Pioneira do Fome Zero sente o cheiro de novidades

13/07/2003 - 12h25

Xico Sá

"No ar, Rádio Esperança, falando diretamente de Guaribas, Piauí, Brasil, cidade piloto do programa Fome Zero."

Muitos moradores não acreditavam naquela voz que ouvia misturada às bombas e traques em louvor aos santos juninos. A estação comunitária chegou no embalo das novas empreitadas do governo do estado. Até nas bandas da Serra das Confusões, ali nos arredores da cidade, dá-se notícias de audiência da emissora.

Um espanto, como tudo que chegou recentemente a Guaribas - batismo que vem de um tipo de macaco que fazia graça há muito por aqueles serrotes.

Agora, tudo cheira a coisa nova por lá. "Velho aqui só a gente e a necessidade", diz dona Tereza Rocha, 88 anos, uma das moradoras mais antigas. "Aqui não chegava nem má notícia, de tão longe e isolado que era". Nem político se lembrava de pedir votos às almas penadas das redondezas.

Ainda é duro chegar à sede do município, que fica a 653 km da capital Teresina. Não é qualquer carro que agüenta o tranco. Nos últimos 60 km, um deserto de areia, quase sem moradores pelo caminho. É o trecho que vai de Caracol, município do qual se desmembrou na década passada, até lá.

"Meu filho, o Brasil foi descoberto em 1500 e Guaribas foi achada só agora, nesse ano. Aqui era a porteira do fim do mundo", diz Orlando Rocha, 62 anos, abismado com os últimos acontecimentos na cidade. "Agora vem gente de longe conhecer as coisas por aqui. Tudo tem seu tempo, chegou o nosso, nosso nome foi escrito no mapa".

"Seu" Orlando criou a família de dez filhos e netos a perder de vista ("só juntando pra contar") em uma Guaribas esquecida e isolada de quaisquer ações e políticas públicas. Só passava por lá quem tivesse se perdido. "Ou o vento, que faz a curva por aqui", diverte-se, acostumado com a poeira amarela que encobre a vista.

Guaribas vive a segunda gestão depois de emancipar-se. Só virou notícia, nesses quase oito anos de poder, porque o prefeito Reginaldo Correia da Silva (PL) foi denunciado pelo Ministério Público estadual, sob a acusação de arrendar a Prefeitura a amigos. Foi afastado do cargo em duas ocasiões. O caso tramita no Tribunal de Justiça do Piauí.

Boas novas

Detentora do terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos 5.507 municípios do Brasil, Guaribas foi "descoberta" como um dos laboratórios do programa Fome Zero, iniciado em março. Além de beneficiar inicialmente 500 famílias com R$ 50 para a compra de comida, o município assistiu à chegada de uma série de ações que mudou a paisagem e a situação dos moradores.

"Nunca ninguém na face da terra olhou por nós. A gente vivia jogado, como Deus criou batata", conta Tereza Rocha. "Vi muita gente morrendo aqui por falta de uma coisinha ou outra, uma ajuda, um 'adjitório' qualquer".

Em associação com o governo federal, o governo do Estado traçou um plano de desenvolvimento para o município. Um dos problemas mais graves, como em toda a nação do semi-árido nordestino e mineiro, é a falta de água em boas condições para uso. Um projeto, ainda em fase experimental, já permitiu que as donas de casa _ por conta da cultura machista, não se vê homem carregando uma lata de água _ tivessem acesso ao abastecimento na cidade mesmo. "Antes a gente tinha que andar um bocado, subir uns lajedos, um aperreio", diz Nalva Alves Rocha, de 23 anos. "Guaribas agora faz parte do mapa", repete.

Um processo de tratamento de um reservatório no centro da cidade, desenvolvido por técnicos do governo do Estado como parte do chamado "Sede Zero", começou a mudar esta rotina. A lata d’água continua na cabeça, mas a distância já é menos sofrida. Em vez de até quatro quilômetros, a água agora fica a alguns metros da porta de casa. A mesma equipe estuda a escavação de vários poços artesianos na cidade e nos povoados. É um desafio da administração estadual levar água para todos os 4.814 guaribenses.

Logo ao amanhecer do dia, a fila se forma diante do reservatório. "Meu filho, a gente pode dizer que já luxa. Vocês não têm idéia de como a gente vivia", narra Valda Alves da Silva, que administra Hotel Ferreira, o pioneiro, inaugurado este ano, apelidado de "abrigo das autoridades". Entre redes espalhadas no salão de entrada e camas nos quartos, tem capacidade para "umas trinta cabeças". O banho ainda é de cuia, mas o chuveiro está a caminho. Faz parte do 1% de domicílios com banheiro na cidade.

As condições econômicas miseráveis, a falta de água tratada e a desnutrição fizeram de Guaribas um lugar onde a expectativa de vida é de 56,11 anos, muito abaixo da média nacional de 68,1 anos. A mortalidade infantil ainda tem feições africanas, com 59,9 a cada mil crianças _ a média brasileira é de 29,6.
Não há estatística oficial, mas a coordenação do programa Fome Zero na área informa que não há registro de mortes de crianças nos últimos três meses.

Na rede

A maioria das mães perdeu filhos por conta da desnutrição. "Toda casa já mandou seus "anjinhos" pro colo de Nosso Senhor, num tem jeito", conta o agricultor João Bertoldo, 76, que viu escapar oito de seus 15 filhos. Guaribas nunca teve hospital ou médico. "Vi muita gente sendo retirada numa rede, carregada por homens nesses serrotes acima até chegar em um lugar que tivesse um carro para tentar salvar até uma cidade mais próxima", conta Orlando Rocha. O município ainda não tem hospital, mas agora conta com visita de médicos, o que é outra grande novidade.

Novidade é o que não falta em na Guaribas descoberta em 2003, como relatam os moradores. Durante os festejos juninos, além da rádio Esperança, a cidade assistiu à abertura da primeira lanchonete. Dias antes, havia sido aberto um salão de beleza pioneiro na região. "Com chapinha japonesa e tudo", anunciam os donos.

Por causa de uma agência dos Correios inaugurada também este ano, os aposentados e as famílias beneficiadas com programas sociais do governo não carecem mais de enfrentar a estrada de terra até Caracol ou São Raimundo Nonato, a quase 200 quilômetros dali.

As construções também chamam a atenção à frente dos serrotes rasgados de pedra que enfeitam a paisagem da cidade. Um mercado municipal e 66 casas populares estão sendo levantados como parte do programa de desenvolvimento. "Vocês vieram ver que a gente virou gente, né?", indaga Lídio Duarte Rocha, 27 anos. Ele trabalha como pedreiro em uma das casas, logo atrás de uma placa do Banco do Nordeste que anuncia a chegada à cidade do Fome Zero.

Com jeitão de lenda, os moradores contam histórias curiosas sobre a repercussão da fama do município fora da região. "A polícia, outro dia, em São Paulo, já ia prender um rapazinho. Mas quando ele mostrou os documentos e viram que era de Guaribas, ah, meu filho, mudou tudo, pediram desculpas até demais, pois era um cidadão da cidade mais ‘precisada’ do Brasil", narra o bom contador de histórias Orlando Rocha, com juras de veracidade que se sustentam e se encaracolam nos seus respeitáveis cabelos brancos.

As novidades repercutem nas localidades vizinhas. Acostumados a receberem os moradores de Guaribas para compras, os comerciantes de Caracol agora é que seguem até lá. Promovem feiras nas ruas, com suas mercadorias. "As coisas estão vindo até nós", diz dona Tereza Rocha. "Às vezes eu fico bestinha com o que anda acontecendo, parece que chegou a nossa vez. Ninguém descobriu o céu, mas que a gente agora é gente ninguém pode negar. E isso pode ser pouco para quem vive no bem-bom, mas pra nós não é não senhor."

Comunidade quilombola também quer entrar para o mapa

Se a Guaribas piauiense, cidade-piloto do programa Fome Zero, foi colocada no mapa, como dizem seus moradores, a sua xará pernambucana ainda aguarda a hora e a vez. Uma espera que se arrasta desde o século XIX, quando lá chegaram os primeiros negros que fugiam dos engenhos da região e formaram essa comunidade quilombola encravada em um pé de serra agreste de Bezerros, no agreste do Estado.

Da sede do município até o povoado são cerca de quarenta quilômetros. Nas ruas, ninguém dá notícia da localidade. "Sei não senhor, sei não senhor, sei não senhor", respondem os moradores, sempre depois daquele paciente gesto de passar a mão no queijo para matutar. No guia rodoviário também não consta.

Mesmo com a proximidade, é difícil encontrar uma viva alma que saiba o rumo. Já chegou carro por lá, mas nessa ocasião, com a piora de uma estrada que já era ruim, não foi possível. Guaribas de Baixo, como é chamada, ainda é um pedaço de terra arrodeado por preconceito e abandono por todos os lados.

