A verdade mais além de Catanduva

13/03/2009 - 9h27

Paulo Machado
Ouvidor Adjunto da EBC
Brasília - Na matéria ONG defende discussão maisampla sobre pedofilia em município paulista, publicada em 3 de março, Waldemar Boff, representante do Centrode Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (RJ) e da organização não-governamentalÁgua Doce Serviços Populares, umadas fontes ouvidas pela reportagem, dava a dica sobre a abordagem que a Agência Brasil poderia dar ao caso: “os casos de pedofilia em Catanduva não podemser vistos apenas como violação dos direitos humanos, mas devem trazer a tonauma discussão sobre o que está por trás desse problema.”Mas a ABr não foi atrás do que “estápor trás desse problema”. A cobertura do caso, que totalizou 11 matériasaté 6 de março, abordou apenas aspectos factuais e policiais como se o ocorridoali fosse um problema circunscrito às relações entre possíveis vítimas,possíveis pedófilos, polícia e Justiça.As matérias não trataram daquestão da “violação dos direitos humanos”e também não conseguiram contextualizar os fatos a partir dos direitos dosenvolvidos, sejam eles vitimas ou suspeitos no decorrer dessa fase inicial dainvestigação. Em um caso desses é normal apolicia levantar hipóteses, conjecturar sobre o que aconteceu para tentarreconstituir os acontecimentos e saber onde deve procurar provas e possíveistestemunhas que esclareçam  o caso e levem aos seus prováveis responsáveis.Durante a investigação levantam-se dúvidas muito mais do que verdades. Defesa eacusação construirão suas respectivas versões dos fatos. Somente após ojulgamento definitivo do caso que uma versão da verdade prevalecerá - seráaquela pela qual a Justiça decidir com base em tudo que foi apurado. Mas quando a imprensa entra no caso,geralmente ainda na primeira fase das investigações, todo esse trâmiteprocessual pode complicar-se ou até mesmo se desvirtuar. O jornalismo tem opoder de legitimar hipóteses transformando-as em verdades, dependendo da maneiracomo aborda versões e interpretações dos fatos. Para o jornalista e pesquisador Nelson Traquina (*): “É importante pensar nos meios decomunicação, em especial, no jornalismo, como agentes formadores dentro dasociedade, capazes de interferir na visão de mundo, na formação de conceitos,na construção de subjetividades. As leituras do mundo que fazemos são mediadaspor diversas instâncias (educação, família, comunidade, igreja, política, etc.), entre elas, o jornalismo, que deve ser compreendido com um campoprodutor de narrativas sobre a realidade. Assim, por exemplo, a realidade nãoexistindo em algum lugar à espera de ser capturada ganha concretude por meiodas narrativas jornalísticas” (*). ParaTraquina, as notícias surgem na conjunção de acontecimentos e textos e podemser definidas como relatos noticiosos, enquanto o acontecimento cria a notícia,a notícia cria o acontecimento.Se o jornalismo não deixarclaro que hipóteses são somente hipóteses, que as versões dos fatos, não são osfatos em si, ele poderá induzir as pessoas a acreditar que um suspeito éculpado antes mesmo que se conclua a fase judicial do processo. Foi quanto a esse risco que o leitor Richard Pedicini  procurou advertir a Agência Brasil em sua mensagem para esta Ouvidoria,dia 3 de março. Segundo ele: As notícias deCatanduva apresentam todos os sintomas de mais um linchamento da imprensa. Seisdos oito acusados não foram reconhecidos pelas vítimas. Mas a notícia, ontem,do 'reconhecimento da mansão' tem sido usada como licença para oabandono completo do cuidado. Neste caso, o reconhecimento se sustenta somente napalavra de um pai - que quer ficar anônimo. No caso da Escola Base, foi um 'advogado da acusação' que queria o conforto do anonimato para lançarsuas mentiras. O pai ainda disse que a filha reconheceu duas casas na mesmarua. Que 'rede' é essa que utilizaria imóveis vizinhos, duplicando osriscos? Não tem sentido. ... É até possível que o borracheiro seja culpado dealgo – ainda assim, ele teria direito à presunção de inocência. Mas não hárigorosamente nada para sustentar a noção de uma 'rede de pedofilia'. A AgênciaBrasil é influente e poderia rapidamente dar uma basta nisso. Um mínimo desenso crítico derrubaria o castelo de cartas. É importante, e urgente.” Ao citar o "reconhecimentoda mansão" o leitor se referiu à matéria (Vítimas depedofilia reconhecerão suspeitos em Catanduva), publicada em 26 de fevereiro.  