Estado compensa desigualdade produzida pelo mercado, diz sociólogo

07/03/2009 - 12h03

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - O discurso doseconomistas e políticos a favor da privatizaçãonos anos 90 afirmava que a intervenção estatalfavoreceu uma elite que “patrimonializou” os resultados docrescimento econômico. Segundo esse ponto de vista, o Brasilfoi o país que mais cresceu no mundo ao longo do Século20, mas, apesar desse crescimento, mudou pouco o quadro social, adesigualdade permaneceu e a renda nacional nunca chegou a serdistribuída.Para JesséSouza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), umdos principais especialistas da atualidade em sociologia weberiana(que tem como base a ação social) e em sociologiabrasileira, o conceito de “patrimonialismo” foi distorcido naacademia e também por aqueles que defendiam a diminuiçãodo Estado na economia nacional. A seguir, trechos deentrevista com o sociólogo:AgênciaBrasil: Podemos dizer que o desenvolvimento do paísocorrido no século passado, tendo o Estado como principalmotor, favoreceu a concentração de renda e a manutençãode quadro social desigual?JesséSouza: É falso falar de mercado e Estado como realidadessubstantivas, como se tivessem volição própria[ato pelo qual a vontade se determina a alguma coisa]. OEstado no Brasil desempenhou vários papéis muitodiferentes, desde o de garantidor de princípios democráticosaté o de uma ditadura. Isso depende sempre da agenda de poderdo ocupante ocasional do aparelho de Estado. Com relaçãoà desigualdade, sempre que houve qualquer benefício aossetores mais despossuídos, essa ajuda partiu sempre do Estadoe nunca do mercado. A função do Estado moderno pareceser precisamente a de garantir um mínimo de compensaçãoaos efeitos da desigualdade social e econômica produzidaespontaneamente pelo mercado competitivo. ABr: Écorreto o entendimento de que nossa elite é patrimonialista ese beneficia do Estado ainda hoje? Souza: Eu sou um crítico da noção de“patrimonialismo” porque o seu sentido é apenas“político”, no mau sentido do termo, ou seja, como umadistorção da realidade que imagina existirem pessoas“puras e imaculadas” de um lado e pessoas “corruptas e más”de outro. Como a primeira necessidade de todos os seres humanos éa auto-legitimação do próprio comportamento, enão a autocrítica, qualquer concepçãopolítica que escolha como “bode expiatório” de todamaldade e corrupção um “outro” abstrato, o“Estado”, a “elite má” [nunca definida enquanto talrigorosamente], para jogar todos os males nele e permitir sepensar a si próprio como virtuoso e puro, vai sempre ter, emtodo lugar e em todas as épocas, muitos seguidores. ABr:A crítica ao patrimonialismo tem uma funçãopolítica? Souza: O conceito de “Estadopatrimonialista” ou de “elite patrimonialista” serveprecisamente, como uma luva a esse tipo de pseudo-críticamoralista e mesquinha, posto que jamais tematiza os verdadeirosconflitos sociais. Essa é, aliás, sua funçãoverdadeira: evitar que se discutam e se percebam os verdadeirosconflitos sociais que nos assolam há séculos. Toda“falsa” crítica social está no lugar da verdadeiracrítica social e serve para ocultá-la. Esses conflitossão mantidos e compartilhados por toda a sociedade, ou seja,somos nós todos que legitimamos, por exemplo, uma sociedade deduas classes, em todos os níveis e todas as dimensõesda vida. Mas isso não é feito apenas por uma “elite”que ninguém define, mas por toda a sociedade brasileira quereproduz na vida cotidiana uma insensibilidade social sem igual nomundo inteiro. Como nos habituamos a jogar num “outro” abstrato(o eterno “patrimonialismo” de quem quer que seja) todas asculpas do nosso próprio comportamento cotidiano, jamaischegamos ao estágio socialmente maduro de nos auto-criticarmose avançarmos como sociedade. Nós nos pensamos, porexemplo, sempre em termos econômicos, em tamanho do PIB[Produto Interno Bruto], enquanto em alguns paíseseuropeus se emula quem tem a melhor escola ou quem tem o melhorserviço de saúde, ou ainda quem é menos racistaem relação a estrangeiros. O foco é na formaconcreta como se tratam uns aos outros, e não num PIBabstrato. A sociedade brasileira nunca se auto-critica. Somos asociedade da maior desigualdade social dentre todas as sociedadescomplexas do planeta e nos imaginamos como “solidários”,“hospitaleiros”, “amorosos”. A auto-crítica madura,que é sempre o primeiro passo de qualquer mudançaefetiva, seja na dimensão individual seja na dimensãosocial, nunca é (nem foi) realizada entre nós.ABr:As iniciativas do governo para manter o investimento eminfra-estrutura ou aumentar o crédito de bancos públicosatendem a interesses da sociedade brasileira ou de alguns setoresprivados?Souza: Isso sempre depende da forma como se faz.Vamos ter que esperar pelos resultados concretos num futuro próximo.ABr: Havia, até recentemente, umconsenso de que o Estado deveria ter um papel estritamente reguladordas atividades econômicas e o mercado mostrava-se maiseficiente. A atual crise financeira global pode rever essaconcepção?Souza: A atual crise financeira docapitalismo serve para mostrar que tudo aquilo que os liberaisbrasileiros diziam ser apanágio do Estado, como corrupçãosistêmica, ineficiência, beneficiamento do interesseparticular às custas do interesse público etc – oconceito de “patrimonialismo” do Estado foi forjado precisamentepara veicular essa idéia, mas também pode ser aplicadoao mercado sem regulação ética, nem jurídica.Serve para mostrar também que as vantagens inegáveis domercado para o aumento de produtividade da atividade econômicanão pode esconder outras verdades como a necessidade deregulação e de limitação da açãodo mercado a certas áreas. Essa limitação do queo mercado pode ou não pode fazer foi a base, por exemplo, doacordo social que é o pressuposto da social democraciaeuropéia. Esse acordo diz: o mercado deve regular tudo, menosa educação, a saúde e a previdência,porque esses bens não podem, nem devem ser negados a ninguém,mesmo àqueles que tiveram o “azar” de nascer numa famíliapobre.ABr: Mas houve uma mudança derumo com a crise?Souza: Entre nós o mercado podiatudo até bem pouco tempo. A sociedade devia servir ao mercado,e não o contrário. Com o governo Lula, a situaçãomudou um pouco, mas deveria mudar muito mais. O governo de Lula tentaser reformador no contexto de uma sociedade que é extremamenteconservadora e também no contexto de uma esquerda sem discursocoerente contra o liberalismo economicista dominante e acovardadapelos ditames do “politicamente correto”. Nesse triste contexto,a hegemonia do liberalismo economicista entre nós étremenda. Ela domina, por exemplo, a imprensa de fio a pavio, compoucas exceções, e parcelas muito amplas das classesmédia e alta. O discurso é tão hegemônico,que afeta e distorce a percepção das própriasclasses dominadas, que são suas maiores vítimas. Épor isso que se fala na imprensa todos os dias contra a construçãode universidades, o reajuste do salário de professores detodos os níveis e o reaparelhamento do Estado para que cumpramelhor suas funções. O Estado deve ser mínimopara que o lucro privado seja máximo. A sociedade deve viverpara a acumulação do lucro, e não o contrário.Isso é insano, mas como é muito repetido, por quasetodo mundo, todos os dias, em quase todos os jornais, termina-se numasociedade sem debate e sem discussão, acreditando nainsanidade. ABr: O senhor demonstra que usamos de formadistorcida o conceito de patrimonialismo (até no senso comum)para dar lastro aos argumentos que opõe o estado corrupto e omercado eficiente. Como esse conceito foi distorcido? Ele pode serreabilitado? Souza: Minha tese é a de que a noçãode patrimonialismo domina de tal modo a percepção quetemos da realidade brasileira, que ela se tornou, hoje em dia, uma“segunda pele”, que evita que percebamos os reais e gravesproblemas brasileiros.