Coluna da Ouvidoria - Comparações geográficas que não contribuem

18/09/2013 - 19h21

Brasília - Numa matéria publicada no dia 9 de setembro sobre os conflitos que estouraram nas últimas semanas entre produtores rurais e índios no sul da Bahia, a Agência Brasil relata que “o Ministério Público Federal (MPF) pediu ao Ministério da Justiça e ao governo da Bahia que reforcem o policiamento no sul da Bahia, sobretudo na região conhecida como Serra do Padeiro, onde índios tupinambás ocupam várias propriedades rurais como forma de pressionar o governo federal a concluir o processo de criação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. A área que os tupinambás alegam ter pertencido ao seu povo mede 47.376 hectares (um hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, o equivalente a um campo de futebol oficial) e abrange parte do território das cidades de Buerarema, Ilhéus e Una” [1].

Ao ler a matéria no Portal da EBC, a internauta Denise da Veiga Alves mandou o seguinte comentário: “Caros, uma terra indígena não é 'criada'. O direito inscrito no Artigo 231 da Constituição Federal é expresso: trata-se apenas do reconhecimento de um direito originário às terras tradicionais, de propriedade da União. Não é tipo assim, 'criada do nada' ou 'inventada', como o termo deixa transparecer. Outra questão é essa comparação da extensão com 'campos de futebol'. Vamos ser honestos: para o cidadão médio entender o tamanho da área, também tem que ser informado do que seja o modo tradicional de ocupação indígena, que é totalmente diferente do que a produção rural ou a prática esportiva utiliza... isso só contribui a distorcer o entendimento do que já não é corriqueiro para quem não está familiarizado com os povos indígenas, fortalecendo estereótipos e discriminação contra eles”.

Na resposta à demandante, a Diretoria de Jornalismo explicou que o termo “criar” foi usado “para facilitar a compreensão, embora, do ponto de vista jurídico, o termo não seja o mais adequado”. O reconhecimento do direito territorial indígena é por etapas. A Terra Indígena Tupinambá de Olivença já foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), mas ainda não saiu do papel, porque faltam o aval do Ministério da Justiça e a homologação da Presidência. Quanto à comparação do tamanho da área reivindicada com campos de futebol, “essa prática é comum no jornalismo e ajuda o cidadão a compreender, visualizar o tamanho da área, já que, pela popularidade do esporte, muitos têm noção do espaço ocupado por um campo de futebol”. Não houve nenhuma intenção de “criar um estereótipo em relação aos povos indígenas, até porque como a leitora pode ver, a Agência Brasil sempre dá espaço às reivindicações, à cultura e aos costumes e tradições desses povos”.

Entre outros pontos, a leitora levanta a questão das variações no significado das medidas territoriais de acordo com o modo de vida do grupo humano que ocupa a área. Antes de entrar na dimensão antropológica, porém, cabem algumas observações a respeito da utilidade da adoção do “campo de futebol” como referência para facilitar a compreensão geométrica. Numa linguagem mais simples, cabe na cabeça do leitor a ideia da extensão de uma área equivalente a quase 50 mil campos de futebol? É até difícil imaginar uma resposta que não seja negativa.

O problema com esse tipo de comparação, que virou padrão e aparece em todas as oito matérias sobre os conflitos publicadas pela ABr desde 28 de agosto, é o tamanho da diferença de ordens de grandeza entre os dois termos. O padrão pode funcionar bem em algumas situações, quando a área for menor ou quando a área total puder ser concebida como composta de pedaços menores. Muitas reportagens sobre desmatamentos e queimadas apresentam situações que se enquadram nessas condições, como nos seguintes exemplos encontrados no arquivo da ABr: “O incêndio no Parque Estadual Três Rios, em Teresópolis (RJ), que começou no final de semana, já destruiu 50 hectares de vegetação, o equivalente a 50 campos de futebol, segundo o Instituto Estadual de Florestas” e “De acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia teve 207,6 km2 (equivalente a mais de 20 mil campos de futebol) de sua área desmatada em novembro e dezembro do ano passado [2011]”. No segundo exemplo, o número é grande, mas, por não se referir a uma área contínua no espaço e no tempo, se presta ao fatiamento, consistente, aliás, com a natureza do fenômeno que ele descreve. Assim, o leitor, se quiser, pode fazer uma conversão em intervalos de tempo menores, que daria neste caso um desmatamento diário de 340 campos de futebol ou um campo de futebol desmatado a cada quatro minutos.