Richard lembrou de alguns casos semelhantes, como o daEscola Base, em que a mídia teve o mesmo tipo de comportamento “apressado” emapresentar à sociedade versões dos fatos como se fossem verdades absolutas. Nofinal nada ficou comprovado, mas a vida dos acusados restou praticamentedestruída.Em resposta ao leitor, a ABr disse que: “... não há nenhum reparo a fazer sobre acobertura da Agência Brasil no casodas denúncias de abuso sexual de crianças de Catanduva. O leitor e articulistaRichard Pedicini sugere providência que a AgênciaBrasil deveria adotar no caso, o que não podemos fazer por estar emdesacordo com a nossa missão de produzir um jornalismo público isento,imparcial e verdadeiro.Em que medida a ABr estásendo isenta, imparcial e verdadeira ao participar da construção de umacontecimento como esse? Em que medida ela não está construindo uma realidadebaseada apenas em hipóteses, suposições e versões da verdade como se elasfossem a verdade em si?  Para Marcilene Forechi,jornalista e mestre em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo: “A tese da invenção da realidade podeencontrar suporte em algumas reflexões: a primeira é a que dá conta daimpossibilidade de separar a realidade de sua produção, uma vez que as notíciassão peças que ajudam na construção dessa realidade; a segunda é o fato de que alinguagem não é neutra e, por isso, não pode funcionar como transmissora diretade significados.” (**)Um caso desses quando eclodee vem a público é geralmente a  ponta visível do iceberg da formação e da informação sexual de crianças, deadolescentes, e inclusive de adultos, tratados como os vilões da história. Antes mesmo de se tornarem possíveisvítimas de uma suposta rede de pedofilia, esses cidadãos, tanto na qualidade deabusados quanto de abusadores, foram vítimas da falta de informação devidapela sociedade (e a mídia aí incluída) que, dentre outras coisas, não discute asexualidade das crianças e adolescentes com eles próprios. Quais são os efeitosdos preconceitos religiosos que difundem tabus sobre a questão? Qual é aresponsabilidade do Estado que trata a educação sexual nas escolas onde existe,de maneira anatômica? Quais são as conseqüências da ausência ou da ineficáciaou ainda da ineficiência de políticas públicas? Como influi a baixaria a que seassiste nos meios de comunicação? E a exploração gratuita da sensualidadepromovida pela  publicidade que vendecorpos humanos como se fossem garrafas de cerveja? E a industria do entretenimento,que fatura milhões por meio de musicas pornográficas que estimulam coreografiasobscenas e propagam uma noção de sexualidade barata e vulgar?Informações para subsidiaressa discussão é o que se espera da mídia para que ela cumpra sua função socialde ser um espaço público de debate e argumentação em favor do bem comum dasociedade, e mais ainda é o que se espera de uma agência pública de notíciasque tem por missão formar cidadãos críticos e conscientes. A única matéria da ABrque conseguiu começar a mudar o foco da cobertura foi publicada dia 7 de março:Crianças de famílias pobres podem ser alvo mais fácil para pedófilos, dizpsicólogo, ou seja, dez dias e 11 matérias depois que entrou no caso. Nela, o psicólogo AngeloMotti levanta a necessidade de se discutir a sexualidade nas escolas, cita que háuma distorção da sexualidade na mídia e na propaganda nos dias de hoje e lembraque existe “uma cultura de desrespeito à criança.”Crianças e adolescentes sãoamparados por um estatuto legal – Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA,que por sua vez dá origem a um