Começa em Belém julgamento de acusados de emascular menores

27/08/2003 - 22h28

Belém - O drama das famílias do município de Altamira, no Pará, que tiveram seus filhos torturados e assassinados por supostos integrantes de uma seita religiosa está chegando ao fim depois de mais de dez anos. Amailton Madeira Gomes, filho de um empresário e fazendeiro local, e o ex-policial militar Carlos Alberto Santos, acusados dos crimes, começaram a ser julgados hoje pelo Tribunal do Júri de Belém.

O caso dos meninos emasculados de Altamira, como ficou conhecido, começou no final da década de 80 e fez vítimas até 1993. Nesse período, pelo menos 19 meninos entre oito e 13 anos foram vítimas de supostos integrantes da seita religiosa "Lineamento Universal Superior (LUS)". Seis deles foram mortos, cinco ainda estão desaparecidos e oito conseguiram escapar. Foram vítimas de abuso sexual, queimaduras, espancamento, extração dos olhos, entre outras agressões. A característica comum principal dos crimes, no entanto, era a castração da maioria das vítimas, todas de famílias de baixa renda.

Dois meninos conseguiram escapar após serem castrados e torturados, e agora, com pouco mais de 20 anos, enfrentarão, no tribunal, os acusados pelas agressões sofridas. Otaniel Oliveira Pinheiro, 23, e Wandicley Bastos Costas, 22, irão depor amanhã. O promotor Clodomir Araújo disse que está preocupado com a estabilidade emocional dos jovens que terão de ficar cara-a-cara com os réus durante o depoimento. Por isso, Araújo pretende conseguir autorização do juiz para chamá-los logo no início da sessão de amanhã (28), prevista para às 8 horas, e acabar logo com a angústia deles, que estão sob proteção da Polícia Federal.

Os familiares das vítimas acompanham o julgamento com ansiedade e esperam justiça. "Foi uma luta muito árdua, de muitos atropelos, muitas subidas e descidas, mas graças a Deus estamos numa subida. Estamos em cima da montanha e esperamos não descer. Queremos que a justiça venha a acontecer", afirmou Rosa Pessoa, mãe de Jaenes da Silva Pessoa.

Apesar de sete inquéritos policiais terem sido abertos, apenas o que apurou a morte de Jaenes foi concluído. O corpo do garoto foi encontrado dois dias após seu desaparecimento, emasculado e com sinais de violência sexual.

Para a empregada doméstica Francisca das Chagas, de 28 anos, a morte de seu irmão, que tinha dez anos foi uma violência com toda a família. "Eles não mataram só uma criança, eles mataram a família toda porque a gente fica toda destruída, são vidas e sonhos que vão embora", contou. Flávio era o único irmão de Francisca. Após o assassinato, ela e os pais se mudaram para o Piauí sem acreditar que os suspeitos seriam julgados.

"Não tivemos mais notícias, até que ligaram informando que iria ter esse julgamento", disse Francisca que na época do crime tinha 18 anos. Hoje, mãe de dois filhos, disse entender melhor o sofrimento de seus pais que abalados não quiseram ir Belém. "Eu acho que não suportaria, nem teria vindo se fosse com um filho meu", comentou Francisca.

Hoje, o secretário de Direitos Humanos, ministro Nilmário Miranda, acompanhou o primeiro dia do julgamento para demonstrar o interesse do estado brasileiro no processo e garantir que ele corra sem problemas. Por determinação do ministro, a Polícia Federal está dando proteção às testemunhas de acusação, entre elas, dois sobreviventes. Com a proximidade do julgamento, algumas pessoas começaram a sofrer ameaças para desistir de depor.

O ministro disse que este caso é simbólico para a questão da defesa dos Direitos Humanos. "Apesar do julgamento se tratar apenas de cinco das 19 vítimas, ou seja, não fazer justiça para todos, o fato de estar sendo realizado já é importante porque houve toda sorte de obstáculos no trabalho policial. É uma luta contra a impunidade, para mostrar aos poderosos que ninguém vai ficar acima da lei", disse Nilmário.