"Ah, vocês vão lá na favela? Lá é perigoso, outro dia mataram dois", diz uma senhora da vizinhança, que faz questão de delimitar os territórios. "Olhe, aqui é Guaribas de Cima, a Guaribas deles começa bem ali", faz o gesto com os beiços.

Um cartaz na porta de uma casa, lembrança do II Encontro das Comunidades Quilombolas de Pernambuco, realizado este ano em Conceição das Crioulas (leia texto nesta página), não deixa dúvidas. "É Guariba de Baixo, sim senhor", confirma Flávio José da Silva, 13 anos, filho de uma das 52 famílias remanescentes de escravos que moram no local.

Morte por ali, só morte morrida, como dão notícia os próprios viventes do local. Pode-se dormir de portas e janelas escancaradas, como muita gente faz ainda em dias mais abafados pelo calor. Ladrões, nem de galinhas _ essa gente só é conhecida pelas poucas televisões que existem nos arredores.

Silva, Souza e Santos

Os Silva, como Flávio, os Souza, como seu primo Pedro, 11 anos, e os Santos, como a prima Josilene, de 26, formam o povoado. Quase todos são parentes entre si, como conta Maria Isabel da Conceição, 61, mãe de Josilene. "Netos e bisnetos do sofrimento de muito antigamente, nosso sina vem de longe, das moendas e do ‘carrasquismo’ dos engenhos", diz a xará da princesa que assinou a dita Lei Áurea, em 1888. "Agora é tudo livre, mas os direitos são poucos. A gente ainda apanha muito da vida".

A favela é uma pequena fileira de casas de taipa e de tijolos. Mais adiante, um campo de futebol onde os meninos apostam iguarias. Ao vencedor, doces e bolo de milho. O time tem ginga de um Camarões, narra José Levino Luis da Silva, 14 anos, um dos organizadores dos embates.

Sandro Lido de Souza, 28 anos, é o presidente da Associação dos Moradores do povoado quilombola. Representa Guaribas nos encontros políticos nos quais se discute a situação dos remanescentes. E se preocupa em não deixar apagar a memória dos antepassados. "A peleja que vivemos tem uma origem histórica, os mais jovens precisam ser lembrados disso sempre", diz.

Choveu muito na região este ano. O agreste anda verde, quase a desmentir a vocação geográfica para as dificuldades. É tanto sapo na lagoa ao lado que o "foi-não-foi" da cantoria encobre a conversa. Terreno molhado, mas ainda alheio, não representa fartura. "Não temos a posse da terra, o que nos obriga a plantar em pequenas áreas cedidas pelos outros", intervém Valdemar Lido de Souza, 65 anos, pai de Sandro e mais 15 filhos.

A maioria dos pais de família trabalha "alugado" aos proprietários da região. Um dia de serviço, quando muito, sai por R$ 8. E não tem vaga para todo mundo. Com a mão de obra em excesso, alguns fazendeiros abaixam o pagamento para R$ 5, R$ 6. A velha chantagem do pegar ou largar. "Cuidar do que é dos outros é perder um tempo danado", matuta o agricultor Lido de Souza.

O título da terra é uma demora. O processo, iniciado em 1996, com a assinatura de decreto pelo governo do Estado, perdeu-se na burocracia. "Mas nada pra nós é fácil, nunca foi", lembra da sua herança o presidente da associação de moradores. "Embora o que se pretende é apenas que se devolvam o que já foi nosso".

Chegada do Fome Zero

No mapa da insegurança alimentar, a Guaribas pernambucana está escalada para fazer parte do programa Fome Zero a partir deste mês. Com a comunidade, entram também os outros povoados quilombolas do Estado: Imbé, no município de Capoeiras; Negros de Jilú, em Itacurubá; Conceição das Crioulas, em Salgueiro; Serrote do Gado Brabo e Sítio Caldeirãozinho, ambas em São Bento do Una.

O programa vai atender, inicialmente, 142 comunidades de remanescentes de quilombos em todo o país. São 15 mil famílias, estabelece o acordo firmado entre o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Fundação Cultural Palmares.

Os líderes de Guaribas apostam na ajuda emergencial do cartão alimentação, com R$ 50 para as famílias mais necessitadas, como meio de reduzir o problema do alto número de crianças desnutridas na área. Não existe estatísticas sobre o assunto, mas vê-se, de forma explícita, nos olhos esbugalhados de meninos e meninas daquele corte do território agreste.

"Perdi a conta do que já vi de criança virar os ‘zoinhos’ por aqui", relembra Maria Isabel da Conceição, uma das moradoras mais antigas. "Muitas vezes por falta de uma besteirinha de nada, uma sustançazinha de nada, uma ‘peinha’ de nada".