Orçamento da Criança e do Adolescente, o OCA,que contempla mais de quarenta programas dos governos federal, estaduais emunicipais. Quantos desses programas estão presentes em Catanduva, como estãosendo executados, quais suas possíveis falhas ou omissões? Nas matérias da ABr sobre o caso não há menção a eles.Há pelo menos dois ladospara abordar e fiscalizar a execução dessas políticas. Um deles é pelaexecução orçamentária. Quanto foi destinado ao município de cada um dos 40programas e quanto foi executado? Quais são os indicadores, as metas e osobjetivos? Foram cumpridos? A outra forma de fiscalizar é verificar in lococomo essas políticas públicas são implementadas e qual o seu impacto na vida daspessoas. A mídia não só tem condições de fazer esse tipo de investigação como aobrigação de levar a público as informações necessárias para que se estabeleçao debate. A Agência Brasil, ao enviarrepórteres para Catanduva, poderia ter buscado informações para proceder essa fiscalização. Em um recente estudo apresentado pela Agência deNotícias dos Direitos da Infância (Andi), em parceria com o Unicef, intitulado(O Orçamento da Criança na Agenda da Mídia) (***) o papel da mídia é definido daseguinte maneira: “...é importantereconhecer que a mídia pode representar um papel fundamental. Primeiro, porqueela é o meio responsável, por excelência, pela disseminação de informação, alémde possuir poder de influenciar o agendamento do debate público. Segundo,porque é o instrumento por intermédio do qual a sociedade consegue ganhar voz,apresentar demandas, apontar falhas e cobrar respostas. Por esse motivo, osveículos de comunicação podem ser vistos como ferramentas importantes de controlesocial.No estudo constatou-se que, em mais de 3 mil notíciaspublicadas sobre o assunto em 2007, menos de 1% delas mencionou programascomo o de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e dePromoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Quando o pai de uma das possíveis vitimas declarou àreportagem da ABr  que colocou o filho para aprender a arrumarbicicleta e a fazer pipa “para sedistrair”, a Agência poderia terido atrás, por exemplo, de saber como anda a execução do Programa SegundoTempo, no qual a criança encontra na escola atividades esportivas e culturaisapós o término das aulas.  Outraabordagem poderia ter sido verificar como funcionam os conselhos tutelares:quantos existem? Quais são suas reais condições de funcionamento? Onde estãoinstalados? Dispõe de computadores, carro, telefone, material de consumo? Comosão preparados os conselheiros? Têm uma cópia do ECA para consultar e seorientar?    Em outra recente pesquisa feita pela Secretaria Especialdos Direitos Humanos da Presidência da República constatou-se que mais de 70%dos municípios brasileiros que têm mais de 20 mil habitantes com até 17 anosprecisam de mais conselhos tutelares. Das cerca de 3.500 unidades consultadasno país, 24% afirmaram não ter material de consumo para trabalhar, como papel,por exemplo.A verdade sobre o que aconteceu em Catanduva podeestar bem à frente dos olhos da mídia ou a quilômetros de distância dependendoda maneira como se abordam os fatos. Para cumprir sua missão a Agência Brasil tem que decidir com queolhar quer vê-la. Com certeza, os exemplos de como a mídia comercial trataessas questões não foram muito eficientes e o leitor espera encontrar nosveículos de comunicação da EBC umolhar diferenciado, comprometido exclusivamente com o interesse público.   Até a próxima semana. (*)TRAQUINA, Nelson. O Estudo do Jornalismono Século XX. São Leopoldo, RS: Editoria Unisinos, 2001. e  Teorias do Jornalismo. Porque as notíciassão como são. 2ª edição. Volume I. Florianópolis: Insular, 2005.(**) Marcilene Forechi em A Invenção e a Mediação da Realidade - Conferência de encerramento do 4ºSeminário Nacional O Professor e a Leitura do Jornal, no dia 22 dejulho de 2008, na Unicamp (Campinas, SP).(***) Disponível em: http://www.andi.org.br/_pdfs/orcamento_crianca.pdf