Brasília - Com o tema Um Olhar através da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU: Novas Perspectivas e Desafios, o governo brasileiro realizou, entre os dias 3 e 6 de dezembro, em Brasília, a 3ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Segundo a declaração feita pela ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), Maria do Rosário, a conferência é “uma oportunidade para avaliar as políticas públicas para o setor, com base no Plano Viver sem Limites, lançado em novembro do ano passado pelo governo federal”.
Na cobertura do evento, a Agência Brasil publicou cinco matérias. De acordo com os leads dessas matérias, foi possível perceber que a avaliação das políticas públicas para o setor foi o que menos marcou a agenda dos cerca de 1,5 mil delegados e observadores que participaram da conferência. Os temas centrais observados nos leads foram a divulgação das ações do governo no setor e a conferência em si. A centralidade nos dois temas pôde ser verificada no foco de uma das fontes consultadas: “Estamos preparando uma grande operação para receber bem essas pessoas, desde o aeroporto até o salão das plenárias. Elas serão atendidas, acompanhadas e terão toda acessibilidade nas salas, com audiodescrição, legenda em tempo real e intérprete de Libras. O maior sentido da conferência é acompanhar o que governo tem feito pelas pessoas a partir de suas propostas”, disse o secretário nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Antônio José Ferreira (1).
Apesar da centralidade nas perspectivas oficiais – cinco das oito fontes consultadas nas cinco matérias são autoridades federais – a cobertura não omitiu outras perspectivas. A diretora de uma organização não governamental (ONG) chamou a atenção sobre a distância existente entre a legislação e a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil. Um tetraplégico que foi delegado na conferência expressou suas expectativas para o evento. Uma estudante com paralisia cerebral relatou um caso de desrespeito de seus direitos na jornada diária nos transportes públicos.
Mas o que nos chama a atenção é que as notícias, mesmo quando apresentam diversos pontos de vista, de forma mais ou menos equilibrada e incluindo o cidadão entre as fontes citadas, ainda refletem uma espécie de “colagem” onde o cidadão é focado em uma posição secundária, tanto em termos da centralidade do foco (2) quanto no enquadramento (3).
Um caminho diferente para retratar o cidadão foi apontado pela professora Nélia del Bianco, da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista concedida ao programa da Ouvidoria, Rádio em Debate, no dia 2 de novembro deste ano, que fez uma discussão a respeito da pluralidade da sociedade brasileira na cobertura jornalística. Ao responder ao comentário feito pela ouvidora da EBC, Regina Lima, sobre o recebimento de mensagens de pessoas que não se veem representadas nos conteúdos ofertados pelas emissoras, a professora disse: “Se a abordagem é pelo cidadão, isso muda toda a forma de retratar a notícia. Ela nunca começa com a versão oficial. Ela sempre vai começar dizendo que reflexos, que consequências aquele problema traz para a comunidade. Ou se determinada medida governamental afeta de forma positiva, a gente identifica primeiro como é que o cidadão vai interagir com aquela medida. Se aquilo está no enquadramento da notícia, tudo se vê representado. É muito diferente de dizer a Presidência da República sancionou hoje uma lei que beneficia certo grupo social. Se eu mudo o enfoque e mostro como aquela lei pode modificar e interferir no cotidiano é aquilo que soa para o cidadão como algo que o inclui... Tudo é uma questão de enquadramento. Quem é que ganha evidência no início da notícia?... Se nós partimos do pressuposto de que o jornalismo público trabalha com o interesse público, então o cidadão está em primeiro lugar no enquadramento da notícia”.