Uma das propostas defendidas pelo ministro é a federalização desse tipo de crime. "Felizmente, este é um ponto de consenso na reforma do Judiciário. As violações de direitos humanos que têm levado nosso país a ser condenado no exterior pela impunidade vigente aqui, poderiam ser evitadas se a União tivesse possibilidade de atuar quando a apuração é falha como foi o caso aqui", explicou Nilmário.

Durante o dia, ele elogiou a atuação do juiz Ronaldo Valle que logo no início conseguiu evitar uma esperada manobra da defesa para adiar a sessão. Os advogados dos cinco acusados pretendiam recusar jurados diferentes, o que pela lei daria direito aos réus de serem julgados em separado. Ronaldo Valle se antecipou e decidiu, então, julgar primeiro Amailton e Carlos Alberto e, no dia 2 de setembro, dar início ao julgamento de outros três _ a líder e fundadora da LUS, Valentina de Andrade, e os médicos Césio Flávio Brandão e Anísio Ferreira de Souza.

A acusação apresentou documentos, fotos e uma reportagem realizada pela TV Bandeirantes, em 1996, com depoimentos de testemunhas e reconstituição dos crimes. Trechos do livro "Deus, a grande farsa", de autoria de Valentina foram apresentados com o objetivo de mostrar que ela era responsável pelo comando da seita. Ela nega todas as acusações, assim como os dois réus que estão sendo julgados.

Ela é acusada de envolvimento no desaparecimento de crianças em Umuaranga, Paraná, apesar de nunca ter sido condenada. Fatos semelhantes já foram registrados em outros estados brasileiros, o que leva as autoridades a acreditarem numa ligação entre eles. Somente no Maranhão, 22 casos parecidos foram registrados.

Cerca de 100 pessoas, entre familiares e moradores de Altamira, estão em vigília na frente do Tribunal de Justiça do Pará. Amanhã, eles realizarão uma caminhada da Praça da República até o Tribunal. A concentração será às 7 horas. Atividades como oficinas de artes para crianças e adolescentes e apresentação de grupos culturais também estarão sendo realizadas durante todo o dia.

O governo brasileiro está respondendo pelo caso de Altamira na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). O país já foi condenado treze vezes por tribunais internacionais, apenas em um a responsabilidade era, de fato, do governo federal. Hoje, existem 93 processos em andamento na Corte Internacional. Segundo Nilmário, destes, 90 dizem respeito a atos cometidos pelos governos estaduais ou pela omissão deles.

Independente disso, quem arca com as indenizações determinadas pelos tribunais internacionais aos quais o Brasil está submetido é sempre a União. Há dois dias, o governo indenizou em R$ 52 mil, José Pereira que foi submetido a regime de escravidão. Em 1989, ele fugiu da fazenda onde estava sendo mantido em cativeiro e foi atingido por um tiro no olho, perdendo a visão.

A sub-procuradora Geral da República e procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Maria Eliane Menezes de Farias, acredita que é preciso vontade política para aprovar um importante projeto de lei que está no Congresso Nacional, que prevê o direito a ação regressiva contra os verdadeiros responsáveis pela violação dos direitos humanos. Além de poder exigir o ressarcimento pelas indenizações, o governo federal poderia dividir as responsabilidades.

Para o ministro, a indenização, muito mais simbólica, não é o principal desta questão, mas sim a atitude de assumir a responsabilidade pelas ações ou omissões dos governantes. "O que temos procurado fazer são pactos com os Estados para que eles entendam que precisam assumir as responsabilidades por crimes cometidos contra os direitos humanos", afirmou.

Nilmário Miranda defende ser importante o país continuar submetido aos tribunais internacionais, porque apesar da vergonha que as condenações representam é uma forma de forçar a sociedade brasileira a buscar soluções efetivas para essas questões.

Cecília Jorge