o cidadão poderiaesperar encontrar uma visão diferenciada? Não seria em sua agência pública denotícias? No entanto, foi em portaisde notícias como o UOL que o cidadão conseguiu respostas para muitas de suasdúvidas. Eles coletaram e selecionaram as 12 perguntas mais freqüentes dosinternautas e levaram-nas para a Secretária de Nacional de Habitação doMinistério das Cidades responder. Assim, no ultimo domingo prestaram um serviçopublico por atacado publicando em matéria especial multimídia, com direitoinclusive à imagem e áudio, as perguntas e as respostas.   Na cobertura da ABr sobreo assunto foram publicadas 61 matérias entre os dias 6 de março e 1o.de abril. Nelas, foram ouvidas 88 fontes: 48 do governo, 14 do empresariado, 14políticos, nove da sociedade civil organizada, dois especialistas e um cidadão. O público-alvo de todapolítica pública é o cidadão, mas ele foi ouvido em apenas uma matéria nacobertura da Abr. A pesquisa é outroprocedimento fundamental para que a reportagem entenda do que estáfalando. È graças a ela que se apura o processo histórico em curso, suasorigens, a realidade que permeia o problema e as possíveis soluções, outentativas de, ao longo do tempo.  Ao sepreparar para as entrevistas o repórter precisa saber quais são as possíveisperguntas que o cidadão faria à autoridade para que as notícias contenham asrespostas que interessam ao leitor. Para cumprir sua função social de verificarse aquilo que foi concebido pelo governo está de acordo com as necessidadesdaqueles a quem a política se destina é necessário, antes de tudo, ouvi-los.Nas matérias, a definiçãodo público-alvo da política habitacional esta confusa. Em uma matéria aministra Dilma Rousseff fala que o programa se destina a municípios com mais de50 mil habitantes, e, em outra, o presidente Lula fala que se destina a moradoresde cidades com mais de 100 mil habitantes. Esta falta de precisão nos númerospode incluir ou excluir alguns milhões de brasileiros do acesso à políticapública. Uma apuração mais detalhada nas fontes citadas poderia certamenteresolver o impasse antes que ele chegasse ao leitor.Ao analisar a questão dodéficit habitacional as matérias citam a falta de 8 milhões de moradias mas nãofazem menção às  6,7 milhões de moradiasdesocupadas, fechadas, que temos no país e que, em grande parte, estão aserviço da especulação imobiliária e da concentração de capital de seusproprietários. Será que o plano do governo prevê algum destino para essesimóveis? Seria possível reciclá-los ou reutilizá-los de maneira coletiva?Informar sobre possíveisinconsistências no planejamento governamental pode ser outra funçãoindispensável que o cidadão espera da mídia. Mas, para se chegar a elasnovamente, é preciso que o jornalismo trabalhe com planejamento, pesquisa eapuração. Ouvir especialistas sobre o assunto pode ser uma maneira de seavaliar a eficácia e a eficiência do que se pretende implantar e verificar se umprograma atingirá seus objetivos e cumprirá suas metas. Nas 61 matérias da AgênciaBrasil apenas dois especialistas foram ouvidos. Se 90% do déficithabitacional devem-se à falta de moradia para pessoas com renda entre zero etrês salários mínimos, por que essa faixa de renda será contemplada com apenas40% das futuras casas e apartamentos? Por que pessoas que ganham entre três eseis salários mínimos,  responsáveis porapenas 6% do déficit habitacional, serão contempladas com outros 40% dasfuturas moradias?  Essas são algumas das perguntas que as matérias não respondem, e que talvez os especialistaspudessem explicar.A matéria Movimento cobra aprovação de PEC daMoradia, publicada no dia do lançamento do plano (25), não explica que PEC(proposta de emenda à Constituição) é essa ou do que ela trata. Apenas dá aentender que está parada no Congresso Nacional. Na mesma matéria, orepresentante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Miguel Lobato, falaque “é preciso recursos para reduzir também o déficit habitacionalqualitativo”. A que se referiu a fonte? Será à qualidade das 10 milhões demoradias indignas que superlotam as favelas? A resposta a essa pergunta oleitor também não encontrará nas matérias da ABr, que não divulgou acarta política publicada pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), setedias antes do lançamento do plano do governo, intitulada A Reforma Urbanae o Pacote Habitacional, assinada por 25 entidades da sociedade civildedicadas ao assunto. Ouvir o que essas entidades têm a dizer seria uma outraforma de contextualizar o fato (político) do lançamento do programagovernamental dentro da realidade habitacional brasileira. Afinal, há anos elasse dedicam a estudar o problema e a reivindicar o direito à moradia digna. Umadas possíveis soluções apresentadas por esses movimentos é a construção emregime de mutirão por cooperativas habitacionais. A experiência funcionou emdiversas cidades inclusive com o emprego de materiais que causam pouco ounenhum impacto ambiental – são construções que respeitam o meio ambiente. Seráque o plano do governo prevê parcerias com essas cooperativas ou só comempreiteiras e construtoras?   Será que o plano contemplaalguma garantia de emprego para os trabalhadores do setor da construção civil  e da industria de materiais de construçãoque vão ficar com a maior parte dos R$34 bilhões que serão investidos pelogoverno? As matérias também não informam.Para avaliar a real dimensão de uma política públicaé fundamental que o cidadão conheça quais são seus direitos e deveres previstosna legislação sobre o assunto. Para informar sobre eles o papel da mídia é devital importância. O Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/01, por exemplo,regula o capítulo da Política Urbana da Constituição Federal, definindo asdiretrizes para a política e o desenvolvimento urbano e regulamenta o direito àscidades sustentáveis e à sua gestão democrática. O estatuto também contémconceitos como o da função social da propriedade que é um dos  princípios fundamentais da ConstituiçãoBrasileira (Art. 5º, XXIII; 170, III; e 182, Parágrafo 2º). Outro conceitofundamental é o do direito à moradia adequada: direito humano, respeitando odireito de viver com segurança, paz e dignidade contando com: a segurançajurídica da posse; a disponibilidade de serviços e infra-estrutura; custoacessível da moradia, que significa gastos com a moradia proporcionais com àrenda, habitabilidade, acessibilidade, localização, adequação cultural. Mas, nasmatérias da ABr, o leitor não encontra nenhuma referência a seusdireitos. As matérias não exploramaspectos práticos quanto à execução do programa que, segundo o governo, ficaráa cargo da Caixa Econômica Federal. Agentes financeiros geralmente reduzempolíticas publicas a meros negócios por meio de filtros cadastrais que excluema todos aqueles que os gerentes consideram não lucrativos para as instituiçõesfinanceiras – é aplicada a lógica privada de mercado por agentes públicos.Freqüentemente, nesses casos, vemos prevalecer o interesse mercantil sobre o interessepúblico e o direito da cidadania. Em artigo publicado no jornal Le MondeDiplomatique de fevereiro os arquitetos e urbanistas Raquel Rolnik e KazuoNakano lembram: “Construir moradias é produzir cidades. É essencial discutiros impactos dos empreendimentos imobiliários nas condições de vida, nainstituição ou destituição de direitos sociais, no ordenamento territorial e nofuncionamento das cidades. No Brasil, as cidades são marcadas por profundasexpressões de desigualdades e exclusões socioterritoriais, e o principalsentido dos processos de produção de moradias é engendrar cidades e urbanidadespara garantir o bem-estar e o desenvolvimento das pessoas. Estamos diante de uma bela oportunidade.Não vamos cair nas armadilhas sedutoras dos números: 1 milhão de moradias? Sim,mas onde, como e para quem?Talvezseja possível a agência pública de comunicação fornecer subsídios para essa discussão desde planeje sua cobertura, pesquise mais profundamente sobre o assunto e faça uma apuração rigorosa dos fatos. Atéa próxima semana.  (*)Disponível em: http://www.pt-pr.org.br/documentos/pt_pag/PAG%202004/URBANISMO/Projeto%20Moradia.PDF