Crise econômica ameaça coesão na União Europeia, avalia sociólogo

19/05/2013 - 15h25

Gilberto Costa
Correspondente da Agência Brasil/EBC

Lisboa – As consequências da crise econômica internacional na Europa estão na agenda de pesquisa dos cientistas sociais portugueses. Nos últimos anos, uma série de estudos foi publicada em Portugal avaliando as possibilidades de empobrecimento da população, o aumento da desigualdade socioeconômica e a perda de rendimento da classe média. Para alguns analistas, a crise e o remédio administrado pelo governo – austeridade fiscal com cortes nos gastos públicos (saúde, educação e seguridade social, por exemplo) – poderão afetar a coesão da sociedade portuguesa.

Um dos trabalhos mais recentes sobre o assunto é o livro Desigualdades e Perspectivas dos Cidadãos: Portugal e a Europa, lançado em março pelo sociólogo João Ferreira de Almeida, professor e investigador do Instituto Universitário de Lisboa (Iscte – IUL).  Em entrevista, ele aborda os problemas cotidianos de Portugal e o risco de colapso de projetos europeus como o Estado de bem-estar social e a própria ideia de no futuro haver uma Federação europeia.

Agência Brasil - Portugal está empobrecendo?
João Ferreira de Almeida - A maior parte dos dados sobre pobreza e desigualdade que temos vai até 2010, mas eu não tenho dúvidas de que o empobrecimento global do país coincide com o empobrecimento mais particular das classes mais desprotegidas. A chamada crise das dívidas soberanas determinou políticas europeias de hiperausteridade que repercutem de maneira mais acentuada em economias mais periféricas e frágeis, como é o caso da portuguesa. 

ABr - Isso deve agravar a desigualdade. Por que Portugal é um dos países mais desiguais da Europa?
Almeida - A desigualdade em Portugal é persistente. Durante muito tempo no século 20, com efeitos no século 21, a sociedade foi muito pobre – pobreza generalizada com alguns ricos e classe média pequena. A grande distância entre esses estratos sempre existiu em Portugal. Tivemos uma ditadura de 48 anos, as ditaduras de vocês [do Brasil] duraram menos tempo... A ditadura do [António de Oliveira] Salazar era uma peculiar pelo caráter catolicista e conservador, repressivo, e sem política de desenvolvimento. Quanto à educação, Salazar dizia: “Basta que as pessoas aprendam a ler e a contar, não é preciso mais nada”. Ele sabia que quanto mais literacia [qualidade ou condição de quem é letrado], mais capacidade as pessoas teriam de se opor ao regime ditatorial. Na economia também havia efeito disso. Tivemos uma industrialização tardia, protegida pelo Estado, dentro das fronteiras, com 50% da população economicamente ativa trabalhando na agricultura, caracterizada ao Sul do país pelo latifúndio sem dinâmica produtiva capitalista e no Centro e no Norte com baixa produtividade. Com o 25 de Abril [Revolução dos Cravos, 1974], houve um aumento dos rendimentos das classes subalternas, mas a produção interna não estava preparada para responder, não houve propriamente uma substituição de importações. Além disso, tivemos fatores como os chamados retornados [população de origem portuguesa incluindo parentes  nascidos nas ex-colônias portuguesas] expulsos nos processos de independência na África. Em curto espaço de tempo, tivemos que absorver mais de 500 mil retornados. Eles chegam na sequência da primeira crise do petróleo e durante o processo revolucionário de alguma instabilidade política e social.

ABr - Mas o país mudou e diminuíram as desigualdades.
Almeida - Com essas dificuldades econômicas e sociais, em atraso temporal e contexto adverso, tivemos que montar o Estado [de bem-estar] social. Não tenho dúvida, porém, de que as transferências propiciadas por esse Estado social diminuíram parte da desigualdade por meio de aposentadorias, fornecimento de serviços gratuitos de saúde e educação. O problema são os desdobramentos mais recentes. Os cortes no Estado social atingem particularmente as pessoas mais desprotegidas, estou falando do operário, dos empregados com baixo nível de  remuneração e de baixa qualificação, da senhora que no supermercado atende às pessoas no caixa, dos atendentes de call center sem alternativa de trabalho.

