Especialistas criticam reconhecimento do governo a instrumentos musicais para a Copa

04/10/2012 - 12h47

Alex Rodrigues
Repórter da Agência Brasil


Brasília - O governo federal perdeu uma grande oportunidade de reforçar a importância do legado afroindígena para o país, analisam especialistas ligados à preservação e à promoção das culturas tradicionais e ao direito intelectual. Na semana passada, o Grupo Executivo da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (Gecopa) incluiu a caxirola (uma espécie de chocalho) e o pedhuá (tipo de apito), instrumentos musicais inspirados em objetos centenários indígenas e africanos, entre os projetos privados que visam a promover o Brasil em função do evento. A decisão surpreendeu especialistas da área cultural.

No total, 96 projetos foram selecionados pelo governo, o que não significa que eles receberão investimentos públicos. Em termos de mídia, contudo, a chancela do grupo coordenado pelo Ministério do Esporte alçou o chocalho e o apito de plástico à condição de instrumentos oficiais da Copa – considerados, pela imprensa, como substitutos das vuvuzelas que fizeram sucesso no Mundial da África do Sul, em 2010.

Para especialistas como Josilene Magalhães, diretora substituta do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Palmares, instituição vinculada ao Ministério da Cultura e voltada à promoção e preservação da cultura afro-brasileira, o reconhecimento aos dois projetos precisa ser mais bem discutido a fim de evitar prejuízos às cultura tradicionais.

“Patentear esses instrumentos é um desrespeito à cultura tradicional. Somos contrários ao registro desses objetos pela iniciativa privada sem que as comunidades tradicionais que criaram os instrumentos originais sejam beneficiadas”, disse Josilene à Agência Brasil se referindo ao pedido de registro das marcas e patentes desses instrumentos que chegou ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) no final de 2011. Segundo a assessoria do Inpi, o processo de reconhecimento de uma marca demora, em média, cerca de 2,5 anos para ser concluído. Já o de uma patente costuma demorar, em média, 4,5 anos. A venda desses instrumentos no país, no entanto, não depende da concessão da patente pelo instituto.

A caxirola e o pedhuá foram apresentados oficialmente na última quinta-feira (27), durante cerimônia de certificação dos projetos de promoção do país. Inspirada no caxixi, instrumento de percussão comum em rodas de capoeira, a caxirola foi apresentada pelo músico baiano Carlinhos Brown em parceria com a agência multinacional The Marketing Store, responsável por viabilizar o projeto de produzir até 190 milhões de unidades do instrumento, cuja estimativa de preço mínimo ainda não foi definida.

Já o pedhuá, inspirado no apito de origem indígena de mesmo nome usado para atrair pássaros, foi apresentado pelo professor de educação física e empresário paraibano Alcedo Medeiros de Araújo. À Agência Brasil, Medeiros disse que a expectativa inicial é produzir ao menos 50 milhões de apitos de plástico, de diferentes modelos, incluindo um com rádio FM. A estimativa é que o modelo mais simples seja vendido por, no máximo, R$ 10.

“É importante que a inspiração nos instrumentos originais esteja sendo reconhecida, mas não é porque a matéria-prima original vai ser substituída para permitir a produção em larga escala que o ganho deve ser exclusivamente da iniciativa privada", disse Josilene, rebatendo o argumento dos responsáveis pela caxirola e pelo pedhuá de que a opção pelo plástico, para garantir a produção em larga escala e as mudanças no design dos instrumentos, justificam a concessão das patentes.

"É necessário discutir melhor a questão da propriedade intelectual e como recompensar os povos tradicionais por iniciativas como essas”, completou Josilene, adiantando que, além de buscar mais informações no Ministério do Esporte, a Fundação Palmares levará o assunto ao grupo do Ministério da Cultura que discute formas de reconhecer e garantir os direitos autorais das comunidades tradicionais.