Uma matéria publicada recentemente pela ABr sobre pessoas com deficiência demonstra que esse tipo de abordagem é viável. A matéria Algumas escolas ainda recusam crianças com deficiência ou doença crônica, publicada no dia 18/11/2012, começa com o seguinte lead: “Embora a lei exija que todas as escolas brasileiras aceitem e incluam crianças e adolescentes com deficiência e doenças crônicas, ainda existem instituições que se dizem inaptas para isso. Em muitos casos, por falta de estrutura e de informação da escola, quando o aluno é aceito acaba não tendo a atenção devida e o responsável pelo estudante precisa frequentar a escola para cuidar dele”. O texto continua: “É o caso da menina Giovana de Oliveira Corrêa, 6 anos, que tem síndrome de Kabuki, uma desordem congênita rara que causa déficit intelectual e problemas físicos. A mãe da menina, Evanilda Aprígio de Oliveira, ficava com ela na escola, mas conseguiu um emprego e agora paga a uma sobrinha para cuidar de Giovana”. Muitas outras Giovanas e Evanildas devem se ver representadas aí (4).
O que significa dizer que os jornalistas, tanto pelo foco como pelo enquadramento, são os responsáveis pela construção de uma espécie de moldura da janela por meio da qual a opinião pública entra em contato com determinada parcela da realidade, capaz de revelar contradições sociais, diversidade de opiniões e interesses nem sempre percebidos pelo público. É exatamente a construção dessa moldura que chamamos de enquadramento.
O jornalismo, em especial o jornalismo público, é um instrumento importante que a sociedade tem para conhecer e compreender o que está acontecendo nas mais diversas áreas, sendo capaz de revelar as contradições sociais, a diversidade de opiniões e interesses em disputa, guiando a percepção e a representação da realidade do leitor. Uma cobertura centrada em temas exige que os jornalistas saibam situar os diversos aspectos das políticas públicas em seu devido contexto. Eles devem explorar as relações entre antecedentes e consequências segundo diferentes perspectivas, considerando as expectativas das pessoas afetadas e os resultados previstos de acordo com visões diversas, além de examinar influências macroestruturais, tendências históricas, alternativas, possibilidades, exemplos de outras regiões ou países, possíveis obstáculos etc.. Tal natureza de cobertura exige explorar o alcance de eventuais contradições e conflitos entre visões distintas, mas não apenas confrontando-as simplesmente, e sim oferecendo explicações para as diferenças. O jornalista deve também ser capaz de avaliar a representatividade das diferentes perspectivas concorrentes em torno de determinado assunto, selecionando aquelas mais relevantes e operando o diálogo entre elas de maneira a preservar igualdade de expressão.
Portanto, uma matéria declaratória, que reproduz e resume os pronunciamentos feitos por autoridades governamentais, pode tratar de um assunto que interessa ao cidadão, mas ao mesmo tempo deixar de retratá-lo. Além de não ser focado, o cidadão fica fora do quadro ou se enquadra como um elemento indistinguível do contexto: um membro da plateia ou da multidão que recebe o pronunciamento ou uma cifra na estatística citada pela autoridade para enfatizar a relevância da medida anunciada. O tema é a cidadania, não o cidadão. Mesmo as matérias que contextualizam o tema em termos de repercussões, contrapontos e significados dentro dos quadros histórico e comparativo não necessariamente fogem desse defeito.
Boa leitura!
1- http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-11-29/palavra-de-ordem-e-autonomia-diz-ministra-sobre-conferencia-da-pessoa-com-deficiencia
2- “Foco” se refere à centralidade do objeto e à nitidez com que ele é apresentado. Via de regra, a centralidade em uma matéria jornalística é definida pelo conteúdo do primeiro parágrafo ou lead da matéria. A nitidez, ao contrário, pode emergir em vários pontos da reportagem e se associa ao acerto na escolha dos materiais colocados para concretizar ou “humanizar” os argumentos desenvolvidos no texto. Citações e exemplos figuram entre esses materiais.
3- “Enquadramento” se refere à integração do objeto no seu meio ou contexto. De acordo com essa perspectiva, a mídia utiliza certas palavras, ideias, expressões e adjetivos que promovem uma contextualização que modela o acontecimento, destacando alguns aspectos ou ocultando-os. Em linhas gerais, o conceito de enquadramento noticioso, diz respeito à forma como determinada situação é apresentada e interpretada para e pelo interlocutor, determinando assim a possibilidade e a capacidade do cidadão de se posicionar e agir em relação ao ocorrido.
4- http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-11-18/algumas-escolas-ainda-recusam-criancas-com-deficiencia-ou-doenca-cronica