ABr - A crise gera mudança na composição dos grupos sociais? Esse movimento se observa fora daqui?
Almeida - A questão não está tanto na mudança da composição global das classes, que é muito próxima e tem evoluído em toda a Europa em um sentido, inclusive em Portugal. Tem crescido numericamente o setor de empresários e dirigentes, também o grupo de profissionais liberais – pessoas altamente qualificadas que trabalham por conta própria. Também crescem em toda a Europa os profissionais técnicos de enquadramento, uma população ativa altamente qualificada.

ABr - Com o empobrecimento a que o senhor se referiu e o aumento da carga tributária, a classe média está sentindo, especialmente?
Almeida – Está, certamente. Não é por acaso que se fala em ataque às classes médias. Mas os setores mais desfavorecidos perdem  condições no desemprego e na precariedade. As condições de vida de toda a sociedade estão piorando, o que não significa que a composição interna mude – eu não estou convencido de que vá mudar particularmente. Uma das coisas que aconteceram em Portugal nos últimos dez anos é que houve uma progressão muito significativa da qualificação escolar e profissional dos portugueses e por isso cresceu a tal pequena burguesia técnica de enquadramento. Eles, em princípio, vão continuar a crescer apesar dos sintomas inquietantes, acabam de estudar e não têm emprego e vão para fora, um desperdício.

ABr - Podem ser bem recebidos no Brasil...
Almeida - Serão bem-vindos em todos os países inteligentes. Os ingleses já importaram quantidades industriais de enfermeiros. Se eu posso importar profissionais qualificados, mas  não paguei a qualificação será bom negócio fazer isso. Evidentemente que o país exportador só perde com isso.

ABr - Há imigração para as economias mais fortes. Essa desigualdade entre os países ameaça a ideia da União Europeia?
Almeida - Com certeza sim. Mas, repare, o termo desigualdade tem tantas conotações que uma coisa é falar da desigualdade interna dos países, outra é falar entre os países e outra ainda é falar de desigualdade mundial. O que está acontecendo não contribui para a coesão e se a lógica for de clivagem [separação] política e ideológica, contraria-se todo o chamado sonho europeu. A questão da coesão é fundamental e se liga à questão da solidariedade - a ideia de que os países com mais competências e mais capacidades e riquezas teriam alguma possibilidade e interesse para apoiar alguns países a chegarem ao padrão daqueles com mais capacidades. Se essa solidariedade, como tudo leva a crer, se quebra fica mais distante essa possibilidade de Federação que alguns querem para a Europa.

ABr - O problema da dívida de alguns países europeus parece que terá longa duração, o que pode  significar Estados sem recursos para as despesas sociais por muitos anos. O modelo social europeu, que no Brasil se elogiava, está mudando para sempre?
Almeida - Os brasileiros tinham razão quando elogiavam. A Europa se distingue dos Estados Unidos e de outros países mais ricos pelo fato de haver essas solidariedades, mas repare: havia na verdade vários modelos sociais. O que está acontecendo não é nada promissor, mas não dá para saber o que vai acontecer.

ABr - O senhor acha que o que se chama de Estado de bem-estar social está sendo refundado?
Almeida - A tendência portuguesa e europeia é nesse sentido. O grande argumento está nas projeções demográficas, que antes tinham pouca gente no topo e muita gente na base e agora agora um desenho oval com pouca gente na base etária. E, portanto, tem a questão da sustentabilidade financeira do Estado social. O sistema de seguridade português era considerado estável em médio prazo, a crise rompeu isso. Será que vai durar muito tempo? Ninguém pode prever, esse tipo de evolução é destrutivo das sociedades por elas próprias. Os protestos nas ruas estão aí. A política não é só o que se faz nos gabinetes com repercussão nos meios de comunicação. Os portugueses estão insatisfeitos sobre tudo o que diz respeito a esse espaço público. Há uma coisa fora da dicotomia Estado e mercado chamada sociedade civil. Há outras implicações sociais tão poderosas e tão importantes quanto as que dizem respeito ao Estado, que não pode ser nenhuma delas reguladora da sociedade. Se não percebemos que o que se chama sociedade civil tem ganhado dinamismo e força para controlar aquilo que os cidadãos pretendem para si próprios e para dar sentido a palavra democracia, não estamos percebendo nada.

Edição: Juliana Andrade

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