Para as áreas que não satisfaçam essas condições seria interessante pensar em alternativas para substituir o campo de futebol como referência com o objetivo de facilitar a visualização. No caso do tamanho da Terra Indígena dos Tupinambás de Olivença, cujos 47.376 hectares equivalem a 474 quilômetros quadrados, existe, para citar um exemplo, a possibilidade de fazer a comparação em termos que representam uma diferença de duas (em vez de quatro) ordens de grandeza: 474 vezes o tamanho do Parque Anhanguera, em São Paulo (1,0 km²); 215 vezes o tamanho da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro (2.2 km²); 113 vezes o tamanho do Parque da Cidade, em Brasília (4,2 km²).

Da perspectiva antropológica lançada pela leitora, o que importa, mais que o tamanho da área em si, é a maneira como ela é ocupada. Pelas práticas de agricultura, pesca, caça e coleta adotadas pela parcela rural do povo Tupinambá de Olivença, constatadas em vários estudos antropológicos realizados nos últimos anos [2], e o costume de formar uma nova “área” ou “lugar”, na média, a cada oito anos, trata-se de um modo de vida que exige bastante espaço, como acontece com os outros povos indígenas brasileiros. A utilização do campo de futebol como referência banaliza essa consideração e sugere conclusões irrelevantes. O mesmo descuido em relação às considerações geográficas conduziu a outros equívocos nas matérias sobre o assunto, tais como as referências à “região conhecida como Serra do Padeiro, onde ficam as cidades de Ilhéus, Una e Buerarema” [3], quando a Serra do Padeiro é de fato uma região dentro do município de Buerarema, e à “área que abrange parte do território das cidades de Buerarema, Ilhéus e Uma” [4], quando a localização da área é nos municípios e não nas cidades.

Além disso, cálculos feitos pela ouvidoria com base nos dados do Censo de 2010 [5] demonstram que, se forem excluídas as populações urbanas dos três municípios, a distribuição territorial dos cerca de 4,6 mil Tupinambá de Olivença na área reivindicada não diferiria do padrão atual da população rural da região. A densidade demográfica seria de 10 habitantes por quilômetro quadrado, contra os atuais 16, 14 e sete nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, respectivamente.

De certa forma, esse resultado não deveria constituir nenhuma surpresa, pois, como os mesmos estudos antropológicos registram, a expansão dos latifúndios na região a partir dos anos 30 do século passado imprensou a população indígena local, que foi obrigada a se espalhar no meio da população dos não índios. A própria identidade indígena foi colocada em xeque e os adversários do reconhecimento da terra indígena aproveitam essas circunstâncias para questionar os direitos dos Tupinambás de Olivença à área. Para os fazendeiros da região, 47 mil e tantos campos de futebol são muita terra para pouca gente, que, segundo eles, nem índios são. Mas os Tupinambás de Olivença têm uma história de contato com os colonizadores que remonta ao século 17 e é marcada por episódios de resistência, dos quais as “retomadas” de terra, que começaram por volta de 2002, representam ao mesmo tempo uma continuidade e um dos elementos que integram o processo de consolidação da identidade da etnia. Nas matérias publicadas pela ABr nas últimas semanas, faltou essa contextualização, além de uma comparação que ajudasse o leitor a visualizar o tamanho da área que está sendo disputada. Mais que uma disputa sobre a ocupação de propriedades rurais, a situação no sul da Bahia reflete um conflito de duas visões: uma baseada na Constituição de um país que reserva espaços para recompensar os povos autóctones pelos danos causados pela colonização e possibilitar às novas gerações a busca da sua identidade indígena, a outra na defesa de um país que preserva as formações sociais associadas à apropriação dessas áreas pelas ondas sucessivas de capitalismo que assinalam sua história mais recente.

Até a próxima semana!

[1] http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/09/mpf-pede-reforco-policial-no-sul-da-bahia-devido-a-conflito-entre-produtores

[2] http://antropologias.descentro.org/files/downloads/2012/09/LaraAmielErnenekMejia_M-Oficial-IFCH.pdf
http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/12573/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Helen%20Catalina%20Ubinger.pdf
http://br.dir.groups.yahoo.com/group/anaindi/message/743
http://repositorio.unb.br/handle/10482/13431

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-05/ministros-se-reunem-para-avaliar-conflito-entre-indios-e-fazendeiros-no-sul-da-bahia

[4] http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/09/mpf-pede-reforco-policial-no-sul-da-bahia-devido-a-conflito-entre-produtores

[5] http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/uf.php?coduf=29