Brasil deveria fazer consultas públicas para definir grandes temas, diz Emir Sader

16/03/2009 - 7h33

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o sociólogo Emir Sader está lançando o livro A Nova Toupeira: os Caminhos da Esquerda Latino-Americana (Editora Boitempo), no qual procura entender em que medida o neoliberalismo permanece hegemônico na América Latina nesses dias de crise econômica mundial. A hipótese do autor é de que a América Latina, que já foi um “paraíso neoliberal” nos anos 1990, tornou-se um “oásis antineoliberal” em anos recentes com os governos de Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia). Em entrevista à Agência Brasil, Sader expõe seu ponto de vista sobre crise econômica, protecionismo, as relações Sul – Norte (em especial, com os Estados Unidos de Barack Obama). Internamente, ele aponta para a melhoria da desigualdade (que ainda persiste) e da necessidade de se regular melhor o capital financeiro, o poder dos grandes meios de comunicação privados e o sistema representativo parlamentar. Para o futuro, Sader acredita que o Brasil poderia seguir o exemplo de outros países latino-americanos e realizar consultas populares em torno de temas importantes como a política econômica. A seguir, os principais trechos da entrevista:Agência Brasil: O chamado neoliberalismo morreu no continente sul-americano?Emir Sader: Não morreu, mas é a região onde ele tem o questionamento mais forte, seja de políticas que têm aberta dinâmica de ruptura de modelo, seja naquelas que têm enfrentamento com governos que foram eleitos com rejeição dos programas neoliberais. Mas o neoliberalismo é um fenômeno mundial, dificilmente ele pode ser revertido sem ser por um movimento que tenha abrangência global. Ele está ferido gravemente.ABr: Que expectativas o continente deve ter quanto ao desdobramento da atual crise econômica, que é atribuída ao modelo neoliberal?Sader: Em primeiro lugar, um enfraquecimento maior do modelo e, portanto, maiores possibilidades de construir governos pós-liberais. Em segundo lugar, um enfraquecimento da hegemonia norte-americana e um avanço maior na constituição de um mundo multipolar. Agora, vai passar pelos efeitos graves de uma crise que foi gestada no centro do capitalismo, em que os países que estão em processo de integração estão em melhores condições de resistir, mas que não deixam de ser vítimas dessa crise.ABr: O governo do Brasil rompeu com esse modelo neoliberal?Sader: Não, o governo brasileiro é um governo contraditório. É um governo que herdou um modelo e o manteve. A partir do terceiro ano de governo, Lula fez readequações importantes, de tal maneira que as políticas sociais são decorrência das margens criadas nas readequações da política econômica. Tem gente como [a economista] Maria Conceição Tavares que diz que “a política financeira é a mesma, e a política econômica é outra”, tanto assim que é uma política que botou o tema do desenvolvimento no centro quando ele tinha sido complementarmente deslocado pelo governo Fernando Henrique pela idéia de estabilidade. Hoje, há um conflito, uma tensão entre as as duas coisas, é um governo contraditório e a política econômica é onde mais se espelha isso. É um governo de transição para a ruptura do modelo, mas não se pode dizer que ele tenha rompido com o modelo. A própria independência de fato do Banco Central é uma resultante institucional da hegemonia do capital financeiro. Dois grandes temas ainda não foram suficientemente abalados: um é a hegemonia do capital financeiro sob sua forma especulativa e outro é a ditadura da mídia privada. Dois temas que têm que ser enfrentados no futuro para o Brasil ser um país socialmente democrático.ABr: Há condições para que, no final de mandato, essas duas hegemonias sejam trincadas?Sader: Com certeza, pode-se avançar nessa direção. O apoio que o governo tem (mesmo com oposição frontal e esmagadora da mídia) demonstra que há condições políticas para se avançar nessa direção. A crise internacional tem feito com que seja obrigatório diminuir o papel dos bancos e do capital financeiro. Existem condições para preparar uma transição que rompa com essas características, esses dois elementos que são graves na construção de uma democracia social e política.ABr: A ferida que se fez no modelo neoliberal vai continuar aberta independentemente do resultado das eleições presidenciais do próximo ano?Sader: Com certeza não é mais possível voltar a pregar um programa, como o do governo Fernando Henrique, com os temas das privatizações, do Estado mínimo. Os setores de direita não vão poder fazer uma campanha como o [Geraldo] Alckmin fez há dois anos. Esse tema está colocado: o Estado não é um problema, o Estado faz parte da solução, esse tema vai perdurar. É um dilema: ou o Brasil consolida o caminho que começou a trilhar ou vai ter um retrocesso forte com a retomada da equipe tradicional que governou o Brasil por quase dez anos.ABr: Olhando para o restante da América Latina, as experiências de plebiscito e consulta popular direta são um modelo de democracia que veio para ficar? Que possibilidade há de se fazer essas consultas em um país de dimensões continentais como o Brasil?Sader: O Congresso [Nacional] não é representativo da distribuição da população brasileira, até pelo limite que coloca para a representação dos estados. Não é a representação dos paulistas que fica prejudicada, mas a representação dos nordestinos que vivem em São Paulo, por exemplo. O peso da [Região] Nordeste continua a ser desproporcional. Agora, isso não vai ser reformado pelo Congresso, que é eleito por essa forma deslegitimada, ele mesmo não vai se reformar. É um mecanismo vicioso pedir a ele que reconheça que tem uma representação viciada. Esse é um tema importante que tem que ser reformado pelo mecanismo da consulta popular. Igualmente a reforma tributária, uma reforma que faça com que quem tem mais pague mais. Acontece que as elites