Ex-diretor do Memorial dos Povos Indígenas de Brasília, Marcos Terena criticou as atuais normas de propriedade intelectual e lamentou a falta de visão estratégica do Grupo Executivo da Copa do Mundo. Para ele, o governo deveria pensar em como beneficiar os artesãos e os povos tradicionais pelo uso de seus conhecimentos. “A regra da propriedade intelectual funciona assim: quem chega primeiro e registra algo se transforma em dono, mesmo que não seja. O problema é que, do ponto de vista moral, esses objetos pertencem às tradições indígenas e africanas. Não dá para dizer que algo de plástico seja autêntico e representativo da nossa cultura. Cabe ao governo decidir se isso é algo realmente capaz de marcar ou se vamos simplesmente fazer como os países asiáticos com sua capacidade de transformar produtos de outros países em cópias mais baratas, de plástico, se continuará reconhecendo nossas influências sem nos ajudar a romper nossa invisibilidade.”

Quando procurada pela reportagem, a etnomusicóloga, colecionadora de instrumentos musicais e pesquisadora baiana, Emília Biancardi, só tinha conhecimento da caxirola, projeto de Brown, que considera uma recriação criativa, adequada ao uso nos estádios, capaz de produzir um som mais alto que o do caxixi original e que, por ser de plástico, é mais resistente e durável que o tradicional. A pesquisadora, contudo, disse não discordar totalmente das críticas. Para ela, o episódio demonstra a pouca preocupação brasileira com a preservação do legado das culturas tradicionais e das manifestações folclóricas.

"A caxirola é uma releitura, uma recriação. Não há nada de errado nisso. Quem quiser e souber recriar algo que o faça, desde que não esconda a origem de sua ideia. Nesse sentido o Carlinhos Brown foi honestíssimo, disse ter se inspirado no caxixi, que há séculos já era encontrado entre povos africanos e indígenas. Se ele fez isso, se apresentou a ideia ao ministério, é porque teve liberdade e apoio para fazer. Se algo nesse processo é questionável é [o fato de o grupo executivo] não ter pensado nessas questões antes”, disse Emília.

Especialista em direito da propriedade intelectual, o advogado José Carlos Vaz e Dias também considera que faltou cuidado das autoridades ao promover iniciativas privadas sem atentar para a proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Ao contrário dos responsáveis pela caxirola e pelo pedhuá, o advogado acha difícil que o Inpi conceda os registros de marca e patente aos novos objetos.

“Qualquer um pode pedir um registro de marca ou patente, mas para obtê-lo é preciso preencher alguns requisitos, como o critério de novidade ou o salto inventivo. Eu entendo que as chances dessas patentes serem concedidas são pequenas porque deixar de produzir um produto com madeira para fazê-lo de plástico não é, a meu ver, o suficiente", disse o advogado. "A questão mais importante, contudo, é se as comunidades tradicionais não têm direito a receber algo pela comercialização de objetos inspirados em seus costumes e em seu folclore. E, se têm, como fazer isso”, concluiu Vaz e Dias.

Procurado pela reportagem, o Inpi informou, por meio da assessoria, que não pode se manifestar sobre assuntos em análise. O Ministério do Esporte destacou que todos os 96 projetos foram selecionados por meio de chamada pública, a partir de regras e critérios claros, estabelecidos em conformidade com a estratégia de promoção do país. Além disso, ressaltou que a aprovação governamental não garante qualquer aporte de patrocínio e que os autores dos projetos selecionados são responsáveis pelas questões legais.

Coordenado pelo Ministério do Esporte, o Grupo Executivo da Copa do Mundo (Gecopa) é integrado por representantes da Casa Civil, dos ministérios das Cidades, da Fazenda, da Justiça, do Planejamento, do Turismo e da Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República. O grupo conta ainda com o auxílio jurídico da Advocacia-Geral da União (AGU). Todos os projetos aprovados foram previamente selecionados por uma comissão especial composta por representantes dos ministérios da Cultura, das Relações Exteriores, do Turismo e da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

 

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo