Assuntos locais e pautas nacionais

20/03/2009 - 7h29

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Geralmente observa-se uma enorme “coincidência” entre osassuntos que estão na pauta diária da mídia e na “agenda do dia” do poderpolítico ou econômico. Ao influir de maneira privilegiada  naquilo que deve ser notícia, o poderdetermina o que quer que a sociedade saiba, e as informações advindas desse processo trazem no seu bojo ofiltro ideológico, no sentido das idéias e valores de quem as concebeu. Ouseja, não são informações inócuas, imparciais, mas ao contrário, refletemjustamente o olhar da instituição ou da autoridade sobre os assuntos nos quaistêm algum tipo de interesse que estejam em discussão.Como a maioria das redações se pauta pelos mesmos releases, boa parte das notícias diáriasem diferentes veículos de comunicação praticamente se repetem. São assuntosabordados da mesma forma em matérias que baseiam suas informações nas mesmasfontes e com o mesmo enfoque sobre um determinado assunto. É o que chamamos de “pasteurização danotícia” como se todos os fatos passassem por uma única máquina que padronizaráo olhar da mídia sobre eles, eliminando, ou evitando olhares diferentes, queinformações imprevistas cheguem ao público. Raramente o repórter ou o editor conseguem apresentar um olhardiferenciado ou uma abordagem inédita, pois a notícia tem o que podemos chamar de um vício de origem. Mas, se a mídia em geral está presa a uma agenda do poderque determina o que é notícia, uma empresa pública de comunicação não está,pois ela, e só ela, tem condições e a missão de buscar uma agenda própria – aagenda da cidadania.  Diferentemente da agenda dos veículosde empresas comerciais de comunicação que, se não pautarem o que “todos queremsaber”, perderão anunciantes, a agenda pública deve se pautar por aquilo que oscidadãos precisam saber e não encontram em nenhum outro lugar. Sobre isso alguns leitores têm escrito para esta Ouvidoria.Tânia Mara Saldanha perguntou em sua mensagem por que a Agência Brasil vemdando destaque aos assuntos relacionados ao governo do Distrito Federal eafirmou: “a Agência é do Brasil e não do DF”, referindo-se a uma fotopublicada na primeira página da ABronde aparece o secretário do Trabalho do governo do Distrito Federal ementrevista coletiva para a divulgação da Pesquisa Mensal de Emprego eDesemprego do Dieese.  Apesar de ser uma foto “muitoespecífica” como disse a leitora, ela ilustrava um assunto de abrangêncianacional que é a pesquisa do Dieese com informações sobre o emprego e odesemprego em diversas capitais.  A Agência explicou que excepcionalmentefoi usada uma foto local, mas que a prioridade é publicar matérias e fotos quetenham foco nacional.Como faz parte do trabalho da Ouvidoria identificar, apartir de demandas específicas dos leitores, o que elas possam conter depossíveis desvios de procedimentos e condutas, verificamos se estaria ocorrendoalgum tipo de favorecimento ou de privilégio às notícias de um estado emrelação a outro, ou ainda de notícias locais em detrimento de notíciasnacionais na pauta da Agência Brasil.   Neste sentido, apuramos que esses casos são exceção e não aregra. Dentre as exceções, há algumas notícias que tratam de políticas públicasde governos como de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Talvez issose justifique pelo fato de a Agênciamanter sucursais nessas capitais e ter sua sede em Brasília, o que levaria auma maior aproximação dos fatos ocorridos nesses locais bem como de suarepercussão. Mas o fato de eventualmente se pautar por assuntos de governoslocais não leva à conclusão deque se trate de uma tendência e sim muito mais de pequenos desvios da regra depautar apenas assuntos ditos “nacionais”.Mas mesmo em uma pauta que trate de um assunto local, osleitores esperam que a ABr consigamostrar um olhar diferenciado que fuja do óbvio comumente apresentado pelamídia comercial. A leitora e jornalista Juçara Braga, vice-presidente daAssociação de Moradores de Santa Teresa (Amast) foi uma das fontes ouvidas namatéria Turistas e moradores disputambondinhos de Santa Teresa, publicada em 25 de fevereiro. Ela mandou umamensagem pedindo reparações naquilo que classificou como “informações equívocadas”. Segundo ela: “Eu,efetivamente, disse que Santa Teresa sempre dividiu os bondes,democraticamente, com os visitantes, mas, em momento algum eu reconheci que acirculação de moradores fica prejudicada por causa dos turistas, já que hápoucos bondes em circulação. Eu disse sim que os usuários deste meio detransporte sofrem com a precariedade do serviço devido à falta de bondes, queestão parados para reforma sem previsão de retorno.” Continuando em sua mensagem a leitora informa que: “Eu também não disse que os turistas sãobem-vindos ‘porque movimentam o roteiro gastronômico e cultural’. Eu disse queos turistas são bem-vindos, sim, mas não por esse motivo e também não em massa.A posição da Amast neste sentido é bastante clara: ‘Repudiamos o turismo demassa e a idéia estapafúrdia da gestão municipal anterior de transformar obairro em roteiro gastronômico, pois nossas ruas e ladeiras são íngremes eestreitas e não suportariam um turismo de massa, predatório, a exemplo do quejá vem sofrendo outros destinos, como, por exemplo, a Ilha Grande (RJ). Aperspectiva é ruim para o bairro, pois o excesso de circulação de veículos podecausar danos estruturais ao seu casario, além de prejudicar a tranquilidade dosmoradores. ’ Santa Teresa está em Area de Proteção Ambiental (APA), que estamosatuando para regulamentar, e prevê uma série de regras para usos do bairro, taiscomo localização e limitação do comércio. Um bairro que integra uma APA e oturismo de massa são incompatíveis, pois este último agride, não preserva,destrói e não acrescenta.”A Agência Brasil respondeu que: “A Agência Brasil consideraimprocedente os questionamentos feitos pela leitora e vice-presidente daAssociação dos de moradores do bairro Santa Tereza,  Juçara Braga. 1) A jornalista Isabel Vieira, diferentemente do que aponta aleitora, adotou todos os procedimentos adequados de apuração jornalística. Usouo transporte do bondinho, conversou com vários usuários e registrou a opiniãode dois usuários, Rafael Fernandes e o advogado Teodomiro Almeida. A repórterteve o cuidado de procurar representantes da  Associação dos Moradores, eentrevistou a sua vice-presidente, Juçara Braga, e falou com o secretarioestadual dos Transportes, Julio Lopes. Todos os quatros estão com declaraçõesna matéria. Assim, a leitora não pode dizer que a matéria tem apenas umaopinião. A matéria traz opinião de usuários, de representantes da sociedadecivil organizada e de autoridade local.  2) Não temos nenhum reparo afazer nas declarações feita pela leitora e publicadas pela Agência Brasil. Aocontrário do que ela afirma na mensagem enviada a Ouvidoria em que diz: "Eu não disse que osturistas são bem-vindos porque movimentam o roteiro gastronômico ecultural" não existe esta frase em nossa matéria. A gravação com a frasede Juçara Braga está à disposição.”    Ou seja, a partir dos problemas de infra-estrutura de transportesde Santa Teresa, uma fonte deu informações para que se construísse um outroolhar sobre a questão. Poderia ter sido uma abordagem em que a notíciadiscutisse o crescimento econômico a qualquer preço, às expensas da depredação ocasionada por um turismo de massa, emcontraposição ao desenvolvimento econômico sustentável, que respeite ascaracterísticas sócioculturais e ambientais do bairro. Essa contradição entrecrescimento e desenvolvimento é uma discussão que permeia nossa sociedade enada melhor do que exemplos práticos como esse para deles se extrair o caráteruniversal das questões que contemplam.  Principalmente porque o assunto da pauta era a privatizaçãodos bondes conforme consta da matéria: Modelode concessão dos bondes de Santa Teresa sai ainda no primeiro semestre ,publicada dois minutos antes daoutra. Nela, o secretário estadual de Transportes do Rio de Janeiro, JulioLopes, “defende um modelo de concessão,como o aplicado para outros meios de transportes na cidade, com o objetivo de melhoraro serviço”. Mas será que o modelo funcionaria em um sistema de transportecom tantas peculiaridades como o de Santa Teresa? Ou o bairro secular, quepossui o único sistema de bondes em funcionamento na cidade, mereceria umaadministração diferenciada que preserve suas características sócioculturais eambientais, mesmo que o estadotenha que continuar subsidiando o preço da passagem? Quais as implicações daprivatização do sistema? Essa poderia ter sido a discussão por trás da pautaque partindo de um exemplo local daria uma dimensão nacional ao assunto. Hoje vivemos um momento singular em que o mesmo Estado quedeveria ser mínimo e não se intrometer nos assuntos de mercado, segundo osparadigmas neoliberais, está sendo convocado para salvar, com dinheiro docontribuinte, alguns bancos e empresas que outrora enriqueceram, selocupletaram, concentrando poder e riqueza graças à ausência do Estado.Desconstruir paradigmas como o da privatização, explicar como funcionaram  e como estão presentes no cotidiano de nossaeconomia pode ser uma oportunidade histórica para que a comunicação pública seestabeleça como um diferencial, quer seja discutindo os níveis de emprego querseja discutindo a matriz de transporte de Santa Teresa, a partir dos interessesda cidadania e não a partir dos interesses do poder político e econômico.     Por que os bondes de Santa Teresa são notícia para a ABr? O objetivo dessa pauta seria o de mostrar quais são as outrassoluções possíveis e que talvez estejam sendo ignoradas pelo governo ou apenasinformar que o governo vai privatizar o serviço? Apesar de ser a função de a Agência fornecer informações parapromover o debate sobre o problema mostrando os diversos pontos de vista sobrea questão, em algumas frases a reportagem dá a entender que a decisão já estátomada “Com o preço subsidiado e inúmerosproblemas, o governo não vislumbra outra solução.”No entanto, na leitura das duas matérias aparecem informações que revelamsoluções alternativas à que está sendo tomada pelo Poder Público, mas asmatérias não explicam por que não foram aplicadas. Por exemplo: o que aconteceucom “os R$ 22 milhões destinados peloBanco Mundial (Bird) para a restauração de 14 composições há dois anos”?Por que o banco colocaria esse dinheiro na mão do governo se não fosse pararecuperar um sistema de transportes “tombadopelo patrimônio histórico”? Quais são os argumentos da sociedade civil que“obteve uma liminar obrigando a devoluçãodos bondes em 2008”? Por que o estado não cumpriu a liminar? Em que sebaseou a decisão da Justiça? Qual o impacto sóciocultural da privatização desse“cartão postal” “[bondinhos]que já transportaram aintelectualidade e boa parte da elite carioca nas décadas de 1930 e 1940”?Qual a posição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(Iphan) sobre a privatização? Quantos profissionais trabalham “no sistema de bondes, que incluiu também aconservação dos trilhos, das garagens, oficinas e da rede aérea deeletricidade.”? Quanto vale o conhecimento desses profissionais sobre umatecnologia secular que está em extinção? E a relação afetiva com seu trabalho?Será que os custos indiretos e imateriais foram computados pelo governo quandoo secretário de Transportesalega “que o preço da passagem (R$ 0,60)não é suficiente para cobrir todas as despesas. O valor está defasado dequalquer realidade de transporte”? Os usuários do transporte públicoconcordam com a afirmação do secretáriode que “ o modelo de concessão, como oaplicado para outros meios de transportes na cidade, com o objetivo de melhoraro serviço  realmente o melhorou oué somente um objetivo? Mais importante do que saber o que é notícia e reportar ofato em si, seja ele local ou nacional, talvez seja explicar porque tal fatoaconteceu. Assim, mesmo que os assuntos cobertos pela ABr sejam comuns aos outros veículos de comunicação, o públicoespera que ela consiga ir além dos fatos mostrando porque eles aconteceram,quais foram as suas origens, o que determinou que eles ocorressem de umadeterminada maneira e não de outra, quais são os processos históricos em cursoe suas possíveis conseqüências, quem ainda não foi ouvido e precisa ser paraque se estabeleça o debate democrático no espaço público de comunicação.      Até a próxima semana.