representadas no Congresso são condicionadas pelo grande capital, pelo grande empresariado, que o que quer é pagar menos imposto. Então, são mecanismos que têm que ser desbloqueados com a participação máxima da população.ABr: A seu ver, portanto, seria uma boa idéia ter um plebiscito sobre a reforma tributária?Sader: Sobre vários temas que bloqueiam o desenvolvimento do Brasil, inclusive sobre os direitos que a mídia privada acha que tem no Brasil. Eles [os proprietários dos grandes meios de comunicação] acham que representam a liberdade de opinião, no entanto, eles representam algumas famílias que de uma maneira hereditária vão passando a propriedade de pai para filho e não são democráticos nem internamente. Quem são eles para dizer quem é democrático e quem não é? Mas se apropriam de canais de formação da opinião pública. Cada vez que vêm as eleições eles perdem, mas no cotidiano são eles que estão dando a pauta do que que é importante no Brasil, dos temas essenciais, do que deve ser discutido, das óticas. Falseiam uma formação democrática da opinião pública brasileira.ABr: Mas, para fazer isso, o Congresso deveria determinar que ocorresse a consulta pública. Segundo o senhor, não existe esse espaço.Sader: É um mecanismo ambicioso, tem que ser da iniciativa do presidente da República, coisa dessa ordem, que quase que imponha ao Congresso. Porque o Congresso é o principal beneficiário dessa representação deformada. Houve um momento (antes de o Lula ganhar) que o PT chegou a ter tantos votos quanto o PFL [atual Democratas] e elegeu muitíssimo menos parlamentares em função dessa representação deformada. Veja quantos votos são necessários para eleger um parlamentar em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro e quanto é necessário para eleger nos pequenos estados. Isso é um vício, parlamento tem que ser uma representação direta da quantidade de eleitores ABr: Além dessa reforma da representação política, da reforma tributária e da reforma da mídia, que outros temas mereceriam ter o escrutínio direto da população?Sader: Eu acho que o modelo econômico, incluindo temas do tipo segurança alimentar, economia familiar, transgênicos. São temas que comprometem o futuro do país e não podem ser definidos por governos contingentes.ABr: Em conversa que terá com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o presidente Lula deverá tratar da questão do protecionismo. O senhor avalia que teremos um mundo comercialmente mais aberto ou há tendência de que as economias se fechem mais ainda?Sader: Enquanto as decisões estiverem girando em torno deles [dos países ricos] - mesmo o G 20, com a participação dos países periféricos, é um espaço comandado por eles - certamente eles adotarão o grau de protecionismo que lhes convenha, o que normalmente tem tendido a favorecer a criação de empregos nacionais. Eu acho que o tema central não é evitar o protecionismo deles, mas fazer projetos protecionistas em nível regional, o Mercosul se proteger, a Unasul (União das Nações Sul-Americanas), o sul do mundo se proteger para disputar com eles. Eles têm o poder de definir de e colocar em prática a coisa. Nós temos que ter um poder muito maior para disputar a hegemonia com eles. Não é simplesmente retomar os mecanismos de livre comércio. No livre comércio, quem tem mais poder é quem mais ganha. O que se trata é estabelecer espaços alternativos, representamos a maioria da humanidade e devemos criar meios para proteger no sul do mundo as grandes vítimas da globalização.ABr: No seu livro, o senhor avalia que a Aliança do Livre Comércio das Américas (a Alca) é um assunto encerrado. O senhor acredita que o mesmo deverá acontecer com a Rodada Doha?Sader: Tudo indica que vai ser enterrada, eu não sei o que vai acontecer a partir da crise. Com as medidas protecionistas no centro do capitalismo não parece que vá haver perspectiva favorável.ABr: A Presidência de Barack Obama muda a interlocução dos Estados Unidos com os países latino-americanos?Sader: Está para se ver ainda. Trinidad Tobago [a 5ª Cúpula das Américas, prevista para os dias 17, 18 e 19 de abril, em Puerto España] vai demonstrar um pouco isso: qual é o caráter de estadista que tem o Barack Obama. Neste caso, especialmente, as normalizações das relações [diplomáticas] com Cuba. Se ele vai a Trinidad Tobago, ele sabe que vai ser tipo “good morning e Cuba”. É um tema que o continente unanimemente apresentou a ele como algo que deve se normalizar. Aparentemente, as concessões que está fazendo são pequenas, são de detalhes e não de normalização de relações, mas pelo menos o tom muda, não é mais um tom prepotente, é um tom de diálogo ainda com resquícios. As referências em relação à Venezuela e à Bolívia, no entanto, são muito negativas, são ranços que sobraram do governo Bush, é uma coisa por se ver.ABr: No livro, o senhor trata da situação política, econômica e social dos países latino-americanos. Apesar de mudanças recentes ainda mantemos muita desigualdade por aqui, não?Sader: O Brasil nunca melhorou na redução da desigualdade em tempos de democracia, ditadura, expansão da economia ou recessão. O governo Lula é o primeiro em que o ponteiro da desigualdade melhorou, ainda pouco mas melhorou. O fato de a chamada classe C ser maioria no país não significa quer estamos em um país de classe média, mas que setores significativos do país passaram a ter mobilidade social ascendente. Nunca se fez absolutamente nada significativo para melhorar a situação do povo brasileiro. ABr: O oásis antineoliberal” que o senhor aponta no seu livro tende a permanecer na paisagem da América Latina ou pode desaparecer?Sader: Essa é a esperança da direita. [A revista britânica, especializada em economia] The Economist aponta que a agenda política vai ser de recessão, ajuste fiscal, violência. É preciso ver, um dos sintomas vai ser o resultado da eleição no último domingo em El Salvador, este ano no Uruguai e ano que vem no